Noções Elementares de Política Comercial Brasileira – Parte II

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Noções Elementares de Política Comercial Brasileira - Parte IIEm sequência ao que vimos na semana passada, estendamos um pouquinho mais este nosso relato histórico, antes de analisarmos as questões contemporâneas. Ao longo das décadas, o arranjo provisório do GATT foi o que bastou para que os países integrantes negociassem entre si sucessivas rodadas de liberalização comercial, que, no mais das vezes, levavam à redução de tarifas de importação de bens. Uma vez consolidadas entre as partes contratantes, tais tarifas, como regra geral, não poderiam ser elevadas, e os benefícios daí decorrentes deveriam estender-se a todos os participantes. O Brasil teve participação discreta nessas rodadas, uma vez que dele se exigia menos em termos de liberalização. Isso se deveu, em essência, ao entendimento consagrado no artigo XVIII, 2, que basicamente permitia a países em desenvolvimento “adotar medidas de proteção e de outra natureza com respeito às importações”, com vistas a “implementar programas e políticas de desenvolvimento econômico destinadas a aumentar o padrão de vida geral de suas populações”.

Tudo isso mudou a partir da chamada Rodada Uruguai, iniciada em 1986 e encerrada em 1994 (com a criação da OMC), que avançou substancialmente sobre as matérias de natureza não tarifária. Em especial, regulou de maneira muito mais intrusiva os aspectos de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (TRIPS, no jargão técnico) e os aspectos de investimentos relacionados ao comércio (TRIMS). E, nesse processo, proibiu ou limitou a capacidade dos países-membros de adotar medidas de estímulo a empresas (e.g., de natureza fiscal) condicionadas ao seu desempenho exportador, ou à compra de suprimentos no mercado doméstico.

Aos olhos de toda uma geração de negociadores e formuladores de políticas, era como se os países desenvolvidos, tendo já atingido um grau confortável de desenvolvimento, agora resolvessem — para usar a expressão consagrada — chutar a escada que lhes permitiu subir tão alto, antes que os mais pobres pudessem usá-la. Como toda crença fundada em ideologia, esta naturalmente está sujeita a debate, e não haverá quem veja aí anacronismo ou simplificação excessiva. Aqui, convém apenas registrar a existência dessa crença, e o fato incontestável de que nela se fundamentou boa parte da política comercial seguida pelo Brasil nos últimos quinze anos.

Houve na Rodada Uruguai — insult to injury — um componente adicional que a tornou anátema para boa parte de nossos negociadores e formuladores de política: para além de proscrever estratégias antes perfeitamente admissíveis de desenvolvimento e de avançar muito mais em terrenos como tarifas, serviços, propriedade intelectual etc., ela também consagrou práticas enormemente distorcivas no comércio de bens agrícolas (notadamente os subsídios praticados pelos países ricos, que deprimem artificialmente os preços desses bens no mercado internacional). Ou seja: aí onde os países em desenvolvimento em geral, e o Brasil em particular, são mais competitivos, resolveu-se não avançar um milímetro em matéria de regulação de práticas desleais.

Desde então, tornou-se moeda corrente, em países como o Brasil, a Argentina, a Índia, a Indonésia, a África do Sul, a Nigéria ou as Filipinas, a percepção de que a rodada de negociações seguinte, para justificar-se, teria forçosamente de dedicar maior atenção aos temas de interesse dos países em desenvolvimento. Teria, noutras palavras, de ser uma Rodada do Desenvolvimento, por oposição ao legado, real ou percebido, da Rodada Uruguai. E, para países como o Brasil e a Argentina, parte fundamental desse esforço seria a liberalização do comércio de bens agrícolas. Sem isso, nenhuma nova rodada se justificaria.

E isso explica, em boa medida, o caminho seguido pelo Brasil na última década e meia. Para além da profissão de fé multilateralista, que sempre estará presente em nossa retórica, havia a crença de que apenas num fórum multilateral se construiriam as regras universais capazes de contrabalançar as concessões indevidas da Rodada Uruguai. E o fórum multilateral por excelência é a OMC.

Como se sabe, uma Rodada do Desenvolvimento foi afinal lançada, com esse nome, na reunião ministerial da OMC realizada em Doha, no Catar, em novembro de 2001 (após uma tentativa frustrada em Seattle, em 1999). Nesse contexto, sob a liderança do Brasil, da China, da Índia e da África do Sul, acabou por constituir-se um G-20, um grupo das vinte principais economias em desenvolvimento , que, coordenadas, demonstraram ter poder de veto sobre qualquer arranjo que não cumprisse a razão de ser da rodada: promover os interesses dos países em desenvolvimento. Infelizmente, até mesmo devido às divergências de interesses entre seus membros, os vinte jamais chegaram a pôr-se de acordo quanto a uma agenda propositiva, e as tratativas descarrilaram por completo em julho de 2008 (muito pela postura protecionista da própria Índia no que concerne à agricultura). (Para ser justo: em dezembro de 2013, na ministerial da OMC de Bali, alcançaram-se alguns resultados modestos, porém concretos, em terrenos como o da “facilitação do comércio”.)

E, com isso, chegamos ao debate político contemporâneo. Aos olhos dos setores críticos à política comercial que aqui delineamos, o governo brasileiro tardou demais em dar-se conta de que a OMC de hoje, com a pluralidade de interesses nela representados, talvez não tenha mais condições de alcançar os resultados ambiciosos e universais que estiveram ao alcance até 1994. Muito disso se deverá à crescente assertividade de países como o Brasil e a Índia — para não mencionar a ascensão triunfal da China, o principal acontecimento histórico desde a derrocada do comunismo — e à incapacidade dos governos de países desenvolvidos de fazer as concessões necessárias a aplacar esses interesses (sob pena de se verem imediatamente castigados nas urnas por lobbies poderosos, como o dos agricultores franceses ou americanos).

Nada do que aqui se expôs deve interpretar-se como defesa de uma postura mais acomodatícia por parte do Brasil nessas negociações multilaterais. Ao contrário, em 2008 a percepção generalizada era de que o Brasil estava disposto a fazer concessões suficientes para que os países mais desenvolvidos limitassem seus subsídios à agricultura — como se viu, foi sobretudo a Índia (com o endosso de países, naquele contexto, de menor incidência no rumo das negociações, como a Argentina) quem deitou a perder aquela oportunidade, por circunstâncias domésticas ponderáveis (como na França ou nos EUA, também na Índia a agricultura pode tornar-se uma questão eleitoral substantiva).

O que convém registrar é a crença existente em diversos setores de opinião de que, por estar tão comprometido com o êxito final das tratativas na OMC, o governo brasileiro deixou de considerar caminhos alternativos que, bem explorados, poderiam garantir a expansão de nossas exportações, com efeitos positivos sobre o nível de renda e emprego e o próprio dinamismo de nossa economia. Concretamente, esses setores contrastam o imobilismo do Brasil, nessa frente, com o ativismo de países como Chile, Peru e Colômbia, que, mesmo depois do malogro das tratativas em torno de uma Área de Livre Comércio das Américas (2005), perseveraram em busca de acordos de livre comércio com os EUA, o Canadá e nações da bacia do Pacífico.

E aqui chegamos ao fulcro da questão, que é o Mercosul — ou, com maior propriedade, a sua serventia para fazer avançar o interesse nacional em matéria de comércio. À luz de tudo o que se expôs até aqui, o candidato terá melhores condições de compreender algumas das questões analisadas nos dois artigos anteriores sobre o Mercosul e entenderá por que alguns setores de opinião sustentam que o Brasil errou, nos anos 90, ao ir além do objetivo mais modesto de construir uma área de livre comércio, em troca da meta ambiciosa de erigir uma união aduaneira com Argentina, Paraguai e Uruguai.

A união aduaneira, sustentou-se naqueles artigos, bem podia entender-se, naquele momento, como uma barganha fundamentalmente favorável ao Brasil: em troca do acesso desimpedido ao mercado brasileiro, os demais parceiros comprometiam-se a atrelar suas tarifas àquelas praticadas pelo Brasil para proteger seu parque industrial, que era e permanece substancialmente mais diversificado que o de seus vizinhos. Em teoria, fazia perfeito sentido. Na prática, no entanto, isso significou que o Brasil abriu mão da autonomia de que dispunha para negociar livremente acordos comerciais com terceiros países, na medida em que qualquer mudança na tarifa externa comum teria de ser consensuada com os outros três sócios.

E a dinâmica regional dos últimos doze ou treze anos foi francamente desfavorável a qualquer exercício negociador nesses contornos, uma vez que havia, na Argentina, entre 2003 e 2015, governos com uma visão autárquica da economia e do lugar do país no mundo. Em essência, ainda que o Brasil quisesse negociar por fora da OMC — e há indicações de que nos tenhamos tornado mais abertos a essa possibilidade, a partir de 2012 ou 2013 —, não poderia fazê-lo diante do virtual veto argentino. Nesse contexto, um exercício longo e fastidioso como as tratativas com a União Europeia, que se arrastavam desde abril de 2000, tornou-se cada vez mais frustrante.

Como vimos nos artigos anteriores, esse quadro alterou-se substancialmente em 2015 e 2016, com o início, em Buenos Aires e Brasília, de governos de signo mais liberal, e francamente comprometidos com a abertura comercial como um mecanismo a mais para restabelecer o dinamismo das duas economias. O obstáculo que poderia restar a uma opção livre-cambista — a presença de uma Venezuela de orientação iliberal — foi contornado com a suspensão do país do bloco, por não ter incorporado a normativa do Mercosul a seu direito interno e, posteriormente, por ter incorrido em violação do compromisso democrático do Protocolo de Ushuaia (ver artigo anterior a respeito). No mais, Paraguai e Uruguai, até mesmo pela dimensão das duas economias, serão sempre favoráveis a quaisquer arranjos que lhes possibilite aumentar suas exportações para terceiros mercados, fora do Mercosul.

Eis aí, em suma, as linhas gerais da política comercial brasileira nos últimos quinze anos, com seus antecedentes e condicionantes, e eis aí as possibilidades que se descortinam com uma nova convergência de visões entre Brasília e Buenos Aires. A conclusão que se impõe, de resto óbvia, é que, enquanto o Mercosul mantiver os contornos que foi adotando ao longo dos anos 90 — sobretudo o compromisso com a construção de uma união aduaneira —, essa convergência de visões entre Brasil e Argentina será sempre uma pré-condição para qualquer avanço que se queira alcançar, em termos de livre comércio, por fora do marco da OMC.

Pablo Duarte Cardoso

Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.


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