(In)Convencionalidade Do Crime Militar De Posse Para Consumo Próprio De Substância Entorpecente

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11 de outubro5 min. de leitura

O delito do art. 290 do CPM, como se sabe, condensa as condutas de posse e de tráfico de substância entorpecente, dispondo da seguinte maneira:

Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar

Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, até cinco anos.

Desde há muito se discute o conflito aparente entre este dispositivo e a legislação penal comum de drogas e, note-se, não apenas diante da Lei n. 11.343/2006, particularmente em seus arts. 28 e 33, mas também em relação à antiga lei, a Lei n. 6.368/1976, especificamente nos seus arts. 12 e 16.

Mas foi com a Lei n. 11.343/2006 que a discussão se intensificou, inclusive causando cisão no entendimento das Turmas do Supremo Tribunal Federal, o que apenas foi pacificado – por maioria apertada, frise-se – quando do julgamento, pelo Pleno, em 21/10/2010, do  Habeas Corpus n. 103.684/DF, sob a relatoria do Ministro Ayres Britto, que, em seu voto, trouxe a lapidar frase “uso de drogas e o dever militar são como água e óleo, não se misturam”.

Desse julgado e de outros que lhe seguiram, duas premissas podem ser extraídas: i) aplica-se o art. 290 do CPM e não a Lei n. 11.343/2006 nos casos de posse de entorpecente nos quartéis; ii) não se aplica o princípio da insignificância nesses delitos.

Com a edição da Lei n. 13.491/2017, entretanto, a discussão se reascendeu, havendo vozes relevantes, como a de Fernando Galvão[1], que postularam a revogação do art. 290 do CPM, com o efeito de aplicação, a partir de então, dos arts. 28 e 33 da Lei de Drogas.

Com o devido respeito, não concordo com essa visão.

Como se disse, esse conflito já existia antes da Lei n. 13.491/17, não havendo razão para inaugurar nova linha interpretativa, prevalecendo a visão, na nossa compreensão, sedimentada no supracitado Habeas Corpus n. 103.684/DF.

A reforçar nosso pensamento, deve-se lembrar que o delito do art. 290 do CPM conhece complementação pelo inciso I do e não pelo inciso II art. 9º do mesmo Código, o que significa dizer que se trata de um delito que, embora próximo, não está igual na legislação penal comum, bastando dizer que condensa em tipo único o porte (ou posse) e o tráfico – diferentemente da Lei n. 11.343/2006, que cindiu as condutas em tipos penais diversos – e que o fato deve ser, na modalidade do caput, por exemplo, perpetrado em lugar sob a administração militar.

Ora, a Lei n. 13.491/2017 alterou o inciso II do art. 9º do CPM, deixando intacta a redação do inciso I, de maneira que um crime abrangido por este inciso não trasladou para o inciso II após a lei de 2017 e, nem mesmo, foi afetado em sua compreensão. Assim, repita-se, não há razão para inaugurar vertente interpretativa diversa daquela anterior à edição da Lei n. 13.491/2017, o que, note-se, encontra respaldo jurisprudencial (STM, Apelação n. 7000328-17.2020.7.00.0000, rel. Min. William de Oliveira Barros, j. 17/09/2020).

Mas a questão que gostaria de colocar à apreciação dos caros leitores na data de hoje é outra e resume-se em uma nova vertente que tem sido utilizada na defesa de réus em processos por posse de entorpecente em lugar sujeito à administração militar, conduta subsumida, especialmente pela aguerrida e técnica Defensoria Pública da União (v.g. Ação Penal Militar n. 7000122-17.2019.7.03.0303, que tem curso na 3ª Auditoria da 3ª CJM), que consiste na alegação de inconvencionalidade da criminalização, nestes casos, trazida pelo art. 290 do CPM.

Como linha de defesa a atacar a posse de entorpecente para consumo próprio, em outras palavras, surgiu a argumentação de que a criminalização em foco contraria o disposto em instrumento internacional celebrado pelo Brasil, notadamente a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena de 1988, incorporada ao ordenamento brasileiro pelo Decreto n. 154/91) e Convenção Única sobre Entorpecentes (Convenção de Nova York de 1961, introduzido no ordenamento pátrio pelo Decreto n. 54.216/64).

Sobre o controle de convencionalidade, não custa lembrar que, paralelamente ao controle de constitucionalidade, em que se verifica a validade de norma infraconstitucional com o chamado “bloco de constitucionalidade”, há também a necessidade de se verificar a compatibilidade de ditas normas com tratados internacionais sobre direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, tratados esses que não tenham passado pelo rito trazido pelo § 3º do art. 5º da Constituição Federal, ou seja, estes tratados não foram ”aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros”.

Quando um tratado passa por esse rito, equivalerá às emendas constitucionais, portanto, integrará o “bloco de constitucionalidade”, sendo cabível o controle de constitucionalidade; quando não passar por esse rito, terá força supralegal, mas abaixo da Constituição Federal, ocasião em que o teste de compatibilidade das normas infra será pelo controle de convencionalidade.

Sobre o tema, dispõe Flávio Martins (2020, p. 454):

Dessa maneira, essa configuração da “pirâmide brasileira”, com a presença de um segundo patamar formado por alguns tratados internacionais de direitos humanos, criou um dúplice controle de validade das leis: para que as leis sejam válidas, precisam ser compatíveis com a Constituição (e com o bloco de constitucionalidade) e com tais tratados supralegais. O controle de verificação da compatibilidade das leis com a Constituição é o já conhecido controle de constitucionalidade. O controle de verificação da compatibilidade das leis com os tratados e convenções supralegais é o controle de convencionalidade.

Posicionamo-nos como o fez o Supremo Tribunal Federal (e não como parte da doutrina): controle de convencionalidade se refere à verificação da compatibilidade das leis e demais atos normativos com os tratados de caráter supralegal (isso porque os tratados de direitos humanos que possuem status constitucional compõem, como vimos, o bloco de constitucionalidade, e, por isso mesmo, faz-se, quanto a eles, o controle de constitucionalidade).

Pois bem, a linha de defesa indicada sustenta que ao criminalizar a conduta do usuário, há afronta à Convenção de Viena de 1988 e a Convenção de Nova York de 1961, instrumentos que não passaram pelo rito do § 3º do art. 5º da CF, o que enseja a inconvencionalidade do art. 290 do CPM.

Discordo, mais uma vez com o devido respeito, dessa visão e, a rechaça-la, basta correr a leitura sobre recentes decisões do Superior Tribunal Militar, a exemplo do que se dispôs no Acórdão lavrado na Apelação n. 7000290-05.2020.7.00.0000, que teve por relator o Min. Carlos Vuyk de Aquino e que foi julgada em 20/08/2020.

Destaca-se dessa decisão, primeiro, que os diplomas internacionais indicados “não vedam a criminalização da posse de droga para uso próprio”, além de não possuírem status constitucional, como já cediço no Supremo Tribunal Federal.

No caso da Convenção de Viena, por exemplo, foi deixado a critério dos países signatários

a normatização sobre as questões relacionadas aos usuários de entorpecente, conforme se infere do artigo 3º, item 2:

‘(…) Reservados os princípios constitucionais e os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Parte adotará as medidas necessárias para caracterizar como delito penal, de acordo com seu direito interno, quando configurar posse, a aquisição ou o cultivo intencionais de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas para consumo pessoal, contra o disposto na Convenção de 1961, na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971 (…)’ (Grifo nosso).

A decisão da Corte Maior Castrense, em adição, muito proficuamente, transcreve decisão da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário com Agravo n. 674.823 (DJe: 14/08/2012), interposto contra Acórdão do próprio Superior Tribunal Militar:

(…) A mera referência às Convenções de Nova York (sic) e de Viena, promulgadas respectivamente pelos Decretos 54.216/1964 e 154/1991, em nada favorece ao ora agravante, inclusive porque tais instrumentos internacionais, cujo objeto é a prevenção e a repressão do tráfico de drogas, embora incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, não detêm, segundo a jurisprudência prevalecente desta Casa, envergadura constitucional. Além disso, não é correta a interpretação defendida de que vedariam a criminalização da posse de droga para uso próprio (…).

E conclui o v. Acórdão do STM que “a norma penal incriminadora descrita no art. 290 do Código Penal Militar é compatível com a ordem constitucional vigente, bem como com os Tratados supramencionados”.

Irretocáveis os argumentos do Superior Tribunal Militar, de maneira que, ecoando seus fundamentos, pode-se  concluir que não se deve assimilar a tese de inconvencionalidade do art. 290 do Código Penal Militar em relação ao usuário que porta entorpecente em lugar sujeito à administração militar.

REFERÊNCIAS:

MARTINS, Flávio.  Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020.

ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Novos crimes militares de drogas. Disponível em: https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2018/01/12/Novos-crimes-militares-de-drogas. Acesso em: 10 out. 2020

[1] ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Novos crimes militares de drogas. Disponível em: https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2018/01/12/Novos-crimes-militares-de-drogas. Acesso em: 10 out. 2020.

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