O princípio da presunção de inocência e os conceitos relativos a maus antecedentes e a reincidência à luz da jurisprudência do STF e do STJ

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14 de setembro6 min. de leitura

27. Princípio da Presunção de Inocência (ou Estado de Inocência ou Não Culpabilidade)

Vou trabalhar com você assuntos que podem aparecer nas provas de direito constitucional, penal e processual penal, ok?

Você já sabe que, de acordo com o texto constitucional, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A maior polêmica relacionada a esse ponto, sem dúvida, está na possibilidade (ou não) de prisão do acusado, mesmo antes do trânsito em julgado da condenação.

O assunto é complexo e há algumas viragens de jurisprudência, o que numa linguagem popular mais parece aquele “tira casaco, bota casaco”.

Para você entender melhor, fiz uma linha do tempo. Veja:

 

Linha do Tempo da Prisão em 2ª instância na jurisprudência do STF

Data

Decisão do STF

Processo nº

28.06.1991

É possível execução provisória após condenação em 2ª instância

HC 68.726

05.02.2009

Precisa aguardar o trânsito em julgado da condenação

HC 84.078

17.02.2016

É possível execução provisória após condenação em 2ª instância

HC 126.292

24.10.2019

Precisa aguardar o trânsito em julgado da condenação

ADC 43, 44 e 54

 

Na atualidade, prevaleceu por 6 votos a 5 a orientação de que não é possível a prisão automática antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Esqueça toda a polêmica das redes sociais e das conversas nos grupos de família e dos amigos. A minha análise aqui é meramente técnica, sem partidarismos, sem direcionamentos.

Seja lá qual for o seu entendimento, lembre-se que há sólidos argumentos num e noutro sentido, tanto que o placar em cada uma das votações lembradas aí em cima normalmente é apertado.

Vamos lá!

Antes, hoje e sempre se entendeu que havendo fundamentação/motivação, sempre será possível a decretação de prisão cautelar, ou seja, aquela que acontece antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Toda a discussão da “prisão em 2ª instância” deriva do fato de alguns recursos não possuírem efeito suspensivo.

Como assim?

No entendimento que vinha prevalecendo entre 2016 até o final de 2019, era possível a prisão do condenado após o julgamento em 2ª instância, mesmo sem apontar a necessidade da prisão. Isto é, não havia a necessidade de indicar os fundamentos para a prisão preventiva ou temporária. Era automática a expedição do mandado, porque os recursos cabíveis para o STJ e para o STF não possuem efeito suspensivo.

Vou precisar usar um pouco de juridiquês para você compreender melhor, ok?

Quando um recurso possui efeito suspensivo, isso significa que, caso eu o interponha, a decisão atacada não poderá ser executada, ficará suspensa ao menos até o julgamento.

É o que se dá com o recurso de apelação. Suponha que uma pessoa acusada de roubo vinha respondendo ao processo em liberdade e acaba sendo condenada, mas interpõe uma apelação. Com isso, continuará solta, até que o Tribunal julgue seu recurso.

Ocorrendo a confirmação da condenação pelo Tribunal de 2ª instância, a partir daí só restaria para a defesa ingressar com recursos especial (RESP) e extraordinário (RE), respectivamente, para o STJ e para o STF.

No entanto, tanto o RESP quanto o RE são recursos sem efeito suspensivo. Isso significa, então, que a sua interposição, a princípio, não suspende o cumprimento, a execução da decisão.

Foi exatamente esse raciocínio que possibilitou a prisão de pessoas conhecidas, como o ex-Presidente Lula. Na época, ele foi preso porque o TRF 4ª Região confirmou a condenação imposta pelo ex-Juiz Sergio Moro, inclusive aumentando a pena.

Repare que nem durante a tramitação do processo em 1ª instância, nem após a condenação imposta pelo citado juiz foi expedido mandado de prisão. Isso se deu porque não havia fundamentação para a decretação da preventiva.

Apreciada a apelação, e concluído o julgamento na 2ª instância, se a defesa quisesse, só poderia recorrer ao STF e ao STJ, com recursos sem efeito suspensivo como você viu.

Então, a consequência natural era expedir mandado de prisão.

Contudo, a orientação que hoje prevalece, firmada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, levou em consideração a confirmação de validade de um dispositivo do Código de Processo Penal, modificado no ano de 2011 (e novamente em 2019), que diz o seguinte:

 

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.

 

Veja que a regra modificada pelo Congresso Nacional no ano de 2011 passou a permitir a prisão nas seguintes situações:

a) flagrante delito;

b) prisão cautelar (temporária e preventiva);

c) sentença condenatória transitada em julgado.

 

Como você viu, não se falou na possibilidade de prender antes do trânsito em julgado somente pelo fato de os recursos pendentes (para o STJ e para o STF) não terem efeito suspensivo.

Logo, a consequência natural de se confirmar a validade e constitucionalidade desse dispositivo legal, é impedir a prisão automática (sem demonstração da necessidade) antes do trânsito em julgado.

Aragonê, isso pode ser modificado novamente?

Claro que sim, até mesmo porque a decisão do STF, ainda que proferida em controle concentrado, não vincula o Poder Legislativo, que pode editar uma nova lei ou até mesmo fazer uma emenda à Constituição.

Obviamente, essa nova lei ou a emenda também podem ser questionadas judicialmente.

Em resumo, ainda vai correr muita água embaixo da ponte. Leve as informações necessárias para a sua prova, e cuidado para não brigar com amigos e familiares.

Tem só mais um detalhe: lembra do princípio da soberania dos vereditos, que rege o Tribunal do Júri?

Pois é, com base nela – a soberania dos vereditos – é que veio uma das novidades trazidas pelo Pacote Anticrime.

Essa inovação, prevista no artigo 492 do CPP, com a redação dada pela Lei n. 13.964/2019, diz que o juiz mandará o acusado recolher-se à prisão (se estava em liberdade) quando a condenação envolver pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.

Ou seja, mesmo que não estejam presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, sendo fixada pena igual ou superior a 15 anos, o acusado até poderá recorrer, mas aguardará preso o julgamento de seus recursos.

Tudo isso decorre da força maior atribuída às decisões proferidas pelo Tribunal do Júri.

Mas a presunção de inocência também apresenta outros desdobramentos…

O entendimento do STJ e do STF é no sentido de que inquéritos em andamento e ações penais sem trânsito em julgado não podem elevar a pena, a título de maus antecedentes ou de reincidência (Súmula n. 444, STJ).

Aliás, por falar em maus antecedentes e em reincidência, preciso descascar outro abacaxi com você.

Lembra quando as pessoas falam “hoje acordei com vontade de gastar meu réu primário?

Saiba você que a pessoa deixa de ser ré primária somente após a condenação penal definitiva (quando não cabem mais recursos). A partir daí, se cometer novo crime, passará a ser considerada reincidente.

Acontece que mesmo quem “gasta o réu primário”, depois de algum tempo pode deixar de ser reincidente, voltando à primariedade.

É o seguinte: o artigo 64, I, do Código Penal diz que depois de passados cinco anos da extinção ou cumprimento da pena não haverá mais a caracterização de reincidência.

Ou seja, depois dos cinco anos – chamado nas provas de período depurador –, o sujeito volta a ser réu primário.

Só que aí nasce outra grande polêmica: ele será primário de bons ou de maus antecedentes?

No STJ, ambas as Turmas responsáveis pela matéria penal têm (e tinham) entendimento pacífico no sentido de que pode ser aumentada a pena, a título de maus antecedentes, de quem teve condenação extinta há mais de cinco anos. Antes disso, a elevação acontece na forma da agravante da reincidência – STJ, HC 572.224 (5ª Turma) e HC 549.635 (6ª Turma).

A celeuma maior estava no STF, porque de alguns anos para cá foram proferidos diversos julgamentos, na 2ª Turma do Tribunal (conhecidamente mais garantista), estabelecendo que após o período depurador, aquela anotação criminal não poderia ser usada nem de um lado (reincidência) nem de outro (maus antecedentes).

A partir daí, um caso foi selecionado para ser julgado no Plenário, que reúne os 11 ministros, para uniformizar o entendimento.

Então, em agosto de 2.020, foi concluído o julgamento. Acabou sendo fixada a seguinte tese: “Não se aplica para o reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal”. (STF, RE n. 593.818).

Trocando em miúdos, mesmo depois de a condenação anterior não poder mais ser usada para aumentar a pena a título de reincidência (por conta do período depurador), ela pode justificar o acréscimo como maus antecedentes.

Como a análise ocorreu em um recurso extraordinário julgado sob a sistemática da repercussão geral, a tese deve ser seguida por todos os tribunais brasileiros.

Aragonê, mas por quanto tempo a condenação poderá ser usada para aumentar a pena como maus antecedentes? A vida toda?

Diria meu velho pai que essa condenação vai acompanhar você pelo resto da vida, até o osso ficar branquinho (morte)… rsrs.

Ah, um detalhe importante: a mesma anotação (se houver só uma) não pode ser usada para aumentar a pena duas vezes, na forma de maus antecedentes e de reincidência (STJ, Súmula n. 241). No entanto, havendo duas ou mais condenações definitivas, nada impede o duplo acréscimo, utilizando cada anotação em uma fase.

É sempre bom lembrar que atos infracionais praticados na adolescência não podem ser usados para justificar pena mais alta na conta de maus antecedentes ou de reincidência. Entretanto, essas anotações podem justificar a prisão cautelar, como forma de demonstrar que o autor se encontra comprometido com o mundo do crime/atos infracionais.

E, pensando nos concursos públicos, sim, a consideração de maus antecedentes (mesmo depois do período depurador) pode acabar prejudicando o candidato na fase de investigação social, também chamada de sindicância de vida pregressa.

Finalizando, essa discussão toda envolve, de um lado, o princípio da individualização da pena (tratando diferente quem já fez besteira no passado em relação a quem teve um histórico sem manchas) e, de outro lado, a consideração da proibição de pena de caráter perpétuo (para quem entende que não deveria perdurar para sempre o agravamento por conta dos maus antecedentes).

Mas que fique bem claro: na fase de sindicância de vida pregressa dos concursos públicos, é indevida a eliminação de candidatos que possuam inquéritos arquivados, processos com sentença absolutória, com punibilidade extinta por prescrição, quando houve sursis ou transação penal (ARE n. 993.189, STF).

Aliás, tentando dar mais força ao entendimento aí de cima, em fevereiro de 2.020 o STF fixou a seguinte tese: “sem previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal“.

Em resumo, somente condenação transitada em julgado (quando se deixa de ser presumidamente inocente) poderia afastar o candidato.

Ainda, com base na presunção de inocência, é inconstitucional norma que autorize a redução de vencimentos de servidor público enquanto estiver respondendo a processo criminal (STF, ADI 4.736).

Prontinho!

Você agora em toda a munição suficiente para matar qualquer questão que apareça pela frente!

Aragonê Fernandes

Juiz de Direito do TJDFT; ex-Promotor de Justiça do MPDFT; ex-Assessor de Ministros do STJ; ex-Analista do STF; aprovado em vários concursos públicos. Professor de Direito Constitucional do Gran Cusos Online.

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