História Mínima do Mercosul – parte II

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2 de Agosto de 2017

No artigo da última semana, vimos como o espírito livre-cambista que marcou os primeiros anos do Mercosul esgotava-se na medida em que a Argentina mergulhava na pior crise econômica de sua história, a partir de 2001, e como o governo brasileiro, desde então, abandonou algumas posições de princípio diante da premência da reconstrução econômica do país vizinho. Nesse processo, proliferaram medidas protecionistas adotadas em detrimento de interesses concretos de setores produtivos brasileiros que o Brasil passou a administrar com boa dose de “paciência estratégica”, de modo a preservar o objetivo maior do bom entendimento com a Argentina.

Como já se antecipou, este não é o âmbito apropriado para juízos de valor sobre processos políticos, sobretudo quando suficientemente recentes para ainda suscitar controvérsias apaixonadas. Apenas se registre que esses acontecimentos se deram num ambiente de relativa convergência ideológica entre os governos dos países-membros do Mercosul. Não apenas o Brasil, a partir de janeiro de 2003, passou a ser governado por um partido de esquerda – em cujo ideário histórico sempre houvera restrições ao livre-cambismo –, mas também a Argentina, a partir de 25 de maio do mesmo ano, será governada por Néstor Kirchner, até então um desconhecido governador patagônico que, na Casa Rosada, adotará um discurso de reivindicação da militância de esquerda dos anos 70. No Uruguai a transição demorou dois anos mais, mas em 2005 Jorge Batlle entregará a faixa ao dr. Tabaré Vázquez, da esquerdista Frente Ampla, pondo fim a 175 anos de alternância entre colorados e blancos. Por fim, no Paraguai, em 2008, será a vez de o ex-bispo Fernando Lugo interromper sessenta anos de absoluta hegemonia do Partido Colorado.

O fenômeno que, noutras paragens, se batizou de pink tide não se restringiu ao Cone Sul. Já desde 1999 a Venezuela era presidida pelo coronel Hugo Chávez, que no poder associou um ideário iliberal com mecanismos plebiscitários de legitimação, às expensas da oposição desorganizada (e francamente minoritária, naquele momento). Em 2006, Evo Morales assume a presidência da Bolívia, com uma plataforma socialista e indigenista. Em janeiro de 2007, Rafael Correa tornou-se presidente do Equador, quase ao mesmo tempo em que Daniel Ortega voltava ao poder na Nicarágua, 17 anos após o fim da Revolução Sandinista, ao passo que, em 2008, o hondurenho Manuel Zelaya reorientou a política exterior de seu país para a Aliança Bolivariana propugnada por Caracas.

Passemos ao largo da ALBA e de outras iniciativas que proliferaram fora da órbita do Mercosul e concentremo-nos nos desenvolvimentos no interior do bloco. Interrompida, talvez por doses iguais de necessidade e convicção, a fase livre-cambista dos primeiros anos, os governos do Brasil e da Argentina (e, em menor medida, do Uruguai) viam-se diante da necessidade de encontrar substitutos para a agenda econômica postergada. E encontraram-nos na promessa de uma integração mais horizontal, que compensasse a inatividade na frente comercial com avanços na área social ou política. Datam desses anos o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), estabelecido em 2004 para financiar projetos de desenvolvimento produtivo nas regiões menos desenvolvidas; a criação do Parlamento do Mercosul, em 2005 (efetivo a partir de maio de 2007); e o Acordo sobre Residência para os Nacionais dos Estados Parte do Mercosul, assinado em 2009, que avançou rumo à livre circulação de pessoas. Paralelamente, iam gestando-se fóruns de diálogo e cooperação nas mais distintas áreas, da agricultura familiar à igualdade de gênero.

Paralelamente, fora do âmbito do Mercosul, o sentimento difuso contrário ao livre-cambismo encontrou uma bandeira mobilizadora na resistência à Área de Livre Comércio das Américas, defendida por Washington desde meados da década de 90. O marco fundamental nesse processo foi a Cúpula das Américas de Mar del Plata, de 2005, quando o então presidente venezuelano Hugo Chávez, sob a complacência de brasileiros e argentinos, liderou a resistência ao projeto, que praticamente se encerrou ali. (Em substituição à ALCA, os EUA foram buscar acordos bilaterais de livre comércio com países de orientação mais liberal, como o Peru, a Colômbia e boa parte da América Central, em complementação aos acordos que já mantinham com o México e o Chile.)

O bom entendimento verificado em Mar del Plata animou os formuladores de políticas nas três capitais a buscar a conformação de um eixo Caracas-Brasília-Buenos Aires, voltado primariamente a resistir à agenda livre-cambista, mas também — sem ignorar as profundas diferenças de prioridades e percepções existentes — à construção de uma agenda alternativa de integração. Tais esforços haviam de potencializar-se ainda mais, em 2006, com o pedido venezuelano de adesão plena ao Mercosul.

O efetivo ingresso da Venezuela, como se sabe, deu-se apenas em 2012 e mediante um expediente até hoje muito criticado: o Congresso paraguaio, até então, recusava-se a aprovar o pleito venezuelano, contra a posição oficial do governo de Lugo; quando, em 2012, os congressistas votaram o impeachment do presidente num procedimento julgado, por alguns, excessivamente expedito, representantes do Brasil, da Argentina e do Uruguai decidiram suspender o país do bloco, por violação à “cláusula democrática”; ato seguido, deu-se por aprovado, sem a objeção paraguaia, o pedido venezuelano de ingresso.

Se foi controverso o procedimento, não o será a constatação de que, já desde 2006, o governo venezuelano vinha aproveitando-se das cúpulas do Mercosul para fazer avançar a sua retórica e a sua agenda iliberais. Em Caracas, como, em boa medida, em Buenos Aires, passam a ganhar destaque projetos de integração que punham em segundo plano a atuação dos agentes de mercado, concentrando-se antes na atuação coordenada de grandes empresas estatais ou semipúblicas e no financiamento de agências oficiais enriquecidas com o boom das commodities. Entram em campo o Banco do Sul e o projeto (nunca realizado) do Gasoduto do Sul; saem os esforços de coordenação macroeconômica e os projetos utópicos de união monetária. Já pouco se fala da eliminação da dupla cobrança da TEC, e as queixas brasileiras sobre os licenciamentos não automáticos caem em ouvidos cada vez mais moucos.

Há, no terreno comercial, um segundo fator tão importante quanto a desaceleração da agenda intra-Mercosul: na medida em que se agravava a opção argentina por uma quase autarquia econômica, em que o ativismo venezuelano lança mais dúvidas sobre a capacidade do bloco de liberalizar e em que o próprio Brasil, em resposta à crise financeira de 2009-2011, lança mão de seguidas medidas protecionistas, também perdem vigor os esforços de negociação de acordos de livre comércio com parceiros importantes de fora do Mercosul: para além da ALCA, enterrada, para todos os efeitos, em 2005, as tratativas com a União Europeia entram em ponto morto, para apenas muito recentemente receberem um novo impulso. (Para registro, naqueles anos, o Mercosul logrou negociar acordos modestos com parceiros de menor dimensão econômica, casos de Israel, Palestina e Egito, além de acordos mais limitados, de preferências comerciais, com a Índia e a União Aduaneira da África Austral.)

Nessas condições, o Mercosul passa a ser retratado cada vez mais — correta ou incorretamente, não vem ao caso aqui — como um projeto protecionista, cada vez mais distante da ideia que norteou os esforços dos governos dos anos 90: a de aprofundar a integração como passo prévio para habilitar-nos à efetiva concorrência internacional. Em reação a esse quadro, os países de orientação mais liberal — o México, a Colômbia, o Peru e o Chile — congregam-se numa Aliança do Pacífico de signo liberal, que talvez se prestasse tanto a promover a efetiva integração entre seus membros como a diferenciá-los do Mercosul, aos olhos do mundo exterior (preservando, no entanto, o diálogo e a cooperação nos mecanismos mais amplos, como a União das Nações Sul-Americanas e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos).

Com isso, ingressamos na história recente, que, justamente por ser recente, dispensará maiores elaborações. Aqui convirá apenas registrar que, entre fins de 2015 e meados de 2016, a orientação das políticas exteriores do Brasil e da Argentina sofreu mudança substantiva, com a eleição do presidente Mauricio Macri (centro-direita) e com o impeachment de Dilma Rousseff. Ainda que, na prática, esteja por verificar-se o abandono dos mecanismos protecionistas adotados desde 2003, permanece o fato de que os dois principais países do bloco convergiram na avaliação sobre seus principais desafios interno e externo.

Internamente, a Venezuela foi suspensa (tecnicamente) por atrasos consideráveis no cronograma de implementação dos compromissos de integração (muito embora o processo seja qualificado pela invocação da “cláusula democrática” contra o país caribenho, em abril de 2017). Externamente, superadas (ao menos na retórica) as veleidades autárquicas dos Kirchner, e encerrados os principais programas protecionistas adotados pelo Brasil entre 2011 e 2015, Brasil e Argentina acham-se finalmente em condições de ouvir os reclamos dos sócios menores por maior ativismo na frente externa, de maneira que as negociações em torno de um acordo de associação com a União Europeia ganham novo impulso, e desde Brasília e Buenos Aires passam a acalentar-se projetos de novos acordos comerciais com parceiros como o Canadá, o Japão e a Coreia do Sul.

Esses são, em boa medida, os desafios com que hoje se defronta o Mercosul, para além da linguagem de business as usual que poderia transparecer da leitura do último comunicado. Se os novos projetos comuns haverão de frutificar é algo que apenas o tempo poderá demonstrar, mas permanece o fato de que hoje, como no passado, a principal condição para quaisquer avanços é a convergência prévia de percepções entre Brasil e Argentina. Enquanto ela se verificar, mesmo os objetivos mais ambiciosos, como o acordo com a União Europeia, não devem ser descartados de antemão.

Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.


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