Por Luís Fernando Lopes de Oliveira
INTRODUÇÃO
Tem o presente ensaio objetivo de apresentar à discussão a aplicabilidade do princípio da insignificância penal no delito de descaminho.
O tema demonstra relevo face ao crescente debate acerca dos delitos que tutelam os bens jurídicos supraindividuais, em especial os de natureza econômica e tributária.
Para isso se apresenta a legitimidade da penalização das condutas que atentam contra ordem tributária, fomentando a discussão sobre a aplicabilidade do princípio da intervenção mínima no delito em comento.
O trabalho é dividido em quatro partes. Em um primeiro momento mostra-se a racionalidade da criminalização das condutas que atentam contra a ordem tributária ante a relevância da proteção do erário público e como forma de dar sustentabilidade ao Estado Social e Democrático de Direito.
Abordagem sequencial refere-se à origem, às premissas e à aplicabilidade do princípio da insignificância penal, vinculadas ao princípio da lesividade.
A seguir apresenta-se a relação dos princípios em comento com a tipicidade e sua exclusão frente às ínfimas e irrelevantes ofensas a bens tutelados.
Por fim citam-se os precedentes jurisprudenciais acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância, delitos bagatelares, na hipótese do delito de descaminho. Com os julgados, tecem-se críticas e apontamentos sobre a aplicação prática dos princípios em debate.
1.A RACIONALIDADE DOS DELITOS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
A tutela penal de natureza tributária se justifica hodiernamente no ordenamento pela supraindividualidade do bem jurídico que se pretende proteger, em razão de que são com os recursos auferidos com as receitas tributárias que se dá o respaldo econômico à realização das atividades estatais destinadas a atender às necessidades sociais.[1]
O individualismo e liberalismo típicos da burguesia e do Estado liberal oitocentista, cuja propriedade representava o novel a ser protegido, passa a dividir seu espaço com novos valores, outros bens, que transcendem aos interesses individuais, bens de valores econômicos cuja proteção viabiliza o Estado Social e Democrático de Direito[2].
A idealização do Estado Social Democrático encontra seu fundamento na dignidade da pessoa possibilitando uma convivência democrática em um governo de leis conforme uma ordem econômica e social justa[3], “competindo ao poder público executar tarefas para conformar a ordem sócio-econômica, facilitando a participação de todos os cidadãos em condições de liberdade e igualdades reais e efetivas no momento de ascender à vida política, econômica, social e cultural.”[4]
A legitimidade constitucional de proteção da ordem tributária por meio da tutela penal justifica-se no fato de que os recursos provindos da arrecadação de tributos viabilizam as atividades essenciais do Estado que almeja ser Social de Direito e que por tal não pode abstrair da proteção máxima o bem jurídico agredido vorazmente pela constante sonegação fiscal experimentada pelas Fazendas, nos três níveis da federação.
Heloísa Estellita Salomão, especificamente no trato dos crimes tributários, justifica:
Entendida como instrumento de formação de receita pública e de consecução e implemento de metas socioeconômicas definidas na Constituição através da percepção dos tributos instituídos e cobrados em conformidade com as normas e valores constitucionais, representa um valor superindividual, com relevância constitucional e indiretamente reconduzível à pessoa humana, ato, portanto, a ser tutelado com emprego de sanção penal, ou seja sob o ângulo do merecimento de pena.[5]
Nesse viés é que Cezar Roberto Bitencourt defende a natureza patrimonialista do bem jurídico nos crimes tributários, ou seja, a receita incorpora o patrimônio da Fazenda Pública como erário e arrecadação tributária.[6] Complementa esclarecendo que a menção ao patrimônio da Fazenda Pública, como bem jurídico tutelado, deve ser compreendido como patrimônio dinâmico, ou seja, aquele sobre o qual incidem os comportamentos incriminados que se referem à atividade tributária desenvolvida pelo Estado e não como sinônimo do bem jurídico patrimônio público já constituído.[7]
Segue Bitencourt lecionando que na hipótese de crimes tributários a administração do erário público é diretamente atingida, prejudicando tanto a arrecadação de tributos quanto a gestão dos gastos públicos. Afirma ser possível concluir que o bem jurídico tutelado pelos tipos penais nos crimes de natureza tributária é a própria ordem tributária, ainda, que o objeto jurídico desta tutela, consiste no patrimônio administrado pela Fazenda Pública, vale dizer, ingressos e gastos, “isto porque o sentido de proteção da ordem tributária enquanto bem jurídico, justifica-se, justamente, pelas funções que os tributos desempenham, cujo efeito é necessário assegurar tanto o cumprimento das expectativas de ingresso quanto a boa gestão dos gastos.”[8]
Édson Luís Baldan leciona que:
A infração econômica viola os princípios reitores da política social e econômica, tais como a propriedade privada, a liberdade econômica, a comutatividade do comércio jurídico, a boa-fé e a segurança das relações jurídicas. A ordem pública econômica constitui, portanto, o bem jurídico protegido, pois, se a distinção de delito econômico e delito patrimonial não deve ser feita sobre o montante em dinheiro evolvido, mas sim, constatando em qual o meio proliferam, parece evidente que o delito econômico vive na economia política, enquanto que o delito patrimonial, por maior que seja, habita a economia privada.[9]
As novas formas de proteção justificam-se na necessidade moderna de proteção de uma ordem econômica e tributária nacional, através de um intervencionismo penal imprescindível como mecanismo de tutela aos direitos sociais e à organização econômica. Adverte Édson Luis Boldan:
A investigação sobre a criminalidade econômica demonstra que a obtenção do benefício e a consequente acumulação de capital geralmente sói vir acompanhada de infrações legais. A legitimação jurídico-formal do sistema perde consistência quando se constata que a classe dominante vulnera a legalidade no exercício da atividade econômica mas não suporta, em termos gerais, os rigores das sanções repressivas previstas em lei.[10]
2.O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL
A consistência de uma construção teórica fundada na insignificância reside na ratio essendi do Direito Penal, ou seja, no reconhecimento da necessidade de tutela a lesões substanciais a bem jurídico, excluindo-se da esfera de proteção às ínfimas ofensas, afastando-se desde logo a tipicidade material da conduta pela irrelevância penal do fato.
Juarez Cirino dos Santos em referência à ofensividade como princípio revelador de um Direito Penal mínimo[11], afirma que sua premissa é a de restringir, ou mesmo proibir aplicação de penas ou medidas de segurança nas hipóteses de lesões irrelevantes. Para o autor, o bem jurídico a merecer tutela deve ser realizado em duas dimensões, uma qualitativa revelando a natureza do bem jurídico e outra quantitativa cujo objeto seria a extensão da lesão a esse mesmo bem jurídico.[12] Conclui o autor: “(…) do ponto de vista qualitativo da lesão do bem jurídico, o princípio da lesividade exclui a criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes de bens jurídicos. Nessa medida, o princípio da lesividade é a expressão positiva do princípio da insignificância em Direito Penal.”[13]
O princípio da intervenção mínima revela-se contra o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir o meio apto e necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outros mecanismos de controle social revelarem-se suficientes para a tutela, a criminalização da conduta restará inadequada.
O Direito Penal deve representar, portanto, a ultima ratio no ordenamento, vale dizer, deve ser conclamado a agir quando os demais ramos do Direito, como o civil, o administrativo, o tributário, a exemplo, revelarem-se incapazes de, por si só, conceder a tutela aos bens jurídicos mais relevantes para o indivíduo e à sociedade.[14]
Na lição de Luzón Pena citado por Luiz Flávio Gomes o significado de sua realização consiste em que:
(..) não podem ser penalmente típicas ações que, ainda que no princípio se encaixem formalmente em uma descrição típica e contenham algum desvalor jurídico, ou seja, que não sejam justificadas e não sejam plenamente lícitas, no entanto no caso concreto, seu grau de injusto seja mínimo, insignificante: pois conforme seu caráter fragmentário as condutas penalmente típicas, só devem estar constituídas por ações gravemente antijurídicas, não por fatos cuja gravidade seja insignificante. O critério da insignificância significa, pois, uma restrição dos tipos penais.[15]
O princípio da intervenção mínima assume duas fundamentais missões no ordenamento, primeiro, como critério legislativo na elaboração das leis penais, como processo de seleção de condutas nocivas a merecerem proteção estatal pelo Direito Penal e em um segundo momento como fundamento do princípio da insignificância afastando a tipicidade material de condutas que lesem infimamente o bem jurídico tutelado como método hermenêutico de aplicação da norma penal.
3. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA
O princípio da insignificância não vem insculpido expressamente em nenhum dispositivo legal no nosso ordenamento jurídico; a premissa de sua existência é a necessidade da composição do Direito Penal com elementos de Política Criminal, valendo-se dos princípios da ofensividade, da proteção de bens jurídicos e da intervenção mínima para afastar o juízo da tipicidade penal[16] de condutas que violam minimamente os bens tutelados na esfera penal.
O juízo de adequação típica como pressuposto à formação do delito, representa a operação intelectual que visa subsumir a conduta do mundo dos fatos ao modelo típico previsto na lei, processo que determina a tipicidade. Como juízo de subsunção, apresenta ideia de um juízo formal de adequação, decorrência da função de garantia representada no tipo[17], a tipicidade formal.
Sendo o objetivo declarado do Direito Penal nas sociedades contemporâneas a proteção de bens jurídicos, assim considerados como os valores relevantes para a vida em sociedade sob a ameaça de pena. Esses bens protegidos são selecionados a partir de critérios político-criminais fundados na Constituição: realidades ou potencialidades necessárias ou úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano.[18]
Adverte Luiz Flavio Gomes em relação ao princípio da insignificância e à adequação típica material da conduta:
O fato insignificante (em razão da exigüidade penal da conduta ou do resultado) é formalmente típico, mas não materialmente. Importante recordar, por conseguinte, que a tipicidade formal (composta da conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação do fato à letra da lei) já não esgota toda a globalidade da tipicidade penal, que ainda requer a dimensão material (que compreende dois juízos distintos: de desaprovação da conduta e de desaprovação do resultado jurídico). Nos crimes dolosos, como se sabe, ainda se exige uma terceira dimensão: a subjetiva (imputação objetiva).[19]
Importante registrar o ensinamento de Luiz Flávio Gomes ao afirmar que o fundamento para o reconhecimento da atipicidade material fundado na insignificância é o juízo de desvalor da conduta e também do resultado, incidindo a irrelevância em ambas as situações ou na combinação das mesmas.[20]
Assim, para o aperfeiçoamento da tipicidade material exige-se um mínimo de lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, devendo o operador do direito no caso concreto diante de hipótese de ínfima lesão, desprezar, abstrair, desvalorar porque a mesma não tem capacidade de ofensa ao interesse protegido, faltando adequação típica.
4. O DESCAMINHO E A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O tipo previsto no artigo 334 do Código Penal[21] prevê condutas em duas unidades conceituais bastantes autônomas e distintas, a primeira consistente na importação e exportação de produto proibido, o contrabando, a segunda, na sonegação de tributo devido em razão de entrada e saída de mercadoria do país, o descaminho.
Considerando a diversidade de condutas, há que notar igualmente a dupla proteção jurídica: no contrabando a proibição incide sobre a importação ou exportação, enquanto no descaminho protege-se a sonegação fiscal de tributos incidente sobre a importação ou exportação de bens de consumo, aqui o bem jurídico é o poder de tributar. Assim não remanescem dúvidas tratar-se o descaminho, considerada a proteção ao erário e atividade de arrecadação, autêntico delito tributário.
A criminalização do ilícito tributário objeta punir o desvio de comportamento, daquele que sonega dolosamente o tributo aduaneiro, tendo como objetivo obrigar o contribuinte a satisfazer a obrigação tributária.[22] Leciona, Luiz Regis Prado, que o tipo penal objetiva proteger a economia do país, na elevação do imposto de exportação, fomentando o abastecimento interno ou para estimular o ingresso de divisa estrangeira no país, o mesmo ocorrendo em relação ao imposto de importação, protegendo o produto nacional e o país das especulações, além de suprir as necessidades do Estado.[23]
Extrai-se que a conduta proibida consiste em fraudar, ainda que parcialmente,o pagamento de imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria do país, ou seja, a prática de burla ou fraude antecedente com objetivo de inadimplemento de obrigação fiscal.
O crime de descaminho constitui-se essencialmente em inadimplemento tributário fraudulento, sonegação fiscal que atenta contra a ordem tributária, restando configurado pela conduta dolosa de fraudar o pagamento de tributo devido em razão da entrada ou da saída, ou ainda pelo consumo de mercadoria do país.
Pierangeli define a conduta do descaminho como “ação de iludir, total ou parcialmente, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, saída ou consumo de mercadoria. Não se trata de mercadoria proibida, mas sim de permitida que tem sua entrada, saída ou consumo sujeita a pagamento de direito ou imposto”[24]
Márcia Dometilla Lima de Carvalho aponta a diferenciação do delito de descaminho para os demais delitos se sonegação nos seguintes termos:
“O descaminho diferencia-se dos demais delitos de sonegação encarado que é como ofensa a interesses comunitários e governamentais, desde quando desponta, numa sociedade politicamente organizada, a noção de soberania. Destarte, enquanto outros delitos contra o Fisco são tipificados à medida que os governantes preocupam-se mais em intervir no domínio econômico, seja para melhor distribuição e aplicação das rendas comunitárias, seja para um eficiente desempenho da economia, o descaminho é antecipadamente visto como ofensa à soberania estatal, como entrave à autodeterminação do Estado, como obstáculo a segurança nacional em seu mais amplo sentido.[25]
A referência a permitir-se o debate acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância nos delitos de natureza tributária, em especial do descaminho é a edição da Lei nº 10.522/2002, alterada pela Lei nº 11.033/2004, que criou permissivo para a disponibilidade de exigência de créditos pela Fazenda Nacional em razão do valor mínimo do tributo.[26] Subsequentemente a Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda (publicada em 26/03/2012), regulamentando referidas leis, alterou o valor mínimo para ajuizamento das execuções fiscais de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para R$ 20.000,00 (vinte mil reais).[27]
Em função das legislações em apreço os Tribunais pátrios passaram a reconhecer indistintamente que os débitos para com a Fazenda Nacional que importassem valores inferiores aos constantes das Leis e da Portaria porque dispensados de cobrança estariam abarcados pela insignificância penal, eis que se desprezado tributariamente, mesma sorte mereceria em relação a responsabilização penal.
Luiz Regis Prado, atento a forma com que o debate ingressou nos tribunais, critica a ausência de um critério rígido na aplicação do princípio da insignificância aos ‘descaminhos de bagatela’:
É de se destacar que, como o tipo penal não estabelece um valor para aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho, os tribunais vêm atrelando suas decisões a parâmetros díspares fixados pela oscilante política fiscal e econômica do governo (v.g., ora, R$ 5.000,00, ora R$ 10.000,00), utilizados para fins meramente fiscais. Essa postura tem gerado decisões aleatórias e contraditórias, sem nenhum critério técnico-científico penal. A restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância – que elide a tipicidade da conduta – não deve ficar ao sabor de tais elásticos critérios, ou mesmo de simples interpretações pessoais do julgador, mas sim deve ater-se a valoração sócio-econômica média vigente no país, em determinado momento histórico.[28]
Em sentido diametralmente contrário, Luiz Flávio Gomes assevera ser perfeitamente possível o reconhecimento da insignificância penal vinculando os valores pelos quais a Fazenda Nacional pode dispor da execução fiscal, alertando que o parâmetro estabelecido é peculiar nos crimes de natureza tributária, não valendo para outros delitos, patrimoniais a exemplo. Conclui que “se até esse valor (referindo-se ao valor que a Fazenda pode dispor) não vale a pena propor a execução fiscal, com muito maior razão não tem sentido impor um castigo penal.”[29] Acrescenta que o que é irrelevante para fins fiscais, não pode ser relevante para fins penais.[30]
De certa forma a ausência de certa definição legal acerca de critérios para reconhecimento da bagatela acabam por determinar um ônus ao julgador, o de valorar no caso concreto a lesividade da conduta frente ao bem jurídico tutelado pela norma, fato que induz a indefinição do conteúdo do postulado, eis que em última análise será o Magistrado o interlocutor do princípio, e portanto sua conceituação vagará pelas ideologias dos julgadores, acarretando a imprecisão conceitual acerca da insignificância.
Luiz Regis Prado argumenta que a solução seria legislativa, cabendo ao legislador penal estabelecer um limite ou critério para aplicação do princípio da insignificância, vale dizer, estipulação de um quantum mínimo exigível.[31] E conclui: “Como lamentavelmente não há tal previsão legal, tem-se a utilização de referências (em geral, extrapenais) as mais variadas, com flagrante violação ao princípio da segurança jurídica, basilar em um Estado Democrático de Direito.”[32]
No julgamento do habeas corpus nº 100942/PR, de relatoria do Ministro Luiz Fux, julgamento ocorrido em 09/08/2011[33], o reconhecimento da bagatela em crime de descaminho pautou-se tão-somente em dados objetivos, no caso o valor do tributo sonegado em referência à hipótese de renúncia de crédito tributário.
Recente precedente do Supremo Tribunal Federal que apreciou e denegou ordem de habeas corpus sob nº 115154 – RS[34], no qual se pretendia o reconhecimento da causa excludente de tipicidade, deixa margens a debate sobre a matéria e parece analisar de forma equivocada a aplicação do princípio da insignificância.
Neste, ao contrário do precedente anterior, há um desvirtuamento do princípio, valendo-se o relator do critério do direito penal do autor para justificar sua decisão – “(…)a contumácia na prática delitiva obsta a aplicação daquele princípio” – e determinar a não aplicação do princípio. Se o que se pretendia falar era da irrelevância penal do fato[35], fato a merecer apreciação na dosimetria da pena, assim não se traduziu no julgado.
Luiz Flávio Gomes denomina a situação apresentada pelo relator para indeferimento da ordem como hipótese de multirreincidência ou reiteração não cumulativa. Para o autor é perfeitamente possível o reconhecimento da insignificância a se considerar fatos desconectados no tempo. Adverte que por não haver normatização expressa, o reconhecimento da insignificância penal dependerá da postula ideológica do julgador,[36] o que certamente causa intranquilidade e instabilidade da relação jurídica.
Ora, se a aplicação do princípio afasta justamente o juízo de tipicidade material da conduta inofensiva ou de baixa lesividade, pouca importam outros critérios como o referido pelo relator, afinal o fato ou é típico ou não é. Adverte Luiz Luisi pontualmente acerca da apontada incongruência:
É inquestionável que se não existe a tipicidade, as circunstâncias presentes no contexto do fato e a vida passada do autor não tem a virtude transformar em ilícito o fato. Uma lesão insignificante a um bem jurídico, ainda que seja de autoria de um reincidente na prática de delitos graves, não faz que ao mesmo se possa atribuir um delito. Seus antecedentes, por mais graves que sejam, não podem levar a tipificação criminal de uma conduta que, por haver causado insignificante dano a um bem jurídico, não causou um lesão relevante.[37]
Rogério Greco em caminho diametralmente oposto, objetivando afastar a insignificância penal atrelada aos valores dos quais a Fazenda pode dispor no processo executivo, afirma que se tratam de coisas distintas o desinteresse da Fazenda Pública em dar início à execução e a tipicidade material, para ele afetada em razão do alto valor dispensado pelo Estado.[38] A discordância manifesta do autor ao reconhecimento da bagatela no crime tributário em apreço é externada pela preocupação da extensão dos efeitos a outros delitos, no entanto de natureza patrimonial.
Luiz Flávio Gomes conclui que a falta uma definição clara político-criminal em relação à matéria acaba por refletir em certa indefinição nos procedimentos criminais. Constatada a bagatelaridade da infração, a mais correta solução seria o arquivamento dos autos de inquérito policial. Processada a acusação, após o juízo de valoração do julgador, a hipótese seria de absolvição sumária (art. 397, III do CPP) ou mesmo o reconhecimento ao final, em sentença, da ausência de crime por falta de tipicidade.[39] Por derradeiro, em não ocorrendo qualquer das hipóteses, para o reconhecimento da atipicidade, necessária a impetração de habeas corpus (art. 647 e 648 I do CPP) para trancamento da ação penal por ausência de justa causa.[40]
CONCLUSÃO
A questão apresentada não é de fácil solução. De um lado os postulados de um Direito Penal mínimo e garantista possibilitariam o reconhecimento da insignificância penal tendo como parâmetro uma norma de Direito Tributário que dispensa a exigibilidade de crédito cujo valor não supere R$ 20.000,00 (vinte mil reais). De outro, a inaplicabilidade do princípio objetivamente como construído, como forma de desestimular as práticas de sonegação fiscal que tanto desfalcam o erário público.
Para fortalecer este posicionamento há que se considerar a realidade do país, no qual o valor que para a Fazenda Pública é ínfimo a ponto de dispensar a exigência pelos mecanismos de execução fiscal, para a população em sua grande parte carente, não só financeiramente falando, mas também considerando a precariedade das políticas públicas que a beneficia o valor é de grande monta, o que vedaria aplicação do princípio e por sua vez a censura penal objetivando o desestímulo da sonegação fiscal.
Observa-se que a ausência de um critério legal acerca da aplicabilidade do princípio cria certa intranquilidade e instabilidade no trato do tema, eis que resta ao julgador a valoração da conduta e do resultado de forma a afastar ou não a atipicidade penal no caso concreto.
Percebe-se ainda que a pacificação da matéria em nossos tribunais parece estar longe de ser alcançada, eis que os julgadores têm adotado critérios distintos para determinar a insignificância penal do fato, afastando a incidência da norma, ora considerando somente o desvalor da conduta e do resultado, ora acrescendo à análise o perfil do agente, de forma a afastar a aplicação do princípio em voga em hipóteses de contumácia na prática delituosa.
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Art. 2.o O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não ocorrida a citação pessoal do executado e não conste dos autos garantia útil à satisfação do crédito.
Parágrafo único. O disposto no caput se aplica às execuções que ainda não tenham sido esgotadas as diligências para que se considere frustrada a citação do executado.
Relator(a): Min. LUIZ FUX Julgamento:09/08/2011. Órgão Julgador: Primeira Turma)
Fonte: Direito Penal Virtual
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