Reconhecimento de inimputabilidade penal depende de incidente de insanidade mental?

Eis uma importantíssima e recente decisão da 6ª Turma do STJ.

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28 de Agosto de 2020

Olá pessoal, tudo certo?

Hoje vamos tratar de uma decisão interessantíssima e que aparecerá nas próximas provas de direito penal e processual penal, da lavra da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, exarada no dia 23 de junho de 2020.

Ao concluir o julgamento do REsp 1.802.845/RS, o colegiado anotou, à unanimidade, que o reconhecimento da inimputabilidade ou semimputabilidade do réu depende da prévia instauração de incidente de insanidade mental e do respectivo exame médico-legal nele previsto. Dizendo de outro modo, não há possibilidade de ser reconhecida a inimputabilidade ou semi-imputabilidade do acusado com base exclusivamente no depoimento da vítima ou de testemunhas, sem a efetiva determinação da realização do exame médico-legal.

É importante destacar também que, segundo o STJ, a mera alegação de que o acusado é inimputável não justifica a instauração de incidente de insanidade mental, providência que deve ser condicionada à efetiva demonstração da sua necessidade, mormente quando há dúvida a respeito do seu poder de autodeterminação[1].

Sabemos que o processo penal brasileiro se orienta pelo sistema da persuasão racional, razão pela qual o juiz (con)forma seu convencimento a partir da livre apreciação da prova (art. 155 do CPP). Ou seja, como regra, não há que se falar em prova legal ou tarifada como critério de solução de controvérsias processuais. No entanto, especificamente em relação à inimputabilidade (art. 26, caput, do CP) e semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único, do CP), não há como ignorar a importância do exame pericial, considerando que o Código Penal adotou expressamente o critério biopsicológico.

Consoante importante escólio doutrinário, “o exame de insanidade mental é de fundamental importância para o reconhecimento da doença mental à época do crime e no momento atual. Ainda que outras provas indiquem a necessidade de realização do exame (v.g., certidão de interdição), jamais poderão suprir esta prova pericial. Afinal, levando-se em consideração que o Código Penal adota, em regra, o sistema biopsicológico para o reconhecimento da imputabilidade (art. 26, caput), é de fundamental importância aferir não só a presença de doença mental, ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, mas também se, por conta disso, teve o acusado suprimida sua capacidade de entendimento e de autodeterminação à época do fato delituoso. Nesse sentido, como já se pronunciou o STJ, a conclusão do laudo pericial, ora acostado aos autos, produzido no processo de interdição civil do acusado, é válido apenas em relação aos atos de sua vida civil, não sendo capaz de isentá-lo da culpabilidade penal. Tal dúvida somente será solucionada após a realização correta do incidente de sanidade mental do acusado, o qual ainda não se efetivou por culpa exclusiva do paciente”[2].

Certo, Pedro! Mas, afinal, é ou não possível reconhecer a inimputabilidade sem incidente de insanidade mental?

Ora, o magistrado não detém os conhecimentos técnicos indispensáveis para aferir a saúde mental do réu, tampouco a sua capacidade de se autodeterminar, daí porque fora salutar a previsão do incidente de insanidade mental, delineado a partir do art. 149 do CPP. A relevância desse incidente não sobressai apenas do conteúdo técnico da prova que se almeja produzir, mas também da vontade do legislador que, especificamente nos arts. 151 e 152 do CPP, estabeleceu algumas consequências diretas extraídas da conclusão do exame pericial, como a continuidade da presença do curador e a suspensão do processo.

ATENÇÃO! Isso não significa dizer que o magistrado está vinculado às conclusões do laudo pericial. NÃO ESTÁ! Aliás, isso é expressamente sublinhado no art. 182 do CPP, ao se anotar que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte“.

Aliás, sobre a possibilidade de o juízo discordar das conclusões exaradas pelos peritos experts nos laudos produzidos em juízo, vale destacar as lições de Gustavo Badaró no sentido de que “em princípio aplica-se ao laudo que resulta do incidente de insanidade mental a regra geral das perícias, prevista no art. 182 do CPP, segundo a qual o juiz não fica vinculado aos laudos periciais, podendo aceitá-los ou rejeitá-los, no todo ou em parte, o que é uma decorrência da máxima de que o juiz é o peritus peritorum. Todavia, em virtude da elevada especialização técnica da questão de definir ou não a ocorrência de insanidade mental no momento da prática da infração penal, será muito difícil que o juiz, sem qualquer outro elemento técnico, possa divergir do laudo pericial. Poderá haver divergência entre os laudos periciais: (i) caso se considere que prevalece a regra do art. 150 do CPP, que prevê a nomeação de peritos – sobre a regra do art. 159, caput, com a redação dada pela Lei no 11.690/2008, que determina a realização das perícias por “perito oficial”; (ii) caso sejam nomeados peritos não oficiais e cada um apresente seu laudo, com resultados divergentes (art. 159, § 1º); (iii) considerando que em um caso concreto a perícia de insanidade mental será particularmente complexa, o juiz designe mais de um perito oficial (art. 159, § 7º). Em qualquer desses casos, o juiz poderá privilegiar o resultado de um laudo em detrimento de outro, ou nomear um terceiro perito, ou mandar proceder a novo exame por outros peritos (CPP, art. 180). A divergência entre o laudo oficial e os pareceres dos assistentes técnicos pode autorizar a adoção das providências do citado art. 180 do CPP”[3].

No julgamento específico do REsp 1.802.845/RS, a conclusão da 6ª Turma foi no sentido de que o laudo produzido não é necessariamente vinculante, mas – para o efetivo e concreto reconhecimento da inimputabilidade ou semi-imputabilidade penal pelo julgador, a realização do exame médico-legal é IMPRESCINDÍVEL como forma de colaborar a formação da convicção do julgador, para fins de aplicação do art. 26 do Código Penal!

Esse tema tem cara de prova! Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!

Vamos em frente.

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 

 

[1] AgRg no HC n. 516.731/GO, Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, 2019

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 5ª edição. Salvador: Juspodivm, 2017, págs. 1.191-1.192

[3] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus, 2012, pág. 249

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28 de Agosto de 2020