Fonte: AdpeGO
Comentários à Lei 12.830/2013 (investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia)
Foi recentemente publicada a Lei n.° 12.830, de 20 de junho de 2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia
Vamos conhecer um pouco mais sobre esta importante inovação legislativa.
Considerando que o assunto é extremamente polêmico, ressalto, desde já, que a presente exposição tem fins meramente didáticos, sem o objetivo deliberado de encampar ou criticar qualquer das diversas posições institucionais existentes.
Contexto em que foi editada a Lei
A investigação criminal tem sido um tema bastante discutido, atualmente, por conta da tramitação da PEC 37, no Congresso Nacional. Esta proposta de emenda constitucional acrescenta o § 10 ao art. 144 da CF/88, prevendo que a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo incumbem privativamente às Polícias Federal e Civil.
Há um acalorado debate envolvendo, de um lado, os Delegados de Polícia e, de outro, os membros do Ministério Público, conforme vocês já devem ter acompanhado pela imprensa ou nas redes sociais.
No contexto desta discussão, foi aprovada a Lei n.° 12.830/2013, que não retira a possibilidade de investigação de crimes por parte do Ministério Público (até porque se o fizesse, por meio de lei, seria inconstitucional), mas tinha como objetivo firmar a tese de que a decisão final das diligências a serem realizadas no inquérito policial seria do Delegado de Polícia.
Objetivos da Lei n.° 12.830/2013
Examinando o texto da Lei, parece-me que as entidades de classe dos Delegados de Polícia (que lutaram pelo projeto) tinham dois objetivos principais com a sua aprovação:
1) Obter o reconhecimento de que as funções exercidas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado, devendo, portanto, a classe ser equiparada, para todos os efeitos, com as demais carreiras de Estado (Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública etc.).
2) Fazer constar, no texto legal, a tese institucional de muitos membros da classe de que a decisão final sobre a realização ou não das diligências no inquérito policial pertence ao Delegado de Polícia.
Conforme será demonstrado à frente, o primeiro objetivo foi conseguido. Quanto ao segundo, no entanto, não se obteve êxito, considerando que o dispositivo que poderia sinalizar no sentido desta conclusão foi vetado pela Presidente da República.
Vejamos cada um dos artigos da nova Lei:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Segundo o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência, a investigação de crimes não é uma atividade exclusiva das Polícias Civil e Federal.
A investigação criminal pode ser realizada por meio de outros órgãos, como por exemplo: Comissões Parlamentares de Inquérito, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Banco Central, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), IBAMA, Ministério Público.
A investigação criminal promovida pela Polícia é feita por meio do inquérito policial (ou TCO), que tramita sob a presidência do Delegado de Polícia.
Vale ressaltar, para que não fique nenhuma dúvida, que o art. 1º não está afirmando que a investigação criminal somente pode ser realizada pelo Delegado de Polícia. De forma alguma. O que diz este artigo é que a presente Lei regula a investigação feita pelo Delegado (inquérito policial ou TCO).
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
Natureza jurídica
Consiste em uma importante conquista para a classe de Delegados de Polícia. Havia alguns entendimentos no sentido de que as funções desempenhadas pelo Delegado não poderiam ser classificadas como jurídicas, considerando que seriam atividades materiais de segurança pública, conforme previsão do art. 144 da CF/88.
Tratava-se, contudo, de conclusão muito estreita, tendo em vista que o cargo de Delegado de Polícia é privativo de bacharel em Direito e muitas das funções por ele desempenhadas são atividades de aplicação concreta das normas jurídicas aos fatos apresentados, como é o caso do indiciamento, da representação por medidas cautelares e da elaboração do relatório.
Essenciais e exclusivas
A atividade policial é essencial em um Estado de Direito, sendo também exclusiva do Poder Público, considerando que, mesmo em sistemas liberais com modelos de Estado mínimo, não se chegou ao ponto de conceber a possibilidade de transferência das funções policiais para a iniciativa privada.
O art. 2º da Lei veda a investigação de crimes por parte de particulares, como no caso da “investigação criminal defensiva”?
Não. Quando o art. 2º utiliza a palavra “exclusivas”, ele não está afirmando que a apuração de infrações penais, por qualquer meio, é uma atribuição apenas do Estado. O que se preconiza é que a função de apuração de infrações penais exercida por meio do aparato estatal e conduzida por Delegado de Polícia não pode ser transferida à iniciativa privada. Em suma, veda-se a “terceirização” ou “privatização” da atividade investigativa estatal.
Não se pode concluir, ao extremo, que somente o Poder Público possa apurar crimes. A imprensa, os órgãos sindicais, a OAB, as organizações não governamentais e até mesmo a defesa do investigado também podem investigar infrações penais. Qualquer pessoa (física ou jurídica) pode investigar delitos, até mesmo porque a segurança pública é “responsabilidade de todos” (art. 144, caput, da CF/88).
Obviamente que a investigação realizada por particulares não goza dos atributos inerentes aos atos estatais, como a imperatividade, nem da mesma força probante, devendo ser analisada com extremo critério, não sendo suficiente, por si só, para a edição de um decreto condenatório (art. 155 do CPP). Contudo, isso não permite concluir que tais elementos colhidos em uma investigação particular sejam ilícitos ou ilegítimos, salvo se violarem a lei ou a Constituição.
Registre-se que o projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei n.° 156/2009) prevê, expressamente, o instituto da “investigação criminal defensiva” que, mesmo sem estar ainda regulamentado, é plenamente possível pelas razões acima expostas, bem como por ser um corolário da garantia constitucional da ampla defesa.
Qual é a abrangência da expressão “polícia judiciária”?
As Polícias Civil e Federal exercem duas funções principais:
a) Investigar infrações penais, coletando provas sobre autoria e materialidade;
b) Auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo ordens judiciais, como o mandado de prisão, a busca e apreensão, a condução coercitiva, entre outros.
Para uma primeira corrente da doutrina, a expressão “polícia judiciária” abrange as Polícias Civil e Federal no exercício da investigação de infrações penais ou no auxílio do Poder Judiciário. Em suma, polícia judiciária é a Polícia Civil ou Polícia Federal desempenhando quaisquer de suas atribuições.
Esta posição está baseada na interpretação do art. 4º, caput, do CPP, que não faz distinção ao utilizar o termo:
Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
Para uma segunda corrente, a Polícia Civil e a Polícia Federal podem ser “polícia judiciária” ou “polícia investigativa”, a depender da função que estejam exercendo. Assim, a expressão “polícia judiciária” não abrange todas as atribuições da Polícia, mas apenas parte delas. É preciso, portanto, diferenciar: “polícia judiciária” é a Polícia Civil ou Polícia Federal quando estiver praticando atos no auxílio do Poder Judiciário. Por outro lado, quando a Polícia atuar na investigação e coleta de provas sobre a autoria e materialidade de infrações penais, ela é “polícia investigativa” (e não “polícia judiciária”).
Esta posição encontra fundamento no art. 144, § 1º, I, da CF/88, que, diferencia a função de “polícia judiciária” da atribuição da Polícia de apurar infrações penais. Veja:
Art. 144 (…)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I – apurar infrações penais (…)
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
A primeira posição é majoritária na doutrina e na jurisprudência (vide, por exemplo, a redação da Súmula Vinculante n.° 14-STF). No entanto, percebe-se, claramente, que o art. 2º da Lei n.° 12.830/2013 adotou a segunda corrente, que representa o entendimento prevalente entre os Delegados de Polícia.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
O Código de Processo Penal e a legislação processual extravagante utilizam, em várias oportunidades, a expressão “autoridade policial”. Vale ressaltar que até mesmo a CF/88 emprega esta terminologia em uma oportunidade (art. 136, § 3º, I).
Quem é considerado “autoridade policial”?
Existem duas correntes sobre o assunto:
1ª) Para uma primeira posição, autoridade policial é o Delegado de Polícia (Civil ou Federal) e, no caso de investigações militares, o Oficial militar responsável pelo inquérito.
2ª) Em um segundo entendimento, autoridade policial não seria necessariamente o Delegado de Polícia, mas sim o agente público estatal designado para exercer as funções de autoridade policial, podendo ser um policial civil ou militar, por exemplo. É a tese defendida por alguns para que os policiais militares possam lavrar termo circunstanciado de ocorrência no caso de infrações de menor potencial ofensivo (art. 69 da Lei n.° 9.099/95).
Feita a ressalva quanto à existência desta discussão, deve-se deixar claro que a posição amplamente majoritária é no sentido de que a autoridade policial é, realmente, apenas o Delegado de Polícia, sendo importante que assim o seja, pois as atividades por ele desempenhadas exigem conhecimentos jurídicos e responsabilidade proporcional a este cargo.
A previsão deste § 1º reforça os argumentos da 1ª corrente acima exposta, tendo em vista que o termo circunstanciado de ocorrência é um procedimento previsto em lei que tem como objetivo apurar uma infração penal.
Este § 1º proíbe que sejam realizadas investigações criminais por outros órgãos?
Não. Deve-se esclarecer que este § 1º não veda que investigações criminais sejam conduzidas por outros órgãos. Isso porque este dispositivo deverá ser interpretado sistematicamente com o art. 4º, caput e parágrafo único, do CPP, que continuam em vigor.
Assim, a correta exegese do § 1º é a de que o Delegado de Polícia é a autoridade policial, de forma que, no inquérito policial e nos demais procedimentos de investigação realizados pela polícia, é ele o responsável pela condução.
Em suma, a Lei confirma aquilo que a doutrina já ensinava: é possível a investigação realizada por meio de outros órgãos, no entanto, a presidência do inquérito policial (ou de outros procedimentos investigatórios da polícia) é incumbência do Delegado de Polícia.
O fato do Delegado de Polícia possuir a prerrogativa da condução do inquérito policial significa dizer que ele pode se negar a cumprir as diligências requisitadas pelo Ministério Público?
Não. O inquérito policial possui como característica o fato de ser um procedimento discricionário, ou seja, o Delegado de Polícia tem liberdade de atuação para definir qual é a melhor estratégia para a apuração do delito. Justamente por conta disso, a legislação previu que a autoridade policial pode indeferir diligências requeridas pelo indiciado ou pela vítima (art. 14 do CPP). Este indeferimento, por óbvio, está sujeito ao controle jurisdicional, podendo ser revisto caso irrazoável. Isso porque discricionariedade não se confunde com arbitrariedade.
A discricionariedade do IP, no entanto, é mitigada em se tratando de requisições formuladas pelo Ministério Público. Considerando que o Parquet é o titular da ação penal e que uma das finalidades do IP é coletar elementos informativos para a formação do convencimento (opinio delicti) do membro do MP, nada mais lógico que este tenha a prerrogativa de requisitar (com força de obrigatoriedade) a realização de diligências que, para ele, irão ser de fundamental importância na construção do seu convencimento.
Além de lógico e coerente com o sistema, a prerrogativa de requisição de diligências pelo Ministério Público é prevista expressamente no CPP e na própria CF/88:
Código de Processo Penal
Art. 13. Incumbirá ainda à autoridade policial:
II – realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público;
Constituição Federal
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
Vale ressalvar, no entanto, que, se a requisição do membro do Ministério Público for manifestamente ilegal, a autoridade policial não é obrigada a atendê-la, devendo, de forma motivada, recusar o cumprimento.
§ 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
Para que o Delegado de Polícia possa realizar a atividade investigatória é indispensável que detenha meios de coleta das provas. O CPP traz, em seus arts. 6º e 7º, um rol de diligências investigatórias que podem ser determinadas pela autoridade policial (Delegado de Polícia).
Como o CPP é antigo e foi idealizado tendo como alvo crimes violentos, patrimoniais e sexuais, o elenco dos arts. 6º e 7º encontra-se há muito tempo desatualizado, especialmente diante das novas formas de criminalidade (crimes de escritório, cibernéticos etc.). Justamente por isso, a doutrina e a jurisprudência afirmam, de forma uníssona, que as diligências ali previstas são exemplificativas.
Na verdade, sempre se defendeu que o Delegado pode, diretamente, requisitar quaisquer provas necessárias à investigação, ressalvadas aquelas diligências cuja CF/88 exige autorização judicial (cláusula de reserva de jurisdição), tais como interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e fiscal, busca apreensão etc.
Desse modo, o dispositivo apenas reforça o entendimento da doutrina e da jurisprudência, não consistindo propriamente uma inovação no mundo jurídico.
Este § 2º proíbe que o Ministério Público requisite, ao Delegado de Polícia, diligências investigatórias?
Não. Os arts. 13 e 16 do CPP continuam em vigor e não foram afetados por este § 2º. Como já exposto acima, a prerrogativa do Ministério Público de requisitar diligências investigatórias encontra fundamento constitucional (art. 129, VIII), de sorte que não poderia ser abolida por lei infraconstitucional.
§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade. (PARÁGRAFO VETADO)
O § 3º do art. 2º foi vetado pela Presidente da República.
A chefe do Poder Executivo apresentou as seguintes razões para o veto:
“Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico-jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Desta forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícias e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal.”
O dispositivo vetado era o que mais gerava polêmica no projeto e o que recebia as maiores críticas por parte dos membros do Ministério Público que, por meio de suas associações, trabalharam pela sua rejeição.
Na prática forense, observa-se, com alguma frequência, a divergência de opiniões entre o Delegado que preside o inquérito policial e o Promotor de Justiça/Procurador da República que atua no caso sobre a pertinência ou não de determinadas diligências.
O Delegado de Polícia conclui o inquérito, faz o relatório e envia para apreciação do Ministério Público. Este, nos termos do art. 16 do CPP, entende que é necessária a realização de novas diligências e faz a requisição nesse sentido. Sucede que, em algumas oportunidades, o Delegado reputa que tais diligências são dispensáveis, inócuas ou mesmo inadequadas, recusando-se a cumprir a requisição e devolvendo o IP. O Ministério Público, como regra, não concorda com este juízo de valor feito pela autoridade policial e insiste nas diligências, surgindo, assim, um incômodo e improdutivo impasse.
Como já explicado linhas atrás, para a maioria da doutrina e da jurisprudência, não há discricionariedade do Delegado de Polícia na condução do IP no que tange às requisições formuladas pelo Ministério Público. Assim, para a posição majoritária, a autoridade policial não pode se recusar a cumprir a requisição ministerial de novas diligências, salvo em caso de flagrante ilegalidade.
O § 3º do art. 2º do projeto aprovado tinha como objetivo mudar este entendimento majoritário, fazendo com que constasse, de forma expressa em lei, que a condução da investigação criminal seria feita pelo Delegado de Polícia conforme o seu livre convencimento técnico-jurídico. Em outras palavras, o objetivo era fazer com que a decisão final sobre a realização ou não das diligências investigatórias no inquérito policial ficasse a cargo do Delegado de Polícia.
O outro propósito deste § 3º era o de reafirmar a tese expressa na PEC 37, qual seja, o de que a investigação criminal é atribuição da Polícia, sob a condução do Delegado.
O veto presidencial pode ser feito por duas razões:
• Quando a norma aprovada contraria o interesse público (veto político);
• Quando a norma aprovado é inconstitucional (veto jurídico).
No caso concreto, a Presidente vetou o § 3º alegando “contrariedade ao interesse público” (veto político). Apesar disso, penso que, mesmo se tivesse sido sancionado, este § 3º somente poderia ser considerado válido se não provocasse mitigação do poder de requisição do Ministério Público. Em outras palavras, se o veto for derrubado, este § 3º deverá ser interpretado conforme a Constituição (art. 129, VIII), no sentido de que o Delegado de Polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, não podendo, contudo, negar cumprimento às requisições do Ministério Público, considerando que estas possuem previsão em norma constitucional de eficácia plena, que não pode ser restringida por lei.
Vejam agora que interessante: mesmo o dispositivo tendo sido vetado, o Delegado de Polícia continua conduzindo a investigação criminal policial (inquérito policial e termo circunstanciado) de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade. Isso porque, como já afirmado, o livre convencimento técnico-jurídico do Delegado decorre da característica do IP de ser discricionário. Esta discricionariedade, contudo, não é absoluta, conforme também explicado, não podendo a autoridade policial recusar cumprimento às diligências requisitadas pelo Ministério Público. A isenção e imparcialidade, por seu turno, são consequências dos princípios da impessoalidade e moralidade, insculpidos no art. 37, caput, da CF/88.
Atenção, contudo, no caso de provas de concurso público: se a alternativa da questão afirmar que o Delegado de Polícia possui livre convencimento técnico-jurídico na condução da investigação criminal, tal assertiva é INCORRETA, considerando que o examinador estará apenas querendo saber se o candidato conhece o fato de que o dispositivo que previa isso foi vetado.
Observação final: apesar de não estar explícito, as razões de veto divulgadas sinalizam que a Presidência da República concorda com a tese de que o Ministério Público detém o poder de investigação. De qualquer modo, juridicamente, a opinião do Poder Executivo quanto ao tema pouco importa, considerando que a questão será dirimida, de forma definitiva, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ou pelo Congresso Nacional, se aprovada a PEC 37.
§ 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
Inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei:
Atualmente, as duas únicas formas típicas de investigação criminal previstas em lei e conduzidas por Delegado de Polícia são o inquérito policial e o termo circunstanciado.
Avocar: ocorre quando o superior hierárquico retira o Delegado da condução do IP ou do TC e passa ele próprio a dirigir o procedimento.
Redistribuir: ocorre quando o superior hierárquico retira o Delegado da condução do IP ou do TC e designa outro Delegado para dirigir o procedimento.
Superior hierárquico:
É definido pela lei orgânica de cada Polícia e pelos demais atos normativos internos.
Em linhas gerais, pode-se apontar o seguinte:
• Polícia Civil: o superior hierárquico com poderes para avocar ou redistribuir os procedimentos é o Delegado-Geral.
• Polícia Federal: esta função de superior hierárquico é exercida pelo Superintendente-Regional.
Instrumento por meio do qual o procedimento pode ser avocado: despacho fundamentado exarado pelo superior hierárquico.
Hipóteses nas quais poderá haver a avocação ou a redistribuição:
a) Motivo de interesse público;
b) Se o Delegado descumprir os procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
A avocação ou a redistribuição do procedimento investigatório viola a CF/88?
Não, desde que fundamentada. Isso porque tanto o IP como o TC são procedimentos administrativos, submetidos, portanto, às regras aplicáveis aos atos administrativos. Os atos administrativos podem ser avocados, delegados ou redistribuídos, desde que não haja previsão legal em sentido contrário. Trata-se de uma decorrência do poder hierárquico e, como a estrutura da Polícia é hierarquizada, a ela se aplica esta característica.
Análise crítica da previsão
Rigorosamente, este § 4º seria dispensável, considerando que todo ato administrativo precisa ser motivado. No entanto, é salutar a previsão para que haja uma disciplina mais nítida ao tema, garantindo maior segurança jurídica. Ademais, existe corrente (minoritária) que sustenta que alguns atos administrativos não precisam ser motivados. Desse modo, repita-se, foi acertada a previsão.
O que se lamenta é a utilização de expressões tão vagas na definição das hipóteses nas quais é possível a avocação e a redistribuição do procedimento. Isso enfraquece o controle que poderia ser exercido sobre tais atos, a fim de evitar avocações ou redistribuições casuísticas.
§ 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
É extremamente salutar a previsão expressa de que a remoção do Delegado precisa ser um ato fundamentado como forma de minimizar favorecimentos e perseguições decorrentes do trabalho de tais profissionais.
Critica-se o fato de a lei não ter elencado hipóteses nas quais seria permitida a remoção do Delegado de Polícia, o que certamente seria muito mais relevante sob o ponto de vista da segurança jurídica. Isso porque, muitas vezes, a remoção ex officio de um Delegado que incomode o Governante ou a direção da Polícia para outra Delegacia pode ser motivada por argumentos como “necessidade do serviço” sem que a veracidade de tal fundamentação possa, em muitos casos, ser controlada de forma satisfatória pelo Poder Judiciário.
A remoção de que trata este § 5º abrange apenas a transferência para cidades diferentes?
Não. O objetivo da norma é o de resguardar o Delegado de Polícia de remoções motivadas por razões espúrias. Esta previsão traz a garantia de que a autoridade policial não será afastada das atividades que está exercendo sem que haja um motivo justificado. Assim, a transferência do Delegado de uma Delegacia para outra deverá também ser fundamentada.
Com esta nova previsão, o Delegado de Polícia passou a gozar da garantia da inamovibilidade?
Não. A inamovibilidade é uma garantia constitucional, conferida aos membros da Magistratura (art. 95, II), do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, “b”) e da Defensoria Pública (art. 134, § 1º), por meio da qual se assegura aos integrantes dessas carreiras que eles não serão removidos do juízo ou ofício ondem atuam nem afastados dos processos em que funcionam, salvo se, por vontade própria, ou por motivo de interesse público.
Quando é assegurada a inamovibilidade aos membros de determinada carreira, isso significa que a regra é a impossibilidade de remoção ex officio. Excepcionalmente, admite-se por motivo de interesse público.
No caso dos Delegados de Polícia, não há uma regra constitucional impedindo a remoção ex officio. A previsão do § 5º simplesmente afirma que a remoção do Delegado de Polícia, seja voluntária ou de ofício, deve ser motivada (como, aliás, todos os atos administrativos).
Lamenta-se o fato dos Delegados de Polícia ainda não gozarem de inamovibilidade, devendo ser esta realidade alterada como forma de resguardar o interesse público das investigações.
§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
A previsão deste § 6º faz constar, em lei, algumas características do indiciamento que já eram consagradas na doutrina:
“O indiciamento é o ato resultante das investigações policiais por meio do qual alguém é apontado como provável autor de um fato delituoso. Cuida-se, pois, de ato privativo da autoridade policial que, para tanto, deverá fundamentar-se em elementos de informação que ministrem certeza quanto à materialidade e indícios razoáveis de autoria.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 111).
Houve, no entanto, uma evolução no tratamento do tema ao se exigir, de forma textual, que o ato de indiciamento seja motivado, o que não era feito em uma grande quantidade de casos. Veja o que afirma o membro do MP paulista Mário Sérgio Sobrinho:
“A legislação brasileira deveria evoluir, adotando a regra da explicitação das razões para a classificação do fato em determinado tipo penal, (…) ao mesmo tempo em que a lei deveria fixar a obrigatoriedade da motivação do ato de indiciamento. É inegável que o ato de indiciamento exige juízo de valor, o qual, nos meandros do inquérito policial, é exercitado pela autoridade policial que preside a investigação. Por isso, dever-se-ia exigir desta a explicitação de suas razões, ao determinar o indiciamento, as quais deveriam ser apresentadas no inquérito policial para que fossem conhecidas pelo indiciado e seu defensor, pelo órgão do Ministério Público e, quando necessário, pelos juízes e tribunais.” (A identificação criminal. São Paulo: RT, 2003, p. 100).
Vale ressaltar que, mesmo antes desta previsão legal, alguns Estados possuíam atos normativos infralegais determinando que o ato de indiciamento, realizado pela autoridade policial, deveria ser fundamentado. É o caso, por exemplo, da Portaria n.° 18/98 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo. No âmbito da Polícia Federal, mesmo antes da Lei, o ato de indiciamento já era obrigatoriamente motivado, por força da Instrução Normativa n.° 11/2001.
Cumpre mencionar, por fim, que, sendo o ato de indiciamento privativo do Delegado de Polícia, é equivocado e inadmissível que o juiz, o membro do Ministério Público ou a CPI requisitem o indiciamento de qualquer suspeito. Esse era o entendimento da doutrina antes da Lei e que agora é reforçado com este § 6º. Confira o que há anos já ensinava Nucci:
“(…) não cabe ao promotor ou ao juiz exigir, através de requisição, que alguém seja indiciado pela autoridade policial, porque seria o mesmo que demandar à força que o presidente do inquérito conclua ser aquele o autor do delito. Ora, querendo, pode o promotor denunciar qualquer suspeito envolvido na investigação criminal (…)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução penal. São Paulo: RT, 2006, p. 139).
Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
O Delegado de Polícia deverá receber o mesmo tratamento protocolar que recebem os Magistrados, membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e os Advogados. Assim, por exemplo, o pronome de tratamento a ser utilizado quando em correspondências oficiais aos Delegados passa a ser “Vossa Excelência”.
Alegação de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa
A presente lei resultou de um projeto apresentado por um Deputado Federal. Diante disso, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) defendeu, em nota técnica, que haveria uma inconstitucionalidade por vício de iniciativa tendo em vista que a lei dispõe sobre o regime jurídico de servidores públicos e a iniciativa para esta matéria pertenceria ao chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 61, § 1º, II, “c”, da CF/88:
§ 1º – São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
II – disponham sobre:
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
Com o devido respeito, penso que a tese não prospera. A Lei n.° 12.830/2013 não versa sobre o regime jurídico dos Delegados de Polícia, ou seja, direitos, deveres, responsabilidades, remuneração. A Lei versa sobre a atuação do Delegado de Polícia na investigação criminal. Mesmo quando a Lei impõe requisitos e prerrogativas para a carreira de Delegado, como no caso do art. 3º, o que se observa é que tais aspectos estão relacionados com a atuação da autoridade policial na investigação, não havendo o propósito de regular a relação jurídica existente entre os Delegados de Polícia e o Poder Público. A Lei n.° 12.830/2013 versa, portanto, sobre matéria atinente ao direito processual penal (art. 22, I, da CF/88), sendo de iniciativa concorrente (iniciativa concorrente significa que não apenas o Presidente da República pode propor projeto de lei sobre o tema, podendo o processo legislativo ser de iniciativa parlamentar).
Bibliografia
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução penal. São Paulo: RT, 2006.
SÉRGIO SOBRINHO, Mário. A identificação criminal. São Paulo: RT, 2003.
Artigo elaborado em 23/06/2013.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia. Disponível em: . Acesso em: 25-09-2014.
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