Greve com dimensões políticas e a atual posição da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho

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09 de janeiro4 min. de leitura

Desde o início de dezembro foi deflagrado na França aquele que já é considerado o maior movimento grevista da história do país. O país das greves está em greve nacional! Os trabalhadores dos transportes públicos franceses e de outros setores dizem estar dispostos a continuar a paralisação até a retirada da reforma da Previdência proposta pelo Governo Macron.

Preferimos sacrificar um salário do que nossas aposentadorias, as de nossos filhos e as dos filhos de todos os franceses”, corrobora Karim, um condutor de bondes em Paris de 34 anos que prefere não dar seu sobrenome e que também está em greve desde o primeiro dia em que pararam os serviços metropolitanos de transporte público e os trabalhadores do serviço nacional ferroviário (SNCF).

Seu salário é o único que entra em uma casa com duas crianças pequenas, mas afirma que sua família o apoia, ainda que o Natal tenha sido mais difícil para todos. “Um Papai Noel perdido não é grave. Preferimos perder um Natal às aposentadorias”, afirmou ao site El País.

O episódio francês faz retomar a discussão acerca dos interesses que podem ser defendidos por meio da greve. No Brasil, considera-se greve, segundo a legislação, “a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (art. 2º, da Lei nº 7.783, de 1989 – Lei de Greve).

Por sua vez, dispõe o art. 9º da Constituição de 1988, que está inserido no Capítulo II (“Dos Direitos Sociais”) do Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) que, “é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. (grifos acrescidos).

A partir do texto constitucional indaga-se: quais interesses e objetivos podem os trabalhadores licitamente defender, por meio do movimento paredista? Nesse ponto, necessário dizer inicialmente que esses interesses podem ser classificados em três grupos ou tipos: a) interesses estritamente ou essencialmente trabalhistas; b) interesses puramente políticos, sem correlação qualquer com os trabalhistas; c) interesses político-trabalhistas correlacionados ou, dito de outra forma, interesses políticos relevantes mas com repercussões trabalhistas efetivas.[1]

Segundo lição doutrinária, considera-se greve de origem estritamente política aquela que não possui nenhuma base profissional ou ligação trabalhista, visando protestar: a) contra atos do governo e de órgãos do poder público ou privado ou, b) na possibilidade de greve dirigida contra o próprio empregador em protesto contra decisões que não tenham ligação direta com o contrato de trabalho.[2]

Existem duas grandes teorias sobre a abusividade ou não das greves políticas: a teoria restritiva e a teoria ampliativa. A primeira sustenta que a greve de natureza política (seja estritamente política, seja político-trabalhista) é sempre abusiva, por falta de respaldo legal e desvinculação com a natureza trabalhista. É a posição atualmente adotada pela maioria dos Ministros da Seção de Dissídios Coletivos (SDC) do TST.

De outro flanco, a segunda teoria, dita ampliativa, entende que a greve com dimensões político-trabalhistas é lícita, porque levada a efeito para protestar contra atos que geram reflexos no contrato de trabalho. É a posição de boa parte da doutrina brasileira e da Organização Internacional do Trabalho – OIT.[3]

Lembra Estevão Mallet que, seja em Portugal, seja na França, há decisões jurisprudenciais reconhecendo a licitude da greve político-trabalhista.[4] O autor menciona a decisão da Corte de Cassação, que admitiu a licitude de greve contra plano econômico do governo:

Est licite la grève ayant pour objet le refus du blocage des salaires, la défense de l’emploi, et la réduction du temps de travail, revendications étroitement liées aux préoccupations quotidiennes des salariés au sein de leur entreprise.[5] (Chambre Sociale, Processo n. 78-40553, decisão de 29.5.1979).

No Brasil, é importante citar, academicamente, recente decisão da 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região que, embora minoritária na jurisprudência, reconheceu a não abusividade de movimento grevista de cunho político-trabalhista:

GREVE POLÍTICA. LICITUDE. A greve deflagrada pelos trabalhadores visando à rejeição de projetos legislativos de reforma da legislação trabalhista e previdenciária, que, inclusive, afetam, profundamente, a sua condição social, é lícita, uma vez que encontra respaldo na Constituição da República e em norma do Direito Internacional dos Direitos Humanos. (TRT – 3ª Região, 7ª Turma, RO nº 0010845-85.2017.5.03.0067; Relator Juiz Convocado Cléber Lúcio de Almeida, acórdão publicado em 03/07/2019).

No entanto, é preciso enfatizar que, nos últimos anos, tem prevalecido na Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, por ampla maioria de votos, o entendimento no sentido contrário. Ou seja, a jurisprudência majoritária que se sedimentou na SDC do TST afirma que a greve motivada por interesses políticos, ainda que com certo fundo trabalhista, mostra-se abusiva sob o ponto de vista material, especialmente pela circunstância de a pretensão brandida no movimento paredista não ser passível de atendimento pelo respectivo empregador ou categoria econômica, por se situar fora da esfera de atuação do poder empregatício, sendo inerente, de maneira geral, ao Poder Público.[6]

De fato, diversos acórdãos da SDC-TST têm reiterado essa compreensão mesmo em se tratando de greve contra Medida Provisória que altera significativamente as condições de trabalho de certa categoria, de greve contra privatização da respectiva empresa estatal, a par de outras situações similares.[7]

 

Referências:

[1] DELGADO, Maurício Godinho; PIMENTA, José Roberto Freire; MIZIARA, Raphael. Sindicalismo e greve no Estado democrático de direito: o debate sobre o exercício, pelas entidades sindicais, de atividades com dimensões políticas. In: Revista de Direito do Trabalho. Janeiro/2020. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

[2] MIZIARA, Raphael. Informativos do TST comentados. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018, pág. 941.

[3] OIT. La libertad sindical: recopilación de decisiones del Comité de Libertad Sindical. 6. ed. Oficina Internacional del Trabajo. Ginebra: OIT, 2018, págs. 146-150. De todo modo, é preciso deixar claro que, para a OIT, a greve estriamente política não está abrangida e nem, muito menos, assegurada pelo princípio da liberdade sindical, mas, tão somente, a greve político-trabalhista.

[4] MALLET, Estevão. Dogmática elementar do direito de greve. São Paulo: LTr, 2017.

[5] Em tradução livre: É lícita a greve para atacar política de congelamentos salariais, a defesa do emprego e a redução do tempo de trabalho, reclamações intimamente ligadas às preocupações do dia-a-dia dos trabalhadores da empresa.

[6] DELGADO, Maurício Godinho; PIMENTA, José Roberto Freire; MIZIARA, Raphael. Sindicalismo e greve no Estado democrático de direito: o debate sobre o exercício, pelas entidades sindicais, de atividades com dimensões políticas. In: Revista de Direito do Trabalho. Janeiro/2020. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

[7] Eis alguns arestos que têm afirmado a jurisprudência hoje dominante: a) TST-RO-51534-84.2012.5.02.0000, SDC, Rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, 9.6.2014 – Informativo TST nº 85; b) TST-RO-1393-27.2013.5.02.0000, SDC, Rel. Min. Maria de Assis Calsing, 24.4.2017 – Informativo TST nº 157; c) TST-RO-1001240-35.2017.5.02.0000-SDC-TST. Julgamento em 14.05.2018. Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga; d) TST-RO-10504-66.2017.5.03.000-SDC-TST. Julgamento em 09.04.2018. Rel. Min. Dora Maria da Costa; e) TST-DCG-1000418-66.2018.5.00.0000, SDC, redator p/acórdão Min. Ives Gandra da Silva Martins Filho, 11.2.2019 (relator original: Min. Mauricio Godinho Delgado) – Informativo TST nº 190. Esclareça-se que os Ministros Mauricio Godinho Delgado, Kátia Magalhães Arruda e Lélio Bentes Correia têm apresentado, em tais casos, quando votantes nos processos, compreensão contrária à da maioria sedimentada.

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