Momento Filosofia OAB: Validade, legitimidade e eficácia: a desuetudo na teoria pura do direito

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02 de março4 min. de leitura

Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Inicialmente, Kelsen tinha uma posição radicalmente normativa, na qual o elemento essencial do direito era a validade formal, a qual diz respeito não ao reconhecimento do direito pela comunidade, e sim à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do direito no plano normativo. Contudo, a experiência o fez perceber que o direito pressupõe o mínimo de eficácia. Isto porque a “norma fundamental só se supõe quando o ordenamento que ela deriva é eficaz” (GUIBOURG, 1986). Ou seja, Kelsen passa a conceber que a eficácia geral é condição da validade de um ordenamento jurídico, contudo não corresponde ao seu fundamento.
Analisando as interferências “extrassistemáticas” no ordenamento jurídico, Kelsen fala da revolução, cujas consequências seriam mais bruscas, e do costume, um feito extrassistemático paulatino. A revolução é toda modificação da constituição que não ocorre segundo as disposições da constituição em vigor. Como a validade de uma norma depende de sua eficácia, quando, por algum motivo, as normas emitidas por um governo deixam de ser aplicadas, o sistema perde a sua validade, e logo outro é instituído, à luz de uma nova norma fundamental, sendo construído um novo ordenamento jurídico coercitivo (GUIBOURG, 1986).
As constituições escritas geralmente contêm as regras através das quais podem ser modificadas. Assim, o “princípio de que a norma de uma jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade” – grifos nossos (KELSEN, 2000, p. 233).
O princípio da legitimidade só não encontra qualquer aplicação no caso de uma revolução, que, como já dito, “é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma constituição” (KELSEN, 2000, p. 233).
Contudo, geralmente, uma revolução (golpe de Estado) somente anula a antiga constituição e algumas leis politicamente essenciais, mas uma grande parte das leis promulgadas sob a égide da antiga constituição permanece no ordenamento. Isso só é possível através do fenômeno da recepção, ou seja, “o que existe não é uma criação de um direito inteiramente nova, mas a recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra” (KELSEN, 2000, p. 233). Nesse caso, “o imediato fundamento de validade das normas jurídicas recebidas sob a nova Constituição, revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova” (KELSEN, 2000, p. 233-234).
Contudo, a validade de uma norma não se identifica com a sua eficácia. Assim, uma constituição só é considerada eficaz se as normas por ela postas forem, globalmente e em regra, aplicadas e observadas. Ou seja, se a constituição revolucionária e as normas dela decorrentes não forem aplicadas pelos órgãos competentes, os quais continuem a aplicar a constituição antiga e o ordenamento jurídico dela decorrente, não haveria motivo para pressupor uma nova norma fundamental no lugar da antiga. Neste caso, a revolução não seria interpretada como um processo produtor de direito novo, mas, pelo contrário, seria tida como crime de alta traição. Sendo assim, “o princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade” (KELSEN, 2000, p. 235).
Como já dissemos, Kelsen abandona o normativismo extremado fazendo uso da ideia de eficácia. Segundo o Kelsen mais maduro, “não pode negar-se que uma ordem jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica singular, perde a sua validade quando deixa de ser eficaz” (KELSEN, 2000, p. 236). Não podemos negar que existem numerosos casos em que as normas jurídicas são consideradas válidas, mas não são, ou ainda não são, eficazes.
A eficácia, na Teoria Pura do Direito, é condição de validade da ordem jurídica como um todo, bem como da norma jurídica singular, individual. Ou seja, as normas deixam de ser consideradas válidas quando deixam de ser eficazes. É importante ressaltar que a eficácia não é fundamento de validade, mas condição de validade. Dando um exemplo prático sobre a diferença entre fundamento e condição: um homem, para viver, tem que nascer (fundamento), mas, para permanecer vivo, tem que comer (condição). Assim, nem o nascimento, nem a alimentação se identificam com a própria vida. Uma condição não se identifica com aquilo que condiciona, sendo assim, a eficácia não pode ser identificada com a validade (KELSEN, 2000, p. 236).
As normas de uma ordem jurídica valem porque a norma fundamental é pressuposta como válida, e não porque não eficazes. Contudo, essas mesmas normas só valem se esta ordem jurídica for eficaz, ou seja, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Assim, Kelsen conclui:
Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada (…) também não se considera como válida uma norma que nunca é observada ou aplicada. E, de fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, quer dizer, através da chamada desuetudo. A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente (KELSEN, 2000, p. 237).
A desuetudo nada mais é que a figura do desuso, que Kelsen incluiu posteriormente em sua teoria, reconhecido o caráter negativo do costume. Dito de outra forma, o costume tanto pode ser fato gerador de direito quanto pode derrogar normas juridicamente válidas, quando estas não são mais eficazes.
 
REFERÊNCIAS
GUIBOURG, Ricardo A. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Chiara Ramos – Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
 


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