EXISTE UMA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL EM TEMPO DE GUERRA?

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22 de novembro4 min. de leitura

Respire antes de responder!

Há uma armadilha na questão, que se pretende chamar a atenção.

Primeiro, é preciso delinear o contexto em que a pergunta é feita. Fala-se em guerra, devendo-se perquirir qual conflito armado deve ser compreendido. Tem-se que a natureza do conflito em que se poderá lançar mão das normas em tempo de guerra encerra-se na guerra externa, e não nos casos de comoção intestina, guerra civil, intervenção federal por grave perturbação da ordem pública etc.

Entretanto, essa é uma regra na concepção normativa atual, não se podendo descartar que, durante o período de guerra, novos instrumentos normativos surjam a excepcionar a situação, embora seja a burla de questionável constitucionalidade.

Exemplificativamente, que lei castrense em tempo de guerra já foi aplicada em conflito interno, especificamente por determinação de Getúlio Vargas, então Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, que o fez pelo Decreto n. 21.886, de 29 de setembro de 1932, instrumento que: determinava a aplicação, no então estado de comoção intestina, de dispositivos do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto n. 17.231, de 26 de fevereiro de 1926; e infligia as penas da legislação em tempo de guerra, com a exceção da pena de morte, que seria convertida em prisão com trabalho por 30 anos[1].

Pois bem, delineado o cenário da guerra externa, prossigamos na busca da resposta inicial.

Parece claro que, ao tratar de uma Justiça Militar em tempo de guerra, está-se diante de uma realidade que afeta a República Federativa do Brasil, a União, não como ente federativo, mas como reunião desses entes (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), de maneira que a referência espacial é uma Justiça Militar em âmbito federal, mas não como guardiã de bens jurídicos afetos à União (ente federativo) como o é a Justiça Militar da União, e sim uma Justiça Militar brasileira em tempo de guerra[2].

Assim, embora os dispositivos que tratam da Justiça Militar em tempo de guerra se refiram à estruturação de uma Justiça e de um processo com efeitos internos para seus jurisdicionados, é fato que a constituição de uma Justiça Militar em tempo de guerra espraia seus efeitos a representar a União Federal, no plano internacional, como marco de soberania. À guisa de exemplo, será ela, a Justiça Militar em tempo de guerra, certamente, o parâmetro para se aferir a competência complementar à do Brasil pelo Tribunal Penal Internacional (art. 17 do Estatuto de Roma).

Não há, dessa maneira, espaço para uma Justiça Militar estadual em tempo de guerra, mesmo porque eventuais crimes militares em tempo de guerra serão cometidos no seio de contingente específico, federal, ainda que existam alguns militares dos Estados, eventualmente adstritos às tropas no front.

Então ficou fácil responder, certo?

Não…não se precipite.

A existência de uma Justiça Militar brasileira em tempo de guerra não anula – ao menos não há previsão legal nesse sentido – a estrutura regular das Justiças Militares, seja da União ou dos Estados, que continuarão com sua estrutura e competência.

Melhor explicando, a previsão estrutural da Justiça Militar brasileira em tempo de guerra pressupõe que o crime tenha sido praticado em teatro de operações militares – que, “visto de uma forma simplificada, é a região, podendo ser país ou continente, onde ocorrem os empregos tático e estratégico de equipamento e pessoal militar”[3] – ou em território estrangeiro, militarmente ocupados por forças brasileiras, assim como tem por realidade que essa Justiça Militar acompanhará as tropas do Brasil, como se extrai do item 25 da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Militar.

É dizer que os crimes militares praticados no Brasil – desde que o teatro de operações não coincida com o território brasileiro –, serão de competência das estruturas regulares de Justiça Militar no País. Afirma Jorge Cesar de Assis, por exemplo, que o “Superior Tribunal Militar, como instância máxima da Justiça Militar, manter-se-á inalterado, e seus membros, em princípio, não seguirão com as forças militares para o Teatro de Operações […]”[4].

Exemplificativamente, caso um militar federal pratique o crime de deserção em um quartel sediado em Santa Maria/RS, e ali não seja teatro de operações ocupado por tropas brasileiras, o seu processo e julgamento será pela 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar, presumivelmente intacta em sua estrutura e competência. É possível, entretanto a aplicação do art. 391 do CPM, como deserção em tempo de guerra, mas apenas se afetar a segurança do País e se for relacionado com a própria guerra[5]; do contrário, ele deverá responder pelo crime militar em tempo de paz, conforme o art. 187 do CPM. Por outro lado, se o mesmo crime for praticado por integrante das tropas combatentes, em território nacional, teatro das operações, ocupado por tropas brasileiras ou em território estrangeiro ocupado por tropas brasileiras, o crime será processado e julgado pela estrutura judiciária em tempo de guerra.

Presume-se, em adição, que o ordenamento jurídico pátrio estará hígido, com suas regras bem delineadas e dotadas de eficácia ou, do contrário, se houver a falência do ordenamento, não há sentido em estudar normas legais de aplicação para essa situação. Nesse contexto, há de se considerar a necessidade de observância das normas constitucionais, admitindo-se exceções apenas no que a própria Constituição Federal assim permitir.

A mais evidente exceção constitucional está na decretação pelo presidente da República – frise-se que a Constituição Federal diz que o presidente da República “pode” e não “deve” decretar – do estado de sítio, em função da declaração de estado de guerra ou de agressão estrangeira (art. 137, II, CF), o que importará em restrições peculiares a essa condição. Trata-se do estado de sítio defensivo, que tem por pressuposto a declaração de guerra ou a agressão estrangeira armada, no qual toda e qualquer garantia constitucional poderá ser suspensa pelo período em que durar a situação excepcional[6]. Frise-se, entretanto, que para que isso ocorra é necessário a observância de alguns postulados, a saber:

a) tenham sido observados os princípios da necessidade e da temporariedade (enquanto durar a guerra ou a resposta a agressão armada estrangeira);b) tenha havido prévia autorização por parte do Congresso Nacional; c) nos termos do art. 138, caput, tenham sido indicadas no decreto do estado de sítio a sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas[7].

Não há, assim, um “cheque em branco” nas mãos do presidente da República, sujeito que está a um controle político, prévio, concomitante e posterior, pelo Congresso Nacional, além, claro, de um controle jurisdicional, imediato, concomitante e sucessivo[8].

Sedimentando o raciocínio, em tempo de guerra, haverá a estrutura da Justiça Militar em tempo de Guerra (da União), mas continuarão em funcionamento as Justiças Militares da União, dos Estados e do Distrito Federal, claro, se nenhuma norma inovadora surgir nesse período.

Respondamos, então, a questão inicial. Existe uma Justiça Militar Estadual em tempo de guerra?

O que existirá é, em tempo de guerra, uma Justiça Militar Estadual (ou do Distrito Federal), que continuará a funcionar, mas não existe uma Justiça Militar Estadual específica para o tempo de guerra, entenda-se, para processar e julgar crimes militares praticados no contexto apresentado acima, ou seja, crimes militares praticados no teatro de operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupados por forças brasileiras etc.

[1] MONTEIRO, Silvestre Péricles de Góes. Justiça Militar em tempo de guerra. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1935, p. 29.

[2] Para melhor compreender a dualidade da União (União Federal e ente federativo), vide LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1104.

[3] SILVA, Gualterberg Nogueira de Lima. Do processo penal na Justiça Militar em tempo de guerra. Revista Direito Militar, Florianópolis: AMAJME, n. 41, 2003.

[4] ASSIS, Jorge César. Comissionamento em postos militares, de juízes-auditores, membros do ministério público militar e da defensoria pública da união, por ocasião do tempo de guerra. Disponível em file:///C:/Users/rcoim/AppData/Local/Microsoft/Windows/INetCache/IE/9X39QYL6/comissionamento-em-postos-militares_atualizado.pdf. Acesso em: 13 fev. 2018.

[5] ROMEIRO, Jorge Alberto.Curso de direito penal militar: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 35.

[6] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2012, p.1236.

[7] Cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1104.

[8] Cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1104.

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