O fator previdenciário foi extinto de nosso ordenamento jurídico?

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19 de março6 min. de leitura

Olá, queridos alunos e alunas do Gran!

Vocês, espero eu (!), já devem ter ouvido falar muito desse tal de “fator previdenciário”, não é mesmo?! Talvez, os queridos alunos da “nova geração” possam ouvir falar menos, de 2019 em diante, mas, mesmo assim, vão ouvir aquele nome por mais um tempo.

Então, digam-me, vocês saberiam me dizer se o fator previdenciário foi extinto pela Emenda Constitucional 103/19?

Bom, mais ou menos (rs).

Calma! Vou explicar.

É que a Emenda Constitucional 03/19 extinguiu o fator previdenciário das normas constitucionais PERMANENTES da previdência social. Em verdade, antes mesmo daquela emenda constitucional já não havia a expressão “fator previdenciário” nas normas constitucionais. Desde a Emenda 20/98 a sistemática de cálculo do salário de benefício no âmbito do RGPS foi DESCONSTITUCIONALIZADA, ou seja, saiu da previsão direta do texto constitucional. A Emenda 20/98 passou a tratar apenas do requisito relativo ao tempo de contribuição para a aposentadoria, bem como a idade para as aposentadorias por idade.

Hoje, cabe lembrar, nem se fala mais nessa divisão entre “aposentadoria por tempo de contribuição” e “aposentadoria por idade”, pois tudo se tornou “aposentadoria programada”, com requisitos únicos: carência, tempo de contribuição e idade mínima.

Após a Emenda 20/98, permitiu-se, assim, que o tema “salário-de-benefício” fosse tratado diretamente pela legislação. No caso, foi a Lei 9.876/99 que veio ao mundo jurídico na época para tratar da forma de cálculo do salário de benefício, cuidado, inclusive, de alterar a definição normativa do período básico de cálculo para a apuração dos salários de contribuição dos segurados. A Lei 9.876/99 também trouxe a figura, então, do FATOR PREVIDENCIÁRIO (FP).

O fator previdenciário é (era) calculado com base em dados referentes à idade, expectativa de sobrevida e tempo de contribuição. Quando o fator previdenciário ficava abaixo de 1,0, isso resultava em diminuição da renda mensal inicial do benefício. Em geral, isso acontecia quando se era relativamente ainda jovem para a aposentadoria. Nesses casos, a redução poderia chegar até 40% na renda mensal inicial.

Cabe lembrar que expectativa de vida é diferente de expectativa de sobrevida, ok? A expectativa de vida é a estimativa média de vida total da pessoa, enquanto a expectativa de sobrevida é a estimativa de vida após a aposentadoria. Esses dados são extraídos do IBGE (tábua de mortalidade) e a cada publicação oficial, a fórmula do fator previdenciário se altera na prática.

O FATOR PREVIDENCIÁRIO era previsto somente para as aposentadorias por tempo de contribuição e por idade. Na aposentadoria por tempo de contribuição o fator previdenciário era obrigatório, enquanto na aposentadoria por idade era facultativo. Sobre essa opção do segurado na aposentadoria por idade, diz o art. 7º, da Lei n. 9.876/99:

Art. 7o É garantido ao segurado com direito a aposentadoria por idade a opção pela não aplicação do fator previdenciário a que se refere o art. 29 da Lei no 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei.

Vamos aprender um pouco mais. Qual é contexto histórico de criação do fator previdenciário?

Pois bem, como dito acima, o FP foi criado pela Lei 9876/99, dentro da nova forma de cálculo do salário de benefício. Essa lei, no que toca ao fator previdenciário, veio como alternativa para o insucesso da tentativa, quando da tramitação da PEC referente à EC 20, de aprovação da idade mínima para as aposentadorias no RGPS. Por meio da EC 20/98, intentava-se instituir o limite mínimo de idade para a aposentadoria por tempo de contribuição, ou seja, pensava-se incialmente que a aposentação dependeria de tempo de contribuição mais a idade mínima. Esses requisitos seriam, então, de 35 anos de contribuição para os homens e 30 anos de contribuição para as mulheres. Quanto à idade, seria de 60 anos para os homens e de 55 anos para as mulheres.

Ocorre que, como ficou muito famoso na época, houve um Deputado Federal que, segundo ele mesmo confessou, apertou o botão errado na hora da votação e acabou, pelo voto dele, ou melhor, pela ausência do voto dela, não vingando a fixação constitucional do limite mínimo de idade para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição. Pasmem, a reforma da previdência, no ponto crucial de seu objetivo, não passou porque um Deputado governista simplesmente errou o botão na hora de dar o seu voto! Alegou que queria votar para fixar “sim” quanto ao limite mínimo de idade, mas por erro apertou o botão de “abstenção” no que tocava à aprovação da proposta nesse ponto. Seu nome é Antônio Kandir, filiado à época ao PSDB-SP, tendo sido no próprio governo de Fernando Henrique Cardoso, Ministro do Planejamento. Ele chegou a pedir que seu voto fosse retificado junto à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados – que, aliás, era presidida pelo então Deputado Federal Michel Temer – mas não conseguiu consertar o “erro” alegado.

Em virtude daquele erro de votação, ou seja, em virtude de não ter sido aprovado o limite mínimo de idade para a aposentadoria por tempo de contribuição, é que, pouco tempo depois da EC 20, foi aprovada a Lei n. 9.876/99, que instituiu o famoso fator previdenciário. Friso: a EC 20 desconstitucionalizou as regras de cálculo dos benefícios, remetendo a regulamentação dessa temática à legislação, a qual se corporificou na Lei n. 9.876/99. E o FATOR PREVIDENCIÁRIO VEIO A REBOQUE nessa lei!

Tratou-se de um supedâneo, de certa forma, da exigência da idade mínima não aprovada naquela época, pois considera em sua fórmula de cálculo o tempo de contribuição, idade e expectativa de sobrevida. Assim, a idade maior ou menor, juntamente com o tempo de contribuição acumulado, influencia no valor final da aposentadoria, diante da incidência do fator previdenciário.

Mas isso não seria uma forma de burlar as normas constitucionais vigentes na época? Ora, se a idade mínima não havia sido incluída como requisito para as aposentadorias no RGPS, como, então, se poderia considerar a idade na fórmula do fator previdenciário? O fator previdenciário, por isso, não seria inconstitucional?

NÃO, o fator previdenciário não é considerado inconstitucional. E quem disse isso foi o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do TEMA 1091 de sua repercussão geral. Em verdade, o STF já havia chancelado, antes do julgamento do TEMA 1091, a validade do fator previdenciário, indeferindo pedido de liminar formulado nas ADIs 2110 e 2111. Tal decisão foi exarada no ano 2000, mas até hoje essas ações diretas de inconstitucionalidade não foram julgadas de modo definitivo (conforme consta da tramitação das ADIs, o julgamento está marcado para 24/06/2021). Vejamos a ementa do julgado:

(…)

Quanto à alegação de inconstitucionalidade material do art. 2o da Lei nº 9.876/99, na parte em que deu nova redação ao art. 29, “caput”, incisos e parágrafos, da Lei nº 8.213/91, a um primeiro exame, parecem corretas as objeções da Presidência da República e do Congresso Nacional.

É que o art. 201, §§ 1o e 7o, da C.F., com a redação dada pela E.C. nº 20, de 15.12.1998, cuidaram apenas, no que aqui interessa, dos requisitos para a obtenção do benefício da aposentadoria. No que tange ao montante do benefício, ou seja, quanto aos proventos da aposentadoria, propriamente ditos, a Constituição Federal de 5.10.1988, em seu texto originário, dele cuidava no art. 202. O texto atual da Constituição, porém, com o advento da E.C. nº 20/98, já não trata dessa matéria, que, assim, fica remetida “aos termos da lei”, a que se referem o “caput” e o § 7o do novo art. 201. Ora, se a Constituição, em seu texto em vigor, já não trata do cálculo do montante do benefício da aposentadoria, ou melhor, dos respectivos proventos, não pode ter sido violada pelo art. 2o da Lei nº 9.876, de 26.11.1999, que, dando nova redação ao art. 29 da Lei nº 8.213/91, cuidou exatamente disso. E em cumprimento, aliás, ao “caput” e ao parágrafo 7o do novo art. 201.

  1. Aliás, com essa nova redação, não deixaram de ser adotados, na Lei, critérios destinados a preservar o equilíbrio financeiro e atuarial, como determinado no “caput” do novo art. 201. O equilíbrio financeiro é o previsto no orçamento geral da União. E o equilíbrio atuarial foi buscado, pela Lei, com critérios relacionados com a expectativa de sobrevida no momento da aposentadoria, com o tempo de contribuição e com a idade, até esse momento, e, ainda, com a alíquota de contribuição correspondente a 0,31.
  1. Fica, pois, indeferida a medida cautelar de suspensão do art. 2o da Lei nº 9.876/99, na parte em que deu nova redação ao art. 29, “caput”, incisos e parágrafos, da Lei nº 8.213/91.

(…)

(ADI 2111 MC, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Julgamento: 16/03/2000, Publicação: 05/12/2003)

Ocorre que o TRF-4, a despeito da decisão acima, passou a decidir nos últimos anos que a aposentadoria dos professores não poderia sofrer a incidência do fator previdenciário, uma vez que esse seria inconstitucional. Por conta desse fundamento, o STF afetou o RE 1.221.630 ao TEMA 1091 e ratificou o entendimento anteriormente definido, no sentido da plena validade do fator previdenciário. Com isso, determinou a cassação do acórdão proferido pelo TRF-4.

Visto isso, sabedores de que o fator previdenciário é plenamente constitucional, voltemos à pergunta inicial: o fator previdenciário foi extinto com a reforma da EC 103?

SIM e NÃO. Sim, porque o fator previdenciário foi extinto das regras PERMANENTES de aposentadoria no RGPS e isso se deu justamente porque agora há idade mínima para se aposentar. A EC 103 finalmente conseguiu aprovar o requisito etário para as aposentadorias programadas. Não, porque ainda existe fator previdenciário em duas hipóteses de normas de transição. Sendo assim, somente existirá fator previdenciário na REGRA DE TRANSIÇÃO prevista no art. 17, da Emenda Constitucional n. 103. Também é possível a aplicação do fator previdenciário no caso da aposentadoria da pessoa com deficiência, conforme art. 9º, inciso I, da LC 142/13. No caso da regra de transição do art. 17, da EC 103, a incidência do FP é obrigatória, enquanto na aposentadoria da pessoa com deficiência, trata-se de incidência facultativa. Saliente-se que a LC 142/13 vigorará até que lei discipline o § 4º-A do art. 40 e o inciso I do § 1º do art. 201 da Constituição Federal, conforme consta do art. 22, caput, da Emenda 103, sendo, por isso, norma de cunho transitório.

Por hoje é só, guerreiros e guerreiras! Continuemos na luta, combatendo o bom combate. Espero ter ajudado.

 

Fraternal abraço,

Frederico Martins.

Juiz Federal

Professor do Gran Cursos

@prof.fred_martins

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