Servidor com aposentadoria cassada pode aproveitar o tempo de contribuição no RGPS?

(julgamento do TEMA 233, da TNU)

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26 de agosto7 min. de leitura

Olá amigos e amigas do Gran!

Tudo bem?

Hoje tenho um assunto interessante para abordarmos, extraído da jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização, referente ao julgamento do TEMA 233 de seus representativos de controvérsia.

A questão submetida a julgamento na TNU era saber se, uma vez cassada a aposentadoria estatutária do servidor público, poderia o respectivo tempo de contribuição usado para a aposentadoria cassada, ser usado para a obtenção de aposentadoria no regime geral.

Em outros termos: se o servidor sofresse a penalidade máxima de cassação de sua aposentadoria, o tempo que ele havia usado para conseguir esse benefício no regime próprio poderia ser migrado, digamos, para o RGPS, mediante a contagem recíproca?

O que você acha? Como fica o tempo de contribuição de uma aposentadoria cassada no serviço público? Fica “cassado” também? Ou o servidor penalizado ainda pode pegar esse tempo todo de contribuição e usar no regime geral? Será que a penalidade teria um efeito, digamos, aderente ao tempo contributivo?

Pois veja só o que a TNU decidiu sobre essa questão.

Vamos por partes, desde o início dessa história, ok?

O incidente de uniformização dirigido à TNU foi manejado pela parte autora, uma segurada do RPPS do Estado do Rio de Janeiro (DETRAN-RJ), com base no art. 14, §2º, da Lei n. 10.259/01.

O que aconteceu com ela? Ela sofreu pena de cassação de aposentadoria e, após perder seu benefício no regime próprio do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu administrativamente obter a CTC na Administração Pública Estadual. Em seguida, dirigiu-se ao INSS e tentou averbar o tempo de contribuição correspondente no regime geral

Conseguiu? NÃO!

A autarquia previdenciária não aceitou essa averbação e ela recorreu ao Judiciário Federal.

A sentença de primeiro grau julgou o seu pedido procedente, permitindo a averbação.

O INSS recorreu e o acórdão proferido pela 4ª TR do Rio de Janeiro/RJ deu provimento ao seu recurso inominado, reconhecendo a impossibilidade de aproveitamento do tempo de contribuição pela parte autora perante o INSS. O acórdão da 4ª TR/RJ, portanto, afirmou que a cassação de aposentadoria da servidora não poderia permitir que o tempo de contribuição no serviço púbico pudesse ser aproveitado mediante contagem recíproca perante o RGPS, sob pena de burla à lei.

Veja bem como é a cassação de aposentadoria.

A cassação de aposentadoria no serviço público federal está prevista no art. 127, IV, c/c art. 134, ambos da Lei n. 8.112/90 e é uma espécie de penalidade administrativa.  Segundo o art. 134, da lei referida será “cassada a aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com a demissão”. No estatuto dos servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro-RJ, a norma é semelhante.

O problema é que as leis estatutárias não falam sobre a possibilidade, ou não, de aproveitamento das contribuições vertidas no respectivo regime próprio para fins de contagem recíproca para o RGPS. Havendo a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria, as normas não dizem o que acontece com o tempo de contribuição até então vertido.

Essa é a grande questão! A lacuna da lei pode ser interpretada a favor ou em desfavor do segurado?

Com base nessa lacuna, a autora versada no recurso afetado ao TEMA 233 da TNU alegou que, apesar de ter perdido sua aposentadoria no serviço público, poderia sim levar sua CTC – Certidão de Tempo de Contribuição para o RGPS, pois as contribuições vertidas para o regime não foram afetadas pela penalidade recebida.

O seu pedido de uniformização de interpretação de lei federal baseou-se na divergência de entendimento entre a 4ª Turma Recursal do Rio de Janeiro e a Turma Recursal de Sergipe/PE:

  • 1ª linha de entendimento: de um lado, a 4ª TR do Rio de Janeiro entende que o tempo de serviço/contribuição não deve ser contado para qualquer efeito, quando se aplicar falta grave ao servidor que importe à cassação de aposentadoria, sob pena de fraude à lei e tratamento anti-isonômico entre os servidores aposentados e ativos;
  • 2ª linha de entendimento: de outro lado, a Turma Recursal de Sergipe entende que deve ser contabilizado o tempo de serviço trabalhado pelo servidor, sob pena de enriquecimento sem causa do Poder Público, que receberia as contribuições ao longo de todos esses anos, sem permitir contraprestação em favor do segurado.

O pedido de uniformização promovido pela autora foi afetado como representativo de controvérsia na TNU (TEMA 233), pelo relator do PEDILEF n. 0008405-41.2016.4.01.3802/MG, na forma do art. 8º, XIII, c/c art. 16, ambos, do RITNU (Regimento Interno da TNU). E, diante da relevância do tema e da multiplicidade de ações versando sobre a mesma matéria, entendeu-se relevante a aplicação do rito dos recursos representativos de controvérsia.

Pois bem. O tema controvertido submetido a julgamento foi:

“Saber se, uma vez cassada a aposentadoria estatutária, pode o respectivo tempo de contribuição ser aproveitado para a obtenção de aposentadoria em outro regime, no caso o RGPS”.

E o que a TNU entendeu no julgamento do tema 233? Para a TNU pode a autora, no caso, aproveitar seu tempo de contribuição e leva-lo para o regime geral?

SIM!

A TNU fixou a seguinte tese:

“O servidor público aposentado no RPPS e que sofrer pena de cassação de sua aposentadoria pode utilizar o respectivo período contributivo para requerer aposentadoria no RGPS, devidamente comprovado por meio de Certidão de Tempo de Contribuição fornecida pelo órgão público competente”.

Ou seja, a TNU, por unanimidade, entendeu que é irrelevante o fato do servidor público ter sofrido penalidade administrativa máxima de cassação de aposentadoria. Mesmo assim, no entendimento firmado, será possível que ele faça a “portabilidade”, ou seja, a contagem recíproca de tempo de contribuição para o INSS.

E o STJ já abordou essa questão em sua jurisprudência dominante?

SIM.

O STJ já julgou por sua 1ª Seção um caso idêntico, adotando o mesmo entendimento. Trata-se do MS n. 20470, julgado em 03/03/2016, cujo rito, contudo, não restou afeto ao regime de recursos repetitivos.

Portanto, o STJ possui jurisprudência, mas não se trata de jurisprudência qualificada, de observação obrigatória para os Tribunais e Juízes.

 

Vejamos:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. AUDITOR FISCAL DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA. ART. 117, IX C/C ART. 132, IV E XIII, DA LEI 8.112/1990. CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONTAGEM RECÍPROCA DO TEMPO DE SERVIÇO. INTELIGÊNCIA DO ART. 201, § 9°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SEGURANÇA DENEGADA.

  1. Pretende o impetrante, ex-Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, a concessão da segurança para anular o ato coator que cassou a sua aposentadoria por invalidez, em razão da prática de infração disciplinar tipificada no art. 132, inc. IV (“improbidade administrativa”) da Lei 8.112/1990, ao fundamento da inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria.

 

  1. É firme o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal e desse Superior Tribunal de Justiça no sentido da constitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria prevista no art. 127, IV e 134 da Lei 8.112/1990, inobstante o caráter contributivo de que se reveste o benefício previdenciário.

(…)

  1. Nos termos do art. 201, § 9°, da Constituição Federal, “para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei”.

 

  1. Segurança denegada.

(MS 20.470/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/02/2016, DJe 03/03/2016)

 

Note, aliás, que o STJ deixa claro que a pena de cassação de aposentadoria é constitucional, malgrado a natureza contributiva do benefício cassado. Apesar disso, o STJ deixa entrever no julgado acima que essa possibilidade de cassação não impedirá que haja a contagem recíproca prevista no art. 201, §9º, da Constituição Federal de 1988, que assim está previsto:

 

Art. 201. (…)

(…)

  • 9º Para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si, observada a compensação financeira, de acordo com os critérios estabelecidos em lei.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

 

Perceba que a questão precisa ser melhor dirimida pelos Tribunais Superiores, para que o entendimento fixado no TEMA 233 se confirme além da TNU.

A tese da possibilidade de aproveitamento é forte, por conta da previsão constitucional da contagem recíproca, feita sem ressalvas. Também se reverbera a tese do aproveitamento do tempo por conta da previsão de norma administrativa favorável ao segurado, a qual, conquanto seja referente à pena de demissão no serviço público, pode muito bem ser aplicada por analogia aos casos de cassação de aposentadoria (princípio pro homine e princípio da primazia da norma e da interpretação mais favorável ao segurado).

Refiro-me ao o art. 130, §3º, II, do Regulamento da Previdência Social (Decreto n. 3.048/99). Tal dispositivo deixa claro que quando da aplicação da pena de demissão, é possível a emissão de CTC pelo setor competente. Desse modo, não haveria razão para que o mesmo não fosse aplicado à cassação de aposentadoria.

 

Veja:

CAPÍTULO IV


DA CONTAGEM RECÍPROCA DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO

 

(…)

Art. 130.  O tempo de contribuição para regime próprio de previdência social ou para Regime Geral de Previdência Social deve ser provado com certidão fornecida:                    (Redação dada pelo Decreto nº 6.722, de 2008).

(…)

  • 3ºApós as providências de que tratam os §§ 1º e 2º, e observado, quando for o caso, o disposto no § 9º, os setores competentes deverão emitir certidão de tempo de contribuição, sem rasuras, constando, obrigatoriamente:                 (Redação dada pelo Decreto nº 3.668, de 2000)

(…)

II – nome do servidor, seu número de matrícula, RG, CPF, sexo, data de nascimento, filiação, número do PIS ou PASEP, e, quando for o caso, cargo efetivo, lotação, data de admissão e data de exoneração ou demissão;                    (Redação dada pelo Decreto nº 6.722, de 2008).

 

Pode-se argumentar, pois, que, se na pena de demissão isso é possível (aproveitamento do tempo de contribuição no RGPS), na pena de cassação de aposentadoria também seria, eis que não há diferença essencial entre tais penalidades, apenas diferenciando-se quanto ao momento em que as condutas que a ensejaram a penalidade máxima foram julgadas (antes ou após a concessão da aposentadoria).

O STF possui algum julgado sobre a mesma questão ou sobre questão correlata?

SIM.

O STF julgou a ADPF 415 em abril/2020, logo após o julgamento do TEMA 233 pela TNU, em 03/2020. A ADPF 415 decidiu, na esteira de maciça jurisprudência anterior do STF, no sentido de que a pena de cassação de aposentadoria é realmente constitucional, de modo que as normas previstas referentes a essa penalidade estão em conformidade com a ordem constitucional vigente, não contrariando preceito fundamental. Assinalou-se que são constitucionais, portanto, os artigos 127, IV, e 134 da Lei 8.112/1990.

Mas, ATENÇÃO! O Supremo Tribunal Federal não adentrou diretamente na questão da possibilidade de contagem recíproca de tempo de contribuição nas hipóteses de cassação de aposentadoria.

Contudo, na fundamentação, o Min. Relator da ação, Alexandre de Moraes, pontuou o caráter contributivo, mas solidário dos regimes próprios previdenciários, desde a EC 03/93, passando pela EC 20/98 e, por fim, EC 41/03. Diante desse prisma contributivo, o STF, no julgamento da ADPF 415, asseverou que não há de se concluir por uma completa equação sinalagmática na relação jurídica havida entre o contribuinte e a previdência. Quer se dizer com isso que não há uma assunção de obrigações comuns entre o segurado e o INSS de tal modo que isso seja levado ao absolutismo do sinalagma obrigacional, ou seja, ao extremo de que em qualquer caso a prestação contributiva se converterá em prestação previdenciária.

Nada obstante, o Min. Alexandre de Moraes, ao fundamentar seu voto, seguido por unanimidade, citou julgado anterior do Min. Barroso que, ao lado da inexistência daquele sinalagma perfeito, existiria também a previsão de que a natureza contributiva impede a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer contraprestação, efetiva ou potencial (RE 593.068-RG, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, DJe de 22/3/2019).

Desse modo, a questão do aproveitamento ou não do tempo de contribuição usado para a aposentadoria cassada, para fins de contagem recíproca, poderá ser, ainda, melhor dirimida pelo Supremo Tribunal Federal.

Resta saber se o STF, portanto, terá entendimento diverso da TNU e do STJ.

O julgamento do TEMA 233 ainda não transitou em julgado e, provavelmente, haverá a interposição de recurso extraordinário pelo INSS, na forma do art. 32, do RITNU.

 

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Vamos seguindo em frente!

Um grande abraço,

 

 

Frederico Martins.

Juiz Federal do TRF-1

Professor do Gran Cursos

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