Reflexões sobre a tortura-discriminatória ou tortura-racismo

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Em outubro de 2021, o Plenário do STF, no julgamento do HC 154.248 equiparou a injúria racial a crime de racismo, considerando-a imprescritível[1].

Em 2019, o Plenário do STF enquadrou a homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do já aposentado ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin[2]

“Por maioria, a Corte reconheceu a mora do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT. Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria. Nesse ponto, ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, por entenderem que a conduta só pode ser punida mediante lei aprovada pelo Legislativo. O ministro Marco Aurélio não reconhecia a mora”.

Apesar de difícil ocorrência na prática, nos julgamentos em comento não houve qualquer menção ao crime de Tortura-Discriminatória também conhecida como Tortura-Racismo.

Rege o art. 1º, inc.I, alínea “c”, da Lei 9455/97:

(…)Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

(…)

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;” (Grifei)

 

ATENÇÃO: De todos os crimes previstos na Lei em estudo é o mais cobrado nas provas objetivas.

Assim como Tortura-Prova e na Tortura-Crime, a modalidade de tortura tipificada na alínea “c” do inciso I do art. 1º é crime um comum, ou seja, qualquer pessoa pode praticá-lo.

Constranger é o verbo núcleo e significa forçar ou coagir. Mas, ao contrário das alíneas “a” e “b”, em que as vítimas eram constrangidas a “fazer algo”, agora o ofendido será torturado por conta unicamente da discriminação racial ou religiosa.

Os meios executórios são a violência ou a grave ameaça (regra), e elas devem causar sofrimento físico ou mental na vítima.

O tipo penal em comento menciona apenas a tortura em razão da discriminação racial ou religiosa. A lei não fala em discriminação por orientação sexual, por procedência nacional, etnia ou cor.

Nucci professa a religião “é a crença em uma existência sobrenatural ou em uma força divina, que rege o Universo e as relações humanas em geral, embora de um ponto de vista metafísico, com manifestações através de rituais ou cultos. Ex: religião católica” [3].

A Lei nº 7.716/89, em seu art. 1º, determina que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. E como já foi dito, tal norma teve o seu alcance alargado pelo STF no julgamento do MI 4733-DF.

Analisando o preceito primário da tortura-discriminatória ou tortura-racismo, é fundamental mencionar que no caso Ellwanger[4] , o STF reconheceu que não há divisões entre raças, nesse sentido:

(…) 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista (…)(HC 82424, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524) (Grifo nosso).

 

Sobre o emprego da palavra raça assinala Roberta Fragoso Menezes Kaufmann:

A palavra raça pode ser empregada nas mais diferentes maneiras. Pode ter um sentido de fenótipo, a revelar um conjunto de características físicas, como cor da pele, cor e textura do cabelo, cor e formato dos olhos, formato do nariz e espessura dos lábios. Pode, ainda, significar uma região específica do planeta, como por exemplo, quando se fala em raça africana, raça oriental, raça ocidental. Ou, além, pode ter um sentido biológico, como a reunião de pessoas em grupos de indivíduos que possuam características específicas e distintas dos outros grupos. Até o final do século XIX, os cientistas promoveram diversas tentativas de classificar biologicamente as pessoas em raças distintas. Mas como afirma o geneticista Cavalli-Sforza: “Os resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da dificuldade do empreendimento. Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do número de raças – de três a mais de cem” (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.2003: p. 37).

O interesse científico em classificar os homens em raças biologicamente distintas chocava-se com a mobilidade com que as características raciais mudavam. Nesse sentido, o geneticista Sérgio Pena explicou que a espécie humana é “demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos” (PENA, Sérgio et. al. 2000: p. 17-25). E, ainda que se quisesse fazer uma aproximação da quantidade de raças existentes no mundo, os números poderiam ultrapassar um milhão de raças distintas (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. 2003: p. 52). Nessa óptica, o mapeamento do genoma humano confirmou a impossibilidade de divisão dos homens em raças.(…)

Na verdade, o conceito de raça subsiste, atualmente, porque, a despeito de não poder ser analisado sob o espectro biológico, permanece o interesse pela construção cultural do tema (Ver em FERREIRA, Nayara. (2007: p. 245). O fato de, biologicamente, não ser possível classificar as pessoas segundo as raças, não quer dizer que o conceito cultural de raça inexista. A importância da classificação advém do aspecto social, para estudarmos o modo como cada comunidade classifica seus indivíduos e analisarmos as razões que justificaram a opção pelos critérios eleitos em cada sociedade.[5]

Assim, tem-se que biologicamente não há distinções entre raças, porém o conceito cultural de raça existe.

No que tange ao racismo, entende-se que esta palavra limita a área de incidência da discriminação, ao passo que as manifestações preconceituosas são genéricas, podendo ser variadas envolvendo a raça, cor, idade, sexo, grupo social, etc.

Torno repetir que a Tortura-Discriminatória ou Tortura-Racismo não menciona no tipo penal cor, etnia e procedência.

Segundo Guilherme de Souza Nucci, valendo-se dos ensinamentos de Christiano Jorge Santos: “cor é termo melhor utilizado para definição cromática de qualquer matéria, do que propriamente para distinção de pessoas, embora seja empregado para definição da pigmentação epidérmica dos seres humanos” [6].

   Nucci diz que a etnia “é o grupo de pessoas que apresenta homogeneidade cultural ou lingüística[7]”. Em Ruanda, por exemplo, existem duas etnias: tutsis e os hutus.

Por fim, Guilherme Nucci conceitua procedência nacional: “é a origem de nascimento de algum lugar do Brasil. Exemplos: paulista (nascido em São Paulo), carioca (nascido no Rio de Janeiro), gaúcho (originário do Rio Grande do Sul)”[8].

Tanto o STF, diante das decisões já mencionadas, como o legislador infraconstitucional tiveram mais cuidado com a Lei 7716/89 e o art. 140, §3º, do CP.

O artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal, que trata do combate ao Racismo é uma norma de eficácia limitada, que estabelece em sede constitucional, que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.

A lei 8081/90 renumerou os artigos 20 e 21 da Lei 7716/89.

A Lei 9.459/97 alterou o disposto nos artigos 1º e 20 da Lei 7.716/89, e passou a punir com penas de até cinco anos de reclusão, além de multa, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

A Lei 10.741/03 acrescentou o §3º ao artigo 140 do Código Penal, tipificando a injúria com utilização de elementos relacionados a raça, cor, etnia, religião ou origem, cominando penas de reclusão de um a três anos, e multa.

A lei 12.033/09 alterou o parágrafo único do artigo 145 do Código Penal, tornando pública condicionada à representação a ação penal nos crimes de injúria qualificada. Cumpre ressaltar que os crimes previstos na Lei de Preconceito são de ação penal pública incondicionada.

Faz-se necessário diferenciar a injúria racial, crime previsto no art. 140 § 3º do Código Penal, do delito previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89.

Assim dispõe o art. 140 § 3º do Código Penal:

 

“Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

(…)

  • 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”

 

Já o artigo 20 da Lei 7716/89 tem a seguinte redação:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

No crime previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89 a ofensa é dirigida a um grupo de pessoas, sendo que a intenção do agente é discriminar a vítima de modo a segregá-la de alguma forma do convívio em sociedade. De outra parte, na injúria qualificada a ofensa é direcionada a honra subjetiva do indivíduo, ofensa esta que é agregada à raça, cor, etnia, religião ou origem.

 

No mesmo sentido, assevera Celso Delmanto, in verbis:

comete o crime do art. 140, § 3º, do CP, e não o delito do art. 20 da Lei nº 7.716/89, o agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima[9].

A depender da conduta, o criminoso responderá por tortura discriminatória em concurso com o crime de preconceito. Basta imaginar a situação de um evangélico que impedido de entrar em um culto para professar sua religião, sendo que para tanto, o criminoso emprega de violência causando sofrimento físico na vítima, por conta de sua religião.

Ao longo dos anos, o crime de Tortura-Discriminatória ou Tortura-Racismo permaneceu com sua redação original, mesmo diante da alteração dos textos da Lei n° 7716/89 e do §3º do art. 140 do Código Penal.

Como não há notícia da prática de tal delito no território nacional, o tema sobre o alcance do art. 1º, inc. I, “c”, da Lei 9455/97, se abarcaria orientação sexual, etnia, cor e procedência nacional, permanece dormente.

Sobre a imprescritibilidade da Tortura-Discriminatória ou Tortura-Racismo,

o artigo 7o do Estatuto de Roma definiu quais condutas seriam consideradas “crimes contra a humanidade”, dentre as quais podemos citar homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, agressão sexual e tortura e tais condutas não prescreveriam.

 

Na doutrina o assunto é tormentoso. Eduardo Luiz Santos Cabette e Francisco Sannini Neto nos ensinam[10]:

“Ocorre que o Estatuto de Roma, internalizado através do Decreto 4.338/02, estabelece que a tortura é um crime contra a humanidade e imprescritível, “quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil” (art.7º, I, f). Reforçando essa premissa, o artigo 29, do Estatuto de Roma, diz que os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.

Nesse cenário, discute-se na doutrina se o crime de tortura seria de natureza imprescritível ou não. Para uma primeira corrente, se a tortura houver sido praticada após a entrada em vigor do Decreto 4.388/02, que internalizou o Estatuto de Roma, e na forma do seu artigo 7º, I, f, o crime seria imprescritível. Em reforço, LIMA destaca que esse entendimento vai ao encontro do princípio pro homine, devendo prevalecer a norma mais protetiva aos direitos humanos.

Uma segunda corrente, todavia, entende que só são imprescritíveis os crimes assim considerados pela Constituição da República, “não se admitindo nenhuma outra exceção em nosso ordenamento jurídico”. Parece-nos correto esse entendimento, uma vez que a prescrição é um direito fundamental e, como tal, não poderia ser mitigado por tratados ou convenções internacionais. Ora, se o legislador constituinte entendeu por bem tornar imprescritível apenas o crime de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, não se pode admitir a ampliação desse rol”.

 

Questão de prova

 

Ano: 2018 Banca: COPS-UEL Órgão: PC-PR Prova: COPS-UEL – 2018 – PC-PR – Escrivão de Polícia

Assinale a alternativa que apresenta, corretamente, a denominação do crime decorrente de constrangimento a alguém, com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, em razão de discriminação racial e apenado com reclusão de 2 a 8 anos.

Alternativas

A Crime de constrangimento ilegal.

B Crime de lesão física e mental.

C Crime de violência ou grave ameaça.

D Crime de racismo.

E Crime de tortura.

Gabarito: E.

 

Comentários:  A alternativa E está de acordo com o que rege o art. 1º, inc.I, alínea “c”, da Lei 9455/97:

(…)Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

(…)

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;” (Grifei)

 


[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-out-28/stf-equipara-injuria-racial-racismo-considerando-imprescritivel, acesso em 05/11/2021, às 19h20.

[2] Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010, acesso em em 05/11/2021, às 19h29.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.

[4] Caso que trata sobre o conflito entre a liberdade de manifestação do pensamento e as expressões de ódio racial, que transgridem os valores tutelados pela própria ordem constitucional.”Ellwanger Siegfried é um editor e autor de Porto Alegre, de inequívoca orientação nazista. Dedica-se, de forma sistemática, a reeditar os livros de estridente anti-semitismo em voga nos anos 30, como a conhecida falsificação Os Protocolos dos Sábios de Sião. É, ele mesmo, autor de obra intitulada Holocausto judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século, que denega o fato histórico do crime de genocídio, conduzido pelo regime nazista. Por sua conduta, voltada para deliberadamente incitar a discriminação e o preconceito, Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime da prática do racismo, crime que a Constituição declara inafiançável e imprescritível. Habeas-corpus em seu benefício foi impetrado e denegado pelo Superior Tribunal de Justiça. Daí novo pedido de habeas-corpus ao STF”. (LAFER, Celso. RACISMO – o STF e o caso Ellwnager. Disponível na Internet <http://afrobras.org.br/index.php?option=content&task=view&id=305>)

 

[5] KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? . R. Jur. UNIJUS. Uberaba-MG, V.10, n. 13, p.117-144, Novembro, 2007.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.

[9] DELMANTO, Celso e outros. Código Penal comentado. 6ª ed., Renovar, p. 305.

[10] Disponivel em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/12/21/tortura-racial-e-crime-imprescritivel/ , acesso em 05/11/2021, às 20h10.

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