O MPT e a MP: o Ministério Público do Trabalho e a MP 905/2019

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A repetição do título não é falta de criatividade. É proposital! Menos de três meses atrás comentei brevemente neste blog uma proposta de aditivo à MP 881/2019, a qual incluindo um parágrafo único no art. 627-A da CLT, pretendia conferir precedência ao termo de ajuste de conduta firmado perante a autoridade trabalhista, em relação aos demais títulos. Felizmente, a proposta foi rejeitada no Congresso Nacional.

Não por acaso retornamos ao mesmo preceito normativo, que sofreu alterações com a recém-editada MP 905/2019, com destaque para os parágrafos:

Art. 627-A.  Poderá ser instaurado procedimento especial para a ação fiscal, com o objetivo de fornecer orientações sobre o cumprimento das leis de proteção ao trabalho e sobre a prevenção e o saneamento de infrações à legislação por meio de termo de compromisso, com eficácia de título executivo extrajudicial, na forma a ser disciplinada pelo Ministério da Economia.               (Redação dada pela Medida Provisória nº 905, de 2019)

1º  Os termos de ajustamento de conduta e os termos de compromisso em matéria trabalhista terão prazo máximo de dois anos, renovável por igual período desde que fundamentado por relatório técnico, e deverão ter suas penalidades atreladas aos valores das infrações contidas nesta Consolidação e em legislação esparsa trabalhista, hipótese em que caberá, em caso de descumprimento, a elevação das penalidades que forem infringidas três vezes.                (Incluído  pela Medida Provisória nº 905, de 2019)

2º  A empresa, em nenhuma hipótese, poderá ser obrigada a firmar dois acordos extrajudiciais, seja termo de compromisso, seja termo de ajustamento de conduta, seja outro instrumento equivalente, com base na mesma infração à legislação trabalhista.    (Incluído  pela Medida Provisória nº 905, de 2019)

Por meio de uma legislação excepcional – e sem os pressupostos constitucionais de relevância e urgência – foram incluídos dois parágrafos no art. 627-A da CLT: o primeiro, estabelecendo um prazo de validade ao termo de ajuste de conduta de até dois anos, renovável com base em relatório técnico, atrelando os valores das penalidades acessórias ao patamar da multa administrativa; o segundo, dispondo que a empresa não pode ser obrigada a firmar mais de um termo de compromisso, termo de ajustamento de conduta ou instrumento equivalente, com base na mesma infração à legislação trabalhista.

Tomarei a liberdade de inverter a ordem, como pediria a boa técnica legislativa, iniciando pelos aspectos gerais, para, então, adentrar à economia intestina do termo de ajuste de conduta (TAC).

Antes de mais nada, o termo de ajuste de conduta é SEMPRE consensual. Nenhum interessado foi ou é obrigado, forçado ou coagido a firmar o TAC. A propósito, o TAC é, por definição, dependente da manifestação expressa de vontade do interessado.

O conceito do TAC é normativo e pode ser extraído de uma interpretação conjunta do art. 5º, § 6º da Lei n.º 7.347/85 c/c com o art. 1º, da Resolução 179/2017, CNMP. O termo de ajuste de conduta (TAC) constitui um negócio jurídico pelo qual o interessado compromete-se a adequar sua conduta aos ditames legais, mediante cominações, com eficácia de título executivo extrajudicial.

Sem meias palavras, pode-se afirmar que o § 2º, do art. 627-A, inserido pela MP 905/2019 diz o óbvio, e, portanto, seria simplesmente dispensável. Ocorre que o mesmo dispositivo ignora que de um mesmo fato (infração) podem surgir diversas pretensões, seja de cunho reparatório, inibitório, compensatório, entre outras. E um TAC parcial, que abranja tão somente uma reparação pelos danos materiais causados, não pode impedir a celebração consensual – que passe a repetição – de um segundo instrumento para prevenir novas violações, isto é, com feição inibitória, por exemplo.

Sendo esse o intuito do legislador monocrático, há flagrante inconstitucionalidade por óbice à reparação integral do dano (art. 5º, inciso X, CR), direito fundamental cuja diretiva foi expressamente encampada pelo processo coletivo (art. 11, da Lei 4.767/65 e art. 100, da Lei 8.078/90).

Restaria o argumento que remanesce a via judicial para a complementação das pretensões olvidadas pelo TAC.

A partir desse contra-argumento, podemos adentrar na análise do § 1º do art. 627-A da CLT, com a redação conferida pela MP 905/2019. Nessa altura, ninguém ousaria contestar a afirmação de que a ação civil pública é uma ação constitucional, uma garantia fundamental, instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Trata-se de preceito de eficácia ampla e ilimitada, o qual, na lógica dos direitos fundamentais, merece a máxima efetividade.

Um dos instrumentos de atuação institucional do Ministério Público é a promoção da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III, CR). E o art. 5º, § 6º, da Lei 7.347/85 confere aos órgãos públicos legitimados ao ajuizamento da ação civil pública a possibilidade de proporem a celebração de termo de ajuste de conduta para a tutela dos mesmos interesses metaindividuais. Assim, o TAC possui o mesmo objeto de uma ação civil pública, sendo, portanto, seu sucedâneo extrajudicial.

Por conseguinte, o TAC representa para o Ministério Público um instrumento de atuação institucional de índole extrajudicial, afeto, portanto, à atividade finalística do “Parquet”.

Para além da independência funcional, assegurada ao membro, de acordo com a qual este somente se subordina à Constituição e às leis do país, o Ministério Público, enquanto instituição, é autônomo.

Uma das dimensões dessa autonomia é precisamente a autonomia funcional (ao lado da autonomia administrativa e financeira), de modo que o Ministério Público, enquanto órgão estatal, não se vincula ou subordina ao entendimento dos Poderes de Estado. Mas MP 905/2019 inverte essa lógica e vitupera a autonomia funcional do Ministério Público, assegurada no art. 127, § 2º, da CR, impondo condicionantes prévios quanto ao tempo de vigência e ao conteúdo do TAC, sem qualquer consideração relativa aos aspectos envolvidos na lesão.

Nesse ponto, se esses aspectos meritórios pudessem ser impostos de antemão, não poderiam vincular o Ministério Público do Trabalho e tampouco seus membros, em qualquer interpretação que fosse minimamente conforme à Constituição.

Poderiam ainda ser tecidas diversas considerações quanto à natureza da multa pactuada no TAC – inegavelmente “astreinte”, na linha do Ajuste como sucedâneo da ação civil pública – totalmente invertida pela MP, mas fiquemos jungidos “apenas” aos aspectos constitucionais e retornemos à reparação integral.

Existem lesões cujas reparações demandam bem mais do que o prazo de dois anos para serem saneadas, ao mesmo tempo em que a efetividade das medidas reparatórias, compensatórias ou inibitórias dependem, invariavelmente, da ameaça de imposição de uma coerção indireta que tenha como efeito dissuadir o comportamento contrário ao direito. Valor da multa e prazo de vigência não se tratam, como se pode pensar à primeira vista, de aspectos meramente circunstanciais; ao contrário, em determinadas hipóteses, podem mesmo inviabilizar a atuação resolutiva na tutela de interesses metaindividuais, implicando restrição de objeto, sem falar na impossibilidade de celebração de mais de um TAC em razão da mesma violação.

A “mens legislatoris”, não há dúvidas, foi novamente atacar um instrumento de atuação institucional do Ministério Público do Trabalho, pois dentre os legitimados concorrentes, é quem, de longe mais propõe a celebração de termos de ajuste de conduta na esfera trabalhista.

Mas não se trata de uma questão puramente coorporativa, a MP 905/2019 vitupera o direito de todos nós, enquanto sociedade, de reparação integral dos interesses metaindividuais, restringindo o manejo de um instrumento que constitui um equivalente de uma ação constitucional. Mirou-se no MPT, atingiu-se toda a coletividade!

 


Carolina Marzola Hirata. Procuradora do Trabalho. Ex-Procuradora do Estado de Goiás. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil pela PUC-Minas. Mestre em Direitos Fundamentais Coletivos e Difusos pela Unimep. Autora de livros e artigos jurídicos. Professora do Gran Cursos On Line nas disciplinas de Processo do Trabalho e Regime Jurídico do Ministério Público da União e em cursos de pós-graduação.

 

 

 

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