Responsabilidade dos administradores por créditos trabalhistas e a nova Lei n.º 14.195, de 2021

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26 de setembro6 min. de leitura

Administrador é todo aquele, sendo sócio ou não (se assim a lei não exigir), recebe poderes, quer pelo contrato social, quer por ato em separado, para decidir em nome da pessoa jurídica, determinando os rumos e os negócios da sociedade, independentemente do nome do cargo ou da função que ocupa. Em regra, o administrador não responde pelas obrigações da sociedade. No entanto, responderá em algumas situações:

  • hipótese do 1.012 do CC: “O administrador, nomeado por instrumento em separado, deve averbá-lo à margem da inscrição da sociedade, e, pelos atos que praticar, antes de requerer a averbação, responde pessoal e solidariamente com a sociedade”.
  • hipótese do 1.016 do CC: “Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
  • hipótese do 1.158, § 3º, do CC: “A omissão da palavra “limitada” determina a responsabilidade solidária e ilimitada dos administradores que assim empregarem a firma ou a denominação da sociedade”.
  • hipótese do 158 da Lei nº 6.404/76: “O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente pelos prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições e poderes, com culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto”.
  • hipótese do 50 do CC: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019) § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).

Importa trazer à colação o magistério de Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, para que se deve distinguir desconsideração de despersonalização. A primeira é episódica e excepcional. Quando os sócios, administradores ou gerentes agirem com excesso de poderes (“ultra vires” ou “beyond powers“), de maneira contrária à lei ou aos estatutos, não há que se falar em desconsideração da pessoa jurídica, pois esta não serviu como véu; as pessoas é que agiram de forma ilícita, sendo, por isso, pessoalmente responsabilizadas.

Com efeito, o objeto social da empresa, a atuação para cujo mister a sociedade se organizou, de acordo com seu contrato ou estatuto social, define e delimita o poder dos administradores (artigo 47 do Código Civil), que podem praticar todos os atos necessários para atingi-lo, ao exercer a gestão da empresa. “O objeto social, simultaneamente, limita a liberdade de gestão dos administradores e preordena a sua atuação” (cf. Marcelo Vieira von Adamek e Erasmo Valladão A. e N. França. Vinculação da sociedade: notas críticas ao art. 1.015 do Código Civil, RA 96/66). A propósito do tema, o TRT da 3ª Região já enfrentou o assunto para delimitar a responsabilidade de sócio minoritário:

AGRAVO DE PETIÇÃO. SÓCIA MINORITÁRIA. RESPONSABILIDADE LIMITADA À PARTICIPAÇÃO NO CAPITAL SOCIAL. AUSÊNCIA DE PROVA DE QUE A AGRAVANTE PRATICOU MÁ ADMINISTRAÇÃO OU AGIU COM ABUSO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. Não havendo prova nos autos que a agravante praticou má administração da sociedade ou que agiu com abuso da personalidade jurídica (art. 28 do CDC e art. 50 do CCB), a sua responsabilidade, como sócia minoritária da sociedade por cotas (1%) limita-se à sua participação no capital social, salvo se tiver atuado “ultra vires”, ou seja, com excesso de poder ou além das permissões contidas nos estatutos ou no contrato social. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0010666-19.2018.5.03.0132 (APPS); Disponibilização: 04/05/2020, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 1016; Órgão Julgador: Nona Turma; Relator: Rodrigo Ribeiro Bueno)

Atenção: há quem defenda que para ser possível a responsabilização do administrador, ele não pode ser empregado, uma vez que empregado não participa dos riscos do empreendimento e o empregador responde objetivamente pelos atos de seus prepostos. Desse modo, os bens do administrador que é empregado não podem responder para adimplemento de obrigações das sociedade, excetose houver responsabilização pessoal e direta do administrador nos casos previstos em lei.

Ao se referir ao artigo 50 do CC, Enoque Ribeiro dos Santos, por sua vez, entende que “no que tange aos administradores responsáveis, a lei não distingue entre associados, prestadores de serviços, voluntários, empregados, contadores etc. Seja qual for a natureza da relação jurídica mantida pelo administrador com a pessoa jurídica que administra, ele responde civilmente, em caso de abuso de personalidade jurídica ou desvio de finalidade, por atos de sua gestão”.

Aplica-se no direito do trabalho a teoria “ultra vires”?

De origem anglo-saxônica, a teoria ultra vires societatis (além do conteúdo ou do objeto da sociedade) dispõe que, se o administrador, ao praticar atos de gestão, violar o objeto social delimitado no ato constitutivo, atuando em excesso de poderes, este ato não poderá ser imputado à sociedade.

Antes do novo Código Civil era observada pelo legislador brasileiro a teoria da aparência, pela qual a sociedade responde pelos atos praticados por seus administradores, mesmo quando feitos com abusividade, fora do objeto social da pessoa jurídica, já que, até então, a teoria ultra vires não adotada entre nós.

Atualmente, o art. 47 do Código Civil prevê que obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo. A contrario sensu, o dispositivo dá a entender que os atos praticados pelos administradores com abuso de poder não obriga a sociedade.

Mas, referido dispositivo deve ser lido em conjunto do o parágrafo único, do art. 1.015, do Código Civil, pelo qual o excesso por parte dos administradores somente não obrigará a sociedade perante terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II – provando-se que era conhecida do terceiro; III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Vale a pena a leitura do texto legal, verbis:

Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;

II – provando-se que era conhecida do terceiro;

III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

Apesar disso, o enunciado n.º 11 da I Jornada I Direito Comercial  do STJ estabeleceu corretamente que: “A regra do art. 1015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé.

Portanto, quid iuris se um empregado reste prejudicado (material ou moralmente) em razão de um ato do administrador praticado em abuso de direito e a sociedade comprova uma das hipóteses do parágrafo único do artigo 1.015 do Código Civil (atualmente revogado, como se verá adiante) ou invoca o artigo 47 do Código Civil?

De início, importante observar que a teoria ultra vires somente pode ser invocada quando a sociedade não se beneficia do ato praticado pelo administrador, situação que dificilmente ocorrerá no Direito do Trabalho, pois a sociedades quase sempre se beneficiará do trabalho do empregado.

Mas, em se tratando de hipótese na qual nunca houve trabalho e a sociedade em nada se beneficiou, poder-se-ia cogitar na responsabilização apenas do administrador e não da sociedade. Contudo, mesmo nestes casos, é possível invocar a culpa in eligendo da sociedade, devendo ser ela responsabilizada, sobretudo se o administrador for também empregado, caso em que a empresa responderá objetivamente. Assim, haverá sempre a culpa in eligendo, isto é, quem escolheu mal o administrador responde pelo atos que este praticar e, às vezes, responsabilidade objetiva.

A situação ficou ainda mais complexa com a revogação do parágrafo único, do artigo 1.015 do Código Civil, pela Lei n.º 14.195, de 2021. Restou apenas o caput do artigo 1.015: “No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir“.

Diante da revogação ora noticiada, parece que o excesso por parte dos administradores não mais pode ser oposto a terceiros, já que as únicas hipóteses em que isso era possível (antes previstas no parágrafo único), foram revogadas. Desse modo, as sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé, ainda que o administrador tenha atuado “ultra vires“.

Não se desconhece o teor do artigo 47 do Código Civil (“obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo“). O dispositivo dá a entender que os atos praticados pelos administradores com abuso de poder não obriga a sociedade. Contudo, para fins de responsabilidade civil, a questão não se mostra tormentosa, diante do disposto nos artigos 932, inciso III e 933, ambos do Código Civil.

Já em não se tratando de responsabilidade civil, mas sim de créditos trabalhistas variados, é possível sustentar a responsabilidade da empresa com base na culpa in eligendo, mormente se a empresa se beneficiou, direta ou indiretamente, da força de trabalho do empregado. Ademais, a teoria ultra vires positivada no artigo 47 do Código Civil não é absoluta, ou seja, é possível invocar a teoria da aparência para responsabilizar a pessoa jurídica, especialmente diante dos ditames da boa-fé.

 

 

 

 

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26 de setembro6 min. de leitura