Idas e vindas sobre o crime continuado no Direito Militar

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6 de Dezembro de 2020

O crime continuado está disciplinado no CPM pelo art. 80, que o define como aquele em que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser considerados como continuação do primeiro, previsão análoga àquela do art. 71 do Código Penal comum.

Assim, poderíamos enumerar como requisitos para o reconhecimento do crime continuado:

1) pluralidade de crimes de mesma espécie –  no Código Penal comum tem-
-se entendido que não há necessidade de ser o mesmo crime, em razão da expressão constante do tipo penal específico que ao falar da unificação da pena dispõe que “aplica-se-lhe a mais grave das penas”; no CPM, como não há essa regra, seria conveniente também postular a mesma compreensão;

2) condições objetivas semelhantes – devem ser praticados em condições semelhantes de tempo (tem-se entendido que o tempo de 30 dias entre os crimes dá ensejo à continuidade delitiva), lugar (entre cidades próximas, pode-se falar em crime continuado) e modo de execução (deve ser idêntico);

3) unidade de desígnios – aqui adotando-se também a teoria objetivo-
-subjetiva, segundo a qual, além das circunstâncias objetivas semelhantes, há necessidade da presença de um elemento subjetivo, ou seja, da vontade de o agente aproveitar-se das mesmas circunstâncias deixadas pelo crime anterior, em uma unidade de propósitos.

O parágrafo único do art. 80 exclui o crime continuado quando se trata de fatos ofensivos de bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo se as ações ou omissões sucessivas são dirigidas contra a mesma vítima, impossibilitando, assim, uma disciplina de crime continuado quando doloso contra vítimas diferentes, ao contrário do Código Penal comum.

Todavia, ainda que se possa reconhecer certa semelhança entre a conceituação do crime continuado nos dois Códigos Penais, o CPM, em seu art. 79, prevê a unificação de penas no crime continuado, ou seja, possibilita tanto o cúmulo material, se os crimes possuírem penas de mesma espécie, como a exasperação, se de espécies diferentes, respeitando neste caso o limite imposto pelo art. 58.

Assim, tomando um exemplo, se um Policial Militar desejar injuriar uma mulher (art. 216 do CPM), também Policial Militar, e decidir mandar-lhe cartas injuriosas, num total de sessenta cartas, considerando a pena máxima de seis meses de detenção para cada crime, poderá ser condenado à pena de dez anos de detenção, em observância ao limite do art. 58 para essa espécie de pena.

Permite-se, para alguns, uma redução facultativa da pena no crime continuado, prevista no § 1º do art. 81 do CPM, que estabelece: “A pena unificada pode ser diminuída de um sexto a um quarto, no caso de unidade de ação ou omissão, ou de crime continuado”, mas ainda assim seria extremamente severa a regra do CPM para o crime continuado, tão severa e injusta em relação ao Código Penal comum que a jurisprudência tem admitido a aplicação do art. 71 deste Código em substituição ao art. 80 do CPM, consagrando-se, como regra, a exasperação, e não o cúmulo material.

Essa acertada visão foi vigente no Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, que, por exemplo, na Apelação Criminal n. 5.240/03 (Feito n.  31.856/02, 4ª Auditoria), sob relatoria do Juiz Cel. PM Lourival Costa Ramos, decidiu, em 25 de agosto de 2005:

Reconhecida a continuidade delitiva nas ações desenvolvidas pelo policial militar, aplicáveis as regras atinentes ao crime continuado com a unificação das penas nos termos do artigo 71 do Código Penal, visando alcançar punição compatível com o senso de distribuição de justiça. A pena excessivamente longa não atinge sua finalidade de recuperação do infrator.

Também vigente essa concepção no Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, como se verifica na Apelação Criminal n. 2.332 (Proc. n. 17.381/3ª AJME), que, sob relatoria do Juiz Cel. PM Paulo Duarte Pereira, decidiu, em 4 de novembro de 2004:

Tendo em vista as circunstâncias do crime, a personalidade do agente, a extensão do dano e o número de incidências, pode-se aplicar, conforme o caso, na dosimetria da pena, para a continuidade delitiva, em vez do disposto no art. 80 do CPM, a regra do art. 71 do Código Penal Comum, por ser mais condizente com a moderna política criminal.

Apesar dessa visão, há posição contrária, em que se sustenta a aplicação da regra do art. 80 do CPM, sem a possibilidade de aplicação da norma do Código Penal comum. Surpreendentemente, como lembra Jorge César de Assis (Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2007, p. 185), assim entendeu o Supremo Tribunal Federal, que em sede do Habeas Corpus n. 86.854/SP, em 14 de março de 2006, sob a relatoria do Ministro Carlos Britto, considerou válida a regra do art. 80 do CPM:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR DE CONCUSSÃO (ARTS. 305 E 53 DO CPM). EXIGÊNCIA DE DINHEIRO PARA NÃO LAVRATURA DE AUTOS DE INFRAÇÃO AMBIENTAL. PENA-BASE. MAJORAÇÃO. PRETENDIDA APLICAÇÃO AOS CRIMES MILITARES DA REGRA DA CONTINUIDADE DELITIVA, PREVISTA NO ART. 71 DO CÓDIGO PENAL COMUM. IMPOSSIBILIDADE. Revela-se devidamente fundamentada a sentença que, para majorar em dois meses a pena-base do acusado, se louva na especial gravidade do crime e no seu modo de execução, tudo conforme o art. 69 do Código Penal Militar. Não se aplica aos crimes militares a regra de continuidade delitiva a que se reporta o art. 71 do Código Penal Comum. Isso porque, nos termos do art. 12 do CP, a inexistência de regramento específico em sentido contrário é premissa da aplicação subsidiária do Código Penal às legislações especiais. No caso, tal premissa não se faz presente. Bem ou mal, o Código Penal Militar cuidou de disciplinar os crimes continuados de forma distinta e mais severa do que o Código Penal Comum. Não se pode mesclar o regime penal comum e o castrense, de modo a selecionar o que cada um tem de mais favorável ao acusado. Tal proceder geraria um ‘hibridismo’ incompatível com o princípio da especialidade das leis. Sem contar que a disciplina mais rigorosa do Código Penal Castrense funda-se em razões de política legislativa que se voltam para o combate com maior rigor daquelas infrações definidas como militares. Precedentes. Ordem denegada.

A corrente versada pela Corte Suprema possui adeptos na doutrina, como sustenta a caneta de Ronaldo João Roth:

Assim, no  caso  da  apenação  do  crime  continuado  militar,  devidamente disciplinado pelo CPM, não comporta analogia com o tratamento distinto dado ao crime comum, posto que além de contra legem, subverte o ordenamento jurídico castrense, porquanto despreza os pilares da hierarquia e disciplina  que  sustentam  as  instituições  militares,  bem  como  se  afasta  do princípio  da  especialidade. Ademais,  como  demonstrado,  a  aplicação  da analogia não encontra espaço diante da completa disciplina do crime continuado no CPM que esgota a matéria não havendo, portanto, que se falar em preenchimento de lacuna.

Não há razão assim para se deixar de aplicar a regra específica do crime continuado nos crimes militares (art. 80 do CPM), sob pena de gerar um ‘hibridismo’ incompatível com o princípio da especialidade das leis (STF, HC nº 86854/SP – Rel. Ministro Carlos Britto) (Crime Continuado: A distinção de tratamento no CPM e no CP comum: existe razão para isso? Disponível em https://revista.mpm.mp.br/ler-artigo/. Acesso em 06.12.2020).

Mas, você que está inscrito no concurso para o cargo de promotor de Justiça Militar deve estar se perguntando como deve encarar a questão.

Para responder sua pergunta, deve-se fixar o olhar no que compreende o Superior Tribunal Militar e é justamente nele que o correm as “idas e vindas” do título.

Foi reinante, durante muito tempo, a visão de aplicação do Código Penal comum (art. 71 do CP), como se nota nos seguintes exemplos:

EMENTA: APELAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR. ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. DESACATO. ART. 299 DO CPM. ÂNIMO CALMO E REFLETIDO. INEXIGÊNCIA. RESISTÊNCIA MEDIANTE AMEAÇA OU VIOLÊNCIA. ART. 177 DO CPM. PROVAS TESTEMUNHAIS. OFENDIDOS. LEGITIMIDADE. PRECEDENTES. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. NÃO CABIMENTO. CONTINUIDADE DELITIVA. APLICAÇÃO DO ART. 71 DO CÓDIGO PENAL COMUM. POLÍTICA CRIMINAL. AUTORIA, MATERIALIDADE E CULPABILIDADE COMPROVADAS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. MAIORIA. RECONHECIMENTO E DECLARAÇÃO DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. AUSÊNCIA DE TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO. POSSIBILIDADE. UNANIMIDADE. O núcleo da conduta no crime de desacato a militar é “desacatar”, ou seja, faltar com o devido respeito ou com o acatamento, desmerecer, menoscabar, afrontar a autoridade do militar em função de natureza militar. Para configuração do delito previsto no art. 299 do Código Penal Militar, não se exige que o agente atue com ânimo calmo e refletido, pois, geralmente, a conduta é praticada em situações de alteração psicológica, agindo o agente impulsionado por sentimentos de raiva, ódio ou rancor, caracterizando-se o elemento subjetivo pelo dolo consistente na vontade livre e consciente de ofender ou desprestigiar a função exercida pelo sujeito passivo. O tipo penal incursionador encartado no art. 177 do CPM caracteriza-se quando o executor da ordem ou quem o auxilia é atingido pelo ato violento ou toma conhecimento da ameaça. O fato de as testemunhas presenciais se confundirem com os próprios ofendidos não tem o condão de desmerecer, tampouco reduzir o potencial comprobatório de suas declarações. Suas palavras são dotadas de presunção de legitimidade e de legalidade, sendo merecedoras de crédito, inclusive no tocante à incriminação de pessoa envolvida no episódio delitivo. O Princípio da Consunção pode ser adotado quando se evidencia a existência de conexão entre os delitos perpetrados, ou seja, que um deles tenha sido praticado apenas como meio ou preparatório para a prática de outro. Reconhecida a continuidade delitiva, a reiterada jurisprudência desta Corte, por razões de política criminal, tem adotado o disposto no art. 71 do Código Penal comum em detrimento do art. 80 do Código Penal Militar. Apelo parcialmente provido. Decisão por Maioria. Muito embora se exija o trânsito em julgado da Sentença condenatória para a declaração de extinção da punibilidade do Acusado, no caso concreto a pena aplicada pelo Plenário do Superior Tribunal Militar decorreu do reconhecimento de circunstâncias judiciais favoráveis ao Réu, não se verificando a possibilidade de que eventual Recurso ministerial possa resultar na sua majoração em patamar tendente a modificar o cálculo prescricional, devendo ser reconhecida a causa extintiva da punibilidade nesta sede recursal. Prescrição declarada de ofício. Decisão por unanimidade (STM, Apelação n. 7000587-46.2019.7.00.0000, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 12/02/2020) (g.n.).

EMENTA: APELAÇÃO. MPM. ART. 311 DO CPM. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS COMPROVADAS. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA OU CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO COMPROVAÇÃO. PRÁTICA DE DIVERSAS CONDUTAS EM CONTINUIDADE DELITIVA E EM CONCURSO MATERIAL. PROVIMENTO DO APELO. MAIORIA DE VOTOS. A conduta de falsificar Guias de transferência de armas, expedidas pela Polícia Federal, e as apresentar à Administração Militar com a intenção de inserir no Sistema de Gerenciamento de Armas (SIGMA), dados falsos relativos a armas de origem indeterminada, além de constituir grave violação da Ordem Jurídica, amolda-se ao tipo penal previsto no art. 311 do CPM. Esse delito, para além da fé pública, afeta a atividade da Administração Militar, isso porque a incumbência de conceder o registro e porte de trânsito de arma de fogo para atiradores, é atribuição do Exército Brasileiro, prevista no art. 9º do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03). Não caracteriza falsificação grosseira, ou, crime impossível, a contrafação apta a enganar o homem médio, inclusive, os agentes da Administração Militar, que procederam a diversas diligências para averiguar a autenticidade dos documentos falsos. De igual sorte, é irrelevante para a configuração do crime em comento eventual possibilidade de controle posterior, porquanto se trata de crime formal. Considerando, ainda, que foram perpetradas 8 (oito) falsificações, todos crimes da mesma espécie, praticados por uma pluralidade de condutas, em condições semelhantes de tempo, lugar, maneira de execução e em unidade de desígnios, se torna forçoso reconhecer a continuidade delitiva, consoante art. 71, do Código Penal. Quanto a segunda conduta criminosa, a falsificação de laudos e demais documentos particulares com o objetivo de conseguir a emissão de certificados de Registro de arma para diversos civis, igualmente, se amolda ao delito previsto no art. 311, caput, do CPM, todavia, se subsumindo a definição de falsificação de documento particular, mormente ausentes os requisitos caracterizadores do documento público. Com relação a este segundo delito, da mesma forma que a primeiro, não há que cogitar na ocorrência de falsificação grosseira, porquanto, também foram realizadas diversas diligências, pela Administração Militar, com a finalidade de apurar a veracidade de tais documentos, que só foram reputados falsos após as devidas averiguações por parte da Administração Militar. Ressalta-se, que tais fatos também foram praticados em continuidade delitiva, nos termos do art. 71 do Código Penal. Por fim, considerando a prática de crimes distintos e autônomos, quais sejam: as oito falsificações em Guias de transferência do SINARM para o SIGMA e as oito falsificações em processos para emissão de Certificado de Registro, deve ser aplicada a regra do concurso material, com a somatória das penas, na forma do disposto no art. 79 do CPM. Recurso conhecido e provido. Decisão por maioria (STM, Apelação n. 7000601-30.2019.7.00.0000, rel. Min. Odilson Sampaio Benzi, j. 25 a 28/05/2020).

Ocorre que um outro julgado subverteu a certeza que tínhamos da melhor resposta, retomando a rigidez do Código Penal Castrense:

EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTE E DE NULIDADE. CRIME CONTINUADO. CONCURSO MATERIAL. SOMA DAS PENAS. RELAÇÃO ESPECIAL DE SUJEIÇÃO DO MILITAR. ESPECIALIDADE DA NORMA PENAL CASTRENSE. ACÓRDÃO MANTIDO. I – O Codex castrense possui maior rigidez no tratamento penal ao crime continuado militar em comparação ao crime continuado comum do Código Penal (CP), pois diferentemente deste, aquele cuida do concurso de crimes e do crime continuado sob a disciplina da soma de penas. II – Há uma verdadeira relação especial de sujeição à norma de oficiais e graduados. Assim, o que se veda no princípio da igualdade é a discriminação gratuita, sem nexo com a realidade jurídica, cujo fim seja sempre o bem ou a utilidade pública. A norma especializada militar resguarda bens jurídicos sensíveis e aos combatentes da pátria cabem a execução de tarefas essenciais à soberania do país. III – Obedecido o princípio da proporcionalidade nos vetores da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. O somatório das penas foi necessário para se resguardar a credibilidade da Administração Pública Militar e a especificidade da legislação penal castrense. IV – Apesar de haver vínculo em relação ao tempo e lugar, os delitos são de espécies diferentes, pois previstos em tipos distintos. V – Embargos Infringentes rejeitados. Decisão por maioria (STM, Embargos Infringentes e de Nulidade n. 7000284-95.2020.7.00.0000, rel. Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, j. 03 a 06/08/2020).

Fica muito clara a visão do culto Relator, acompanhada pela maioria, quando consigna no inteiro teor:

Assim, divirjo da corrente que emprega o art. 71 do Código Penal comum, pois, no caso, apesar de haver vínculo em relação ao tempo, lugar e condutas típicas homogêneas, a especialidade do Código Penal Militar deve se manter e seu respectivo emprego.

Fique atento, portanto, aos novos lances acerca do crime continuado na Justiça Militar da União. Conheça as divergências entre o CP e o CPM, e acompanhe os próximos passos dessa discussão.

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6 de Dezembro de 2020