Polícia Federal tem legitimidade para presidir delação premiada

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Por Cezar Roberto Bitencourt
Fonte: Conjur
O constituinte brasileiro adotou um sistema processual de natureza acusatória, cuja principal característica é absoluta independência e imparcialidade do juiz, abrangendo o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Nesse sistema, garante-se às partes a liberdade de produção de provas de suas alegações, embora, no Brasil, ressinta-se, com clareza meridiana, de graves restrições ao direito à ampla defesa na legislação infraconstitucional, violando-se, inclusive, a decantada paridade de armas, reservando-se um tratamento privilegiado à parte acusatória. A rigor, em tempos de “lava-jato”, a paridade de armas virou “mito processual”, referido de quando em quando, mas não assegurado pelos tribunais superiores, que dispensam tratamento privilegiadíssimo ao Ministério Público, o que dificulta sobremodo o exercício efetivo da ampla defesa e do contraditório, ante tantas restrições ao acesso às investigações, à prova indiciária e, inclusive, aos próprios tribunais superiores.
No modelo acusatório atribui-se ao Ministério Público a titularidade plena da persecução penal em juízo, podendo requisitar, complementarmente, as diligências que necessitar à autoridade policial, ou, se preferir, realizá-las por seus próprios meios. Dessa forma, para subsidiar a propositura da ação penal pública, conta com a investigação criminal levada a efeito pela polícia federal ou estadual, a depender da natureza da jurisdição, federal ou estadual. No entanto, convém destacar, a Polícia Federal não constitui simples longa manus do Ministério Público Federal e tampouco a ele se subordina, como deixa transparente a própria Carta Magna (artigo 144).
Ademais, o Ministério Público não tem nenhuma ingerência na atividade policial e nem mesmo no plano administrativo, havendo absoluta independência de ambas as instituições. O controle externo da Polícia Federal, pelo Ministério Público, refere-se somente a regularidade de sua atividade investigatória, não exercendo, sequer, algo assemelhado à Corregedoria-Policial, ao contrário do que pretendem determinados Órgãos do Parquet.
A rigor, ao contrário do que pretende o Ministério Público, não lhe compete dirigir, orientar ou comandar a investigação criminal realizada pela autoridade policial, na medida em que esta tem absoluta autonomia e independência em seu múnus funcional investigatório. Nenhuma autoridade pode definir ou determinar quais provas considera mais ou menos relevantes para promover uma ação penal, na medida em que estas devem surgir da própria investigação, do seu desenvolvimento, do seu aprofundamento, do surgimento de indícios ou elementos de provas. Na realidade as provas devem surgir naturalmente das próprias investigações e, por isso mesmo, não podem ser determinadas, a priori, por esta ou aquela autoridade, pois elas poderão ou não surgir, tampouco podem ser “produzidas” a manu militare, sob pena de produzir-se prova ilícita. Não se cria e nem se “produz” provas na investigação pré-processual, mas descobre-se provas, encontra-se provas, arrola-se provas existentes etc. Não se pode olvidar, por outro lado, que a própria Carta Magna proíbe a produção de provas por meios ilícitos, a despeito de o próprio Parquet em suas conhecidas “dez medidas contra a corrupção” tentar validar provas obtidas por meios ilícitos e limitar ou suprimir o Habeas Corpus.
No entanto, apresentada as investigações policiais (inquérito policial ou similar do Ministério Público), considerando-as insatisfatórias poderá o Parquet requisitar todas as diligências complementares (artigo 16 do CPP) que considerar necessárias para embasar uma denúncia ou o próprio arquivamento. Contudo, não é permitido ao Ministério Público interferir diretamente na investigação realizada pela polícia federal. Logicamente, toda investigação policial criminal deve harmonizar-se com as pretensões ministeriais, mas o seu resultado deve ser consequência natural do trabalho investigatório realizado nos estritos termos das previsões legais, evitando-se a utilização de meios ilícitos para obtenção de provas, sob pena de macular não apenas as investigações como a própria futura ação penal a ser intentada pelo Parquet.
Não se desconhece que o Ministério Público detém, legitimamente, o monopólio da ação penal pública (artigo 129, I, CF), podendo deliberar, com total autonomia, se denuncia ou pede arquivamento, sem qualquer restrição do Supremo Tribunal Federal. Contudo, pretende monopolizar também a investigação criminal pré-processual, querendo transformar a Polícia Federal em sua simples longa manus, subordinando-a às suas determinações investigatório-criminais. Essa pretensão ignora a absoluta autonomia e independência da polícia federal, que é um Departamento do Ministério da Justiça, mas com independência funcional, pertencente, portanto, ao Poder Executivo.
Hipertrofia do Ministério Público e aplicação de penas
Mas o Ministério Público vai mais longe, na medida em que pretende monopolizar o próprio poder jurisdicional, o qual, na sua ótica, não pode discordar ou decidir diferentemente de suas pretensões, como a praxe tem demonstrado nos últimos tempos. Em outros termos, pretende o Ministério Público monopolizar completo, não apenas investigação criminal e a ação penal pública, mas também do próprio Poder Jurisdicional, aplicando e individualizando pena, concedendo imunidade ou perdão judicial, criando, inclusive, regimes de cumprimento de penas inexistentes.
A rigor, em vários processos da “lava jato” o Ministério Público usurpou, literalmente, a função jurisdicional aplicando e individualizando penas, fixando regimes de cumprimento de penas, inclusive inexistentes (por exemplo, prisão domiciliar em regime fechado, semi-aberto e aberto). Na realidade, esse comportamento do Parquet é absolutamente inconstitucional, a despeito de, pode-se afirmar, vir sendo consentido pelo Poder Judiciário que, cada vez mais, encolhe-se e permite ao Ministério Público exercer a hegemonia do sistema de justiça criminal no Brasil.
Com efeito, qualquer jurista estrangeiro que observar a funcionalidade do sistema jurídico brasileiro concluirá, sem qualquer lugar a dúvida, que quem decide na seara criminal é a Instituição do Ministério Público, sendo reservado ao Poder Judiciário uma função secundária, meramente homologatória, mesmo contra lege, em uma infinidade de situações. Assim, por exemplo, o art. 4º, caput, da Lei 12.850/13 estabelece que o juiz poderá conceder perdão judicial, reduzir a pena de prisão ou substituí-la por restritiva de direitos, “a requerimento das partes”! Em nenhum momento — nem no caput, nem em qualquer de seus 16 parágrafos — autoriza ao Ministério Público exercer os mesmos poderes.
Pelo contrário, reforça que o poder de aplicar pena ou conceder perdão judicial é competência exclusiva do juiz! Por outro lado, quando esse texto legal se refere ao Ministério Público (ou ao delegado de polícia) prescreve que, considerando a relevância da colaboração prestada, “poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador” (§ 2º do mesmo artigo 4º). Desnecessário destacar que esse requerimento ou representação não vincula juiz algum, que tem toda liberdade e independência para avaliar o cabimento do pedido, conveniência e oportunidade de deferi-lo ou não, aliás, exatamente o contrário do que se tem observado ultimamente nas hipóteses de delação premiada.
Ora, repetindo, o exercício dessa atividade pelo Parquet, da forma como vem ocorrendo, é absolutamente inconstitucional, na medida em que aplicar e individualizar penas é uma atribuição exclusiva do Poder Judiciário por definição constitucional. Na realidade, a colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/13, não autoriza e não atribui ao Ministério Púbico poder de aplicar pena reduzida ou conceder imunidade total aos investigados, denunciados ou não. Nesse particular, constata-se que o Ministério Público tem se excedido, com certa aquiescência do Poder Judiciário, equivocada, diga-se de passagem.
A despeito dessa prática estar sendo adotada na conhecida operação lava jato, não é isso que a lei prescreve. Com efeito, o artigo 4º da Lei 12.850/13 autoriza ao juiz, a requerimento das partes, “conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 a pena privativa de liberdade ou substituí-la por penas restritivas de direito”. De igual forma, o §2º do mesmo artigo, possibilita ao Ministério Público e ao delegado de polícia “requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador”. Em outros termos, a lei permite a referidas autoridades postularem ao Poder Judiciário, que é a única autoridade que pode decidir, essa concessão; portanto, a lei não outorgou (e não poderia tê-lo feito) ao Ministério Público poder para aplicar redução de pena ou conceder perdão judicial a eventuais “colaboradores”. Há um excesso in procedendo do Ministério Público, absolutamente inconstitucional, nessas imposições de sanções ou perdões na praxis da “lava jato”, na medida em que se trata de matéria afeta a reserva de jurisdição.
O que há, com efeito, de mais liberal para o Ministério Público, nesse texto legal, é a previsão constante do § 4º da lei de regência. Somente nesse dispositivo admite que o Parquet deixe de oferecer denúncia contra o colaborador, mas, ainda assim, condicionado a dois requisitos: a) não se tratar do líder da organização criminosa; b) for o primeiro a delatar, nos termos do artigo 4º. No entanto, mesmo, nessa hipótese, a decisão final caberá ao Poder Judiciário, que poderá não aceitar a omissão da denúncia, se considerar incabível no caso concreto, por não satisfazer, por exemplo, os requisitos legais.
Legitimidade da polícia federal para presidir colaborações premiadas
A presença da Polícia Federal significa humanizar as investigações criminais no sentido de respeitar as garantias investigatório-processuais, notadamente, o direito de não se auto-incriminar, de ficar em silencio, ser ouvido na presença de seu advogado, de exercer livremente sua ampla defesa, garantias tão caras ao Estado democrático de direito, nem sempre respeitadas pelo Ministério Público, como, por exemplo, ouvir o investigado sem a presença do defensor, alegando informalidade para isso.
O procedimento relativo à “colaboração premiada” desenvolve-se, integralmente, na fase investigatória, isto é, pré-processual, e, como tal, a atuação da Polícia Federal não implica em alteração do modelo acusatório e tampouco vincula ou compromete a isenção do magistrado, ao contrário do que sustenta o Parquet em sua ADI 5.508, não havendo qualquer reflexo no devido processo legal assegurado na Carta Magna. Por isso, o acordo de delação premiada, sem a participação do Ministério Público e até mesmo com seu parecer contrário, não a desnatura e tampouco ofende a imparcialidade do julgador ou o princípio do contraditório, como se afirma. Deve-se destacar, ademais, que o conteúdo da delação não se refere à instrução processual e tampouco vincula o magistrado que a homologa, pois, seus reflexos incidirão na consequência penal, isto é, na aplicação da pena e na sua execução. Por isso, eventual intervenção do juiz na consequência do acordo presidido pela autoridade policial não o torna um inquisidor e não o vincula a qualquer das partes, continuando isento para julgar a ação penal.
Aliás, até hoje o Parquet nunca se insurgiu contra a possiblidade de os juízes decretarem prisões processuais, de qualquer de suas espécies, ainda no curso das investigações policiais, que levam, claramente, o respectivo juízo “parcializar-se” ao examinar matéria processual, na linguagem utilizada na própria ADI 5.508.
Por essas razões, venia concessa, o fato de não ser parte na ação penal não impede que o delegado de polícia possa negociar acordo de colaboração premiada, pois esta realiza-se na fase investigatória, da qual, a autoridade policial é a genuína titular, em nosso sistema jurídico, que admite, sem qualquer demérito, a denominação de sistema processual misto. Ademais, não é verdadeira assertiva de que “apenas as partes detêm pretensões passíveis de apreciação judicial” (fl. 35 da ADI 5.508); fosse assim, a autoridade policial não poderia requerer ou representar pelas prisões cautelares. Dessa forma, não há razão para se declarar inconstitucional os trechos — que se referem ao delegado de polícia — destacados na referida ADI (fl. 36 da ADI). Por outro lado, relativamente à locução “partes” constante do § 2º do artigo 4º deve-se dar-lhe interpretação conforme a Constituição, considerando autoridades investigadoras e investigados.
Parte da doutrina reconhece a possibilidade de delegado de polícia formalizar acordo de colaboração premiada, desde que validado pelo Ministério Público, que é o titular da ação penal. Sempre que o fizer sem sua presença, deverá encaminhar-lhe cópia para manifestar-se[1]; discordamos, contudo, que necessite fazê-lo, via magistrado, devendo, na nossa concepção, encaminhá-lo, diretamente, ao Ministério Público. Havendo divergência dessa instituição, dever-se-á refazer o acordo com a sua participação, bem como do investigado e seu defensor. Na verdade, a reivindicação para fazer uso da colaboração premiada, como meio investigativo, não significa que a polícia esteja pretendendo exercer a pretensão punitiva, ao contrário do que afirma a inicial da ADI 5.508.
Não vemos nenhum equívoco da Lei 12.850/2013 ou ofensa à Constituição ao disciplinar a colaboração premiada como meio para investigação de organizações criminosas conferindo à autoridade policial atribuições para usar tal instrumento, na medida em que, na fase investigatória pré-processual, não se pode excluir de referida autoridade qualquer meio legal investigativo. Dessa forma, nos dispositivos legais — artigo 4º, §§ 2º e 6º — quando se referem a “partes” devem ser interpretados conforme a constituição para considerar “participantes” ou “acordantes”, sem qualquer prejuízo ao “sistema acusatório”, o qual, sabidamente, não é puro, mas misto, em nosso ordenamento jurídico. Essa interpretação, por outro lado, não invalida e nem enfraquece a titularidade da ação penal, que é exclusiva do Ministério Público e tampouco a independência e imparcialidade do Juiz.
Para concluir, a despeito de a lei prever “manifestação” do Ministério Público, concordamos que tal manifestação deverá ser, necessariamente, vinculativa no sentido de determinar a necessidade de alteração e adequação da proposta de acordo celebrada com e pela polícia, antes ser encaminhada à homologação judicial, ainda que a mens legislatoris tenha sido em sentido diverso. Com interpretação conforme dos textos referidos, cai por terra a alegada inconstitucionalidade sustentada na ADI 5.508, preservando tanto a titularidade da ação penal exclusiva do Ministério Público[2], como a imparcialidade judicial e, principalmente, a integridade do sistema acusatório (misto) brasileiro.
[1] SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações criminosas: aspectos penais e processuais
Lei 12.850/13, 2a ed., São Paulo, Editora Atlas, 2015, p. 60-62.
[2] JARDIM, Afrânio. Poder Judiciário não deve ser refém de acordos de delação premiada do MP, Conjur, 18 de outubro de 2015 (item n. 5).



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