O fim especial de ação no crime militar de terrorismo

Cícero Robson Coimbra Neves

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13 de Abril de 2023

1 Crime militar extravagante de terrorismo?

A Lei n. 13.260/2016, nos termos de seu art. 1º, “regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo”, além de tratar de disposições investigatórias e processuais e reformular o conceito de organização terrorista.

Em suma trouxe ao sistema normativo brasileiro o crime de terrorismo, acabando com a polêmica previsão genérica da Lei de Segurança Nacional (LSN), a Lei n. 7.170/1983, hoje revogada pela Lei n. 14.197/2019. Muito se criticava a previsão vaga do art. 20 da LSN, como dispunha Alberto Silva Franco:

Ao contrário do que sucede no Código Penal de Portugal (arts. 288 e 289) e no Código Penal espanhol (arts. 260 usque 264), o legislador brasileiro não incluiu, na codificação penal comum, o delito de “terrorismo” e as figuras típicas que lhes são afins. É exato que, no entender de Antonio Scarance Fernandes, “o terrorismo está previsto no art. 20 da Lei 7.170/83, que define os crimes contra a segurança pública e a ordem política e social. Está o artigo assim redigido: devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, PRATICAR atentado pessoal ou ATOS DE TERRORISMO, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”. Não se pode, contudo, compartir tal entendimento. Embora a figura criminosa corresponda a um tipo misto alternativo, pois encerra a descrição de várias condutas fáticas que equivalem à concretização de um mesmo delito, força é convir que a prática de atos de terrorismo não se traduz numa norma de encerramento idônea a resumir as condutas anteriormente especificadas. O verbo “praticar” e o objeto direto “atos de terrorismo” estão, em princípio, no mesmo pé de igualdade dos demais comportamentos alternativamente referidos. Ocorre, no entanto, que o verbo “praticar” não possui carga alguma de ilicitude, como apresentam os outros verbos constantes do tipo. Por isso a sua área de incidência, o seu campo de significado, em suma, a sua explicitação fica na dependência direta e imediata do objeto direto: “atos de terrorismo”. E o que, na realidade, quer dizer “atos de terrorismo”? Nada mais do que uma “cláusula geral”, de extrema elasticidade, que permite ao julgador, por ausência de uma adequada descrição do conteúdo fático desses atos, enquadrar, ao seu bel-prazer, qualquer modalidade de conduta humana. Isso fere, sem dúvida, o princípio constitucional da legalidade. Com razão Mir Puig chamou a atenção para o emprego de “cláusulas gerais” que “dificultam a precisão dos confins do pressuposto do fato legal, e, por conseguinte, a clara delimitação do âmbito do punível. De pouco serve, então, que se respeite a exigência formal de uma lei prévia, seu conteúdo não permite diferenciar com segurança o criminoso daquilo que não é. Vulnera-se, assim, o aspecto material do princípio nullum crimen sine lege (stricta).[1]

A Lei n. 13.260/2016, assim, veio ao encontro da solução dessa crítica e pormenorizou as condutas consideradas como configuradoras de terrorismo no Brasil.

Com a edição da Lei n. 13.491/2017, que ampliou o conceito de crime militar pela alteração da redação do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, crimes previstos na legislação penal comum podem ser adjetivados como crimes militares, desde que sejam perpetrados em uma das hipóteses das alíneas desse inciso.

Assim, unindo as proposições, perfeitamente possível falar em crime militar de terrorismo, como um crime militar extravagante, como muito bem sustenta Alexandre Saraiva, quando a conduta vilipendiar bens jurídicos afetos ao Direito Castrense:

Tratando-se de crime militar extravagante, a objetividade jurídica subjacente é a preservação das Instituições Militares e de seus alicerces de valor.

Assim, por exemplo, o militar terrorista atenta sempre contra a existência das Forças Armadas e, também, contra os princípios da hierarquia e da disciplina, além dos bens jurídicos secundários igualmente atingidos pelo ato de terror: vida, integridade física, patrimônio etc.

Já quanto o crime é praticado por civil contra as Forças Armadas, o bem jurídico em primazia é a Institucionalidade Constitucional da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, permanecendo como objetividade jurídica secundária, ou residual, a ofensa lançada contra as pessoas e o patrimônio[2].

Pode-se, dessa maneira, compreender uma pluriofensividade no crime de terrorismo, reconhecendo-se a agressão de bens jurídicos penais militares ao lado daqueles tradicionalmente apontados pela doutrina penal comum ao tratar do objeto de tutela penal desse delito, a saber, a paz pública[3], a incolumidade pública[4] etc.

Mas o tema que aqui se propõe é mais específico e atrela-se ao fim especial de ação do crime de terrorismo.

Em momentos de abalos políticos no País, quando manifestações de grupos específicos desbordam para a violência, ainda mais em tempos de polarização política extrema em que há um forte impulsionamento do “nós” e “eles”, sempre há uma forte inclinação a considerar as condutas praticadas com alto grau de violência à coisa, de destruição do patrimônio público e privado, como ato de terrorismo, o que, ao menos à luz do tipo penal, não se mostra verdadeiro, nem mesmo em se tratando de crime militar ou de atos que tenham a participação de militares. É bom sempre resgatar que o crime praticado por militar, por si só, não configura crime militar[5], o que se prescisnde de aprofundar por não ser o tema desta discussão.

O crime de terrorismos pela descrição típica exige uma especial motivação, o que acaba por condicionar o elemento subjetivo, em uma dupla finalidade do agente, ou seja, deve-se agir por xenofobia (aversão a estrangeiros), discriminação (qualquer tipo de distinção, preferência etc. negativos e projetada para o exterior do indivíduo) ou preconceito (uma discriminação interior) de raça (caracteres físicos ou biológicos), cor (tonalidade epidérmica), etnia (agrupamento humano com traços em comum, como cultura e língua) e religião (crença, ritualística, regras sociais, emotividade etc.), e, também, a finalidade de provocar o terror (medo, desespero) social (em um determinado grupo) ou generalizado (número indistinto de pessoas).

Não é outra a visão de Victor Rios Gonçalves:

O dispositivo, em verdade, exige dupla motivação:

a) agir por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião; e

b) finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública[6].

 

Deve-se cuidar, ademais, que, por mais graves e abjetos que os fatos da vida real possam se mostrar, sobre o fim especial de agir na lei de terrorismo, a doutrina é convergente no sentido de que se respeite o princípio da legalidade, observando-se a taxativa previsão legal.

Nessa linha:

Motivo não previsto na Lei: Ao do que prevê a Lei 7.716/1989, a Lei 13.260/2013 não prevê, como motivação do terrorismo, a discriminação ou preconceito de procedência nacional.

Também não podem ser consideradas como finalidade do terrorismo a intolerância filosófica, o que inclui o ateísmo, as intransigências com escolas de pensamento sobre determinados temas, comuns nos chamados desacordos morais razoáveis, como pena de morte, aborto etc. […]

A Lei não prevê, ademais, como intencionalidade específica, a intolerância política. Nesse caso, ainda que afastada a caracterização do terrorismo, resta possível a tipificação do fato no art. 20 da Lei 7.170/1983[7].

 

Ainda no mesmo mote:

O art. 2º, caput, da Lei n. 13.260/16 faz referência exclusivamente à xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião. Portanto, como não se admite analogia in malam partem, se o especial motivo de agir estiver relacionado à discriminação de natureza diversa, como, por exemplo, referente à idade, orientação sexual, homofobia, procedência nacional, cor, etnia, time de futebol, ideologia etc., não há falar em terrorismo.

É bem verdade que, por ocasião do julgamennto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 26/DF (Rel. Min. Celso de Mello, j. 13/06/2019) e do Mandado de Injunção n. 4.733 (Rel. Min. Edson Fachin, j. 13/06/2019), o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, julgou procedentes os pedidos ali formulados não apenas para reconhecer a mora do Congresso Nacional em editar lei que criminalize os atos de homofobia e transfobia, mas também para determinar, até que seja colmatada essa lacuna legislativa, a aplicação da Lei 7.716/1989 (que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) às condutas de discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, com efeitos prospectivos e mediante subsunção. No entanto, como deixam entrever as próprias teses fixadas no julgamento da referida ADO, seus efeitos estão restritos ao crime de racismo previsto na Lei n. 7.716/89, daí por que não há como ampliarmos suas conclusões para outros delitos, como, por exemplo, o crime de terrorismo (Lei n. 13.260, art. 2º, caput), tortura (Lei n. 9.455/97, art. 1º, I, alínea “c”) etc., sob pena de indevida violação do princípio da legalidade.[8]

Claramente, a motivação política, partidária, desportiva, enfim, qualquer outra que não venha expressamente prestigiada na norma, não pode se prestar à subsunção da conduta ao tipo penal.

Seria até interessante que o tema voltasse à discussão diante de fatos novos que assolaram a sociedade brasileira, mas essa discussão tem o terreno próprio e esse terreno é o Parlamento que deve alterar a lei, inclusive revendo o comando do § 2º do art. 2º da Lei n. 13.260/2016, segundo o qual não haveria a aplicação do art. 2º, ou seja, não haveria tipicidade, na conduta “individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”.

Transpor esse limite significaria um perigoso passo de negação ao princípio da legalidade, que hoje pode atingir o “eles”, mas amanhã pode alcançar o “nós”, seja lá o que isso signifique.

[1] FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: RT, 2005, p. 116.

[2] SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. Crime militar extravagante e terrorismo. In: NEVES, Cícero Robson Coimbra (Coord.). Crimes militares extravagantes. Salvador: Jus Podivm, 2022, p. 371.

[3] LIMA, Renato B. de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Jus Podivm, 2020, p. 927.

[4] DELMANTO, Fábio Machado de, A. et al. Leis penais especiais comentadas. Disponível em: Minha Biblioteca, 3rd edição. Editora Saraiva, 2018, p. 1.208.

[5] Nessa linha: STF, Inq. n. 4.923/DF, Decisão Monocrática do Min. Alexandre de Moraes de 27 de fevereiro de 2023.

[6] GONÇALVES, Victor Eduardo R. Esquematizado – Legislação Penal Especial. Disponível em: Minha Biblioteca, 7th edição. Editora Saraiva, 2021, p. 83.

[7] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó. (Coord.) Leis penais especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivum, 2018, p. 1934.

[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivum, 2020, p. 933.


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