Olá pessoal, tudo certo?
De fato, o ano de 2022 vem sendo extremamente profícuo na consolidação de temas importantíssimos na seara criminal na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
E, apesar de estarmos nos aproximando do final do ano judiciário, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça ainda encontrou tempo para, no último mês de novembro, trazer novas definições e, especificamente, concluir mais uma relevante tese na sistemática de repetitivos.
No julgamento do RESP 1.977.135/SC, assim o colegiado concluiu:
(1) O período de recolhimento obrigatório noturno e nos dias de folga (art. 319, VII do CPP), por comprometer o status libertatis do acusado, deve ser reconhecido como período a ser detraído da pena privativa de liberdade e da medida de segurança, em homenagem aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem.
(2) O monitoramento eletrônico associado, atribuição do Estado, não é condição indeclinável para a detração dos períodos de submissão a essas medidas cautelares, não se justificando distinção de tratamento ao investigado ao qual não é determinado e disponibilizado o aparelhamento.
(3) A soma das horas de recolhimento domiciliar a que o réu foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada[1].
Já há algum tempo o Superior Tribunal de Justiça tem refutado que o rol de possibilidades de detração penal (art. 42 do Código Penal) seria exaustivo, admitindo também em algumas medidas cautelares diversas da prisão. Entretanto, especificamente no que tange aos casos de recolhimento noturno e em feriados, uma corrente importante dentro da Corte sustentava que somente seria possível se devidamente acompanhada de monitoração eletrônica.
No final do ano de 2020, no julgamento do AgRg no HC 515.444/DF, a Ministra
Laurita Vaz fez constar em sua ementa mais um elemento para o reconhecimento do
direito, o monitoramento eletrônico, consignando a impossibilidade de detração do
tempo de submissão ao recolhimento domiciliar noturno, sem monitoração eletrônica, por falta de previsão legal e por não comprometer o direito de locomoção do réu. Dizia-se que não seria possível a detração, na pena privativa de liberdade, do tempo em que o Acusado foi submetido a medida cautelar diversa da prisão (recolhimento domiciliar noturno, sem monitoração eletrônica), em razão da ausência de previsão legal e por
não consistir a medida em efetivo comprometimento do direito de locomoção do Réu[2].
Entretanto, o Ministro Rogério Schietti Cruz passou a capitanear corrente em sentido oposto, o que ficou bastante evidenciado em seu voto, no julgamento do HC n. 455.097/PR. À ocasião, o Ministro trouxe à baila as seguintes ponderações e proposta de refutar a possibilidade da detração:
(1) Falta de previsão legal: “uma vez que o art. 42 do CP, ao prever apenas o cômputo de prisão provisória e não o de recolhimento noturno para fins de detração penal, não deixa o intérprete a possibilidade de abater medida cautelar pessoal diversa da prisão provisória, salvo se houver restrição, por período integral, à liberdade de ir e vir” (…) “não seria hipótese de utilizarmos analogia in bonam partem – cujo pressuposto
irrefutável é a igualdade de situações (ubi idem ratio ibi idem dipositio) – porquanto ausente a plena similitude entre a prisão cautelar e a medida alternativa de recolhimento domiciliar noturno;
(2) Impossibilidade lógica de atribuir o mesmo valor, para fins de detração penal, à medida cautelar diversa da prisão e à prisão preventiva: “o legislador, claramente, coloca o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga como menos gravoso que a prisão preventiva.” (…) “o recolhimento domiciliar noturno não se confunde nem mesmo com a prisão domiciliar.” (…) “O uso de idêntica detração para restrições a direitos fundamentais tão díspares seria uma injustiça a quem se recolheu em prisão domiciliar e, mais ainda, a quem cumpriu prisão preventiva; seria, sob outra angulação, um prêmio indevido a quem sofreu limitação muito menos severa à sua liberdade durante o processo” e;
(3) Impossibilidade de fixação do regime de pena do acusado durante o processo: “para ser possível o cabimento da detração, o recolhimento noturno e nos dias de folga teria que ser compatível com qualquer forma de cumprimento de reprimenda. Recolhimento domiciliar noturno, por uma fração de tempo ou mesmo em dias de folga, assemelha-se muito mais a eventual pena restritiva de direitos do que a
sanção privativa de liberdade”.
Entretanto, nesse mesmo julgamento, a 3ª Seção deliberou que “a detração é prevista no art. 42 do Código Penal, segundo o qual se computa, “na pena privativa de
liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos
estabelecimentos referido no artigo anterior“. Interpretar a legislação que regula a detração
de forma que favoreça o sentenciado harmoniza-se com o Princípio da Humanidade, que impõe ao Juiz da Execução Penal a especial percepção da pessoa presa
como sujeito de direitos. No clássico Direito e Razão, Ferrajoli esclareceu a dupla função preventiva do Direito Penal. De um lado, há a finalidade de prevenção geral dos delitos, decorrente das exigências de segurança e defesa social. De outro, o Direito Penal visa também a prevenir penas arbitrárias ou desmedidas. Essas duas funções são conexas e legitimam o Direito Penal como instrumento concreto para a tutela dos direitos fundamentais, ao definir concomitantemente dois limites que devem minimizar uma dupla violência: a prática de delitos é antijurídica, mas também o é a punição
excessiva. O óbice à detração do tempo de recolhimento noturno e aos finais de semana determinado com fundamento no art. 319 do Código de Processo Penal sujeita o Apenado a excesso de execução, em razão da limitação objetiva à liberdade concretizada pela referida medida diversa do cárcere.
A medida diversa da prisão que impede o Acautelado de sair de casa após o anoitecer e em dias não úteis assemelha-se ao cumprimento de pena em regime prisional semiaberto. Se nesta última hipótese não se diverge que a restrição da liberdade decorre
notadamente da circunstância de o Agente ser obrigado a recolher-se, igual premissa deve permitir a detração do tempo de aplicação daquela limitação cautelar. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, aplica-se a mesma regra jurídica”[3].
ATENÇÃO! Importa registrar que nesse caso acima indicado, a Corte sinalizara que não haveria necessidade de a medida cautelar diversa da prisão estar acompanhada de monitoração eletrônica, pois o apenado em questão esteve sob o pálio da restrição do art. 319, VII sem fiscalização eletrônica. E foi justamente esse caminho o trilhado na tese firmada em repetitivo.
Segundo a 3ª Seção, tem-se que o monitoramento eletrônico (ME) é medida de vigilância, que afeta os direitos fundamentais, destacadamente a intangibilidade corporal do acusado. É possível sua aplicação isolada ou cumulativamente com outra medida. Essa medida é pouco difundida no Brasil, em razão do alto custo ou, ainda, de dúvidas quanto a sua efetividade. Outro aspecto importante é o fato de que seu emprego prevalece em fases de execução da pena (80%), ou seja, não se destina primordialmente à substituição da prisão preventiva. Levando-se em conta a precária utilização do ME como medida cautelar e, considerando que o recolhimento noturno já priva a liberdade de quem a ele se submete, não se vislumbra a necessidade de dupla restrição para que se possa chegar ao grau de certeza do cumprimento efetivo do tempo de custódia cautelar, notadamente tendo em conta que o monitoramento eletrônico é atribuição do Estado. Nesse cenário, não se justifica o investigado que não dispõe do monitoramento receber tratamento não isonômico em relação àquele que cumpre a mesma medida restritiva de liberdade monitorado pelo equipamento[4].
A pacificação do tema no Superior Tribunal de Justiça vem a atender aos reclamos sempre presentes em sede doutrinária. Registre-se que Antônio Gomes Magalhães Filho sustenta que “para os casos em que o réu for submetido, por exemplo, à prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico durante a instrução, a lei não prevê desconto na pena final, o que parece injusto”[5]. Na mesma linha, Eugênio Pacelli indica o seguinte:
“E, sem dúvidas, as medidas acima indicadas representam significativa restrição à liberdade de quem a elas se submeta, justificando que o período que as tenha suportado o sentenciado no curso da persecução seja descontado da pena que lhe seja aplicada. Naturalmente, o tempo de compensação ou de abatimento da pena poderá ser objeto de inevitáveis
debates, no que toca especificamente ao recolhimento noturno, no qual somente se restrinja a liberdade parcialmente. Como quer que seja a conta final, o caso será de detração, ainda que em percentuais proporcionais”[6].
Diante do analisado, “tatue no braço” a tese fixada definitivamente pelo STJ, no TEMA 1155 (Repetitivo):
(1) O período de recolhimento obrigatório noturno e nos dias de folga (art. 319, VII do CPP), por comprometer o status libertatis do acusado, deve ser reconhecido como período a ser detraído da pena privativa de liberdade e da medida de segurança, em homenagem aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem.
(2) O monitoramento eletrônico associado, atribuição do Estado, não é condição indeclinável para a detração dos períodos de submissão a essas medidas cautelares, não se justificando distinção de tratamento ao investigado ao qual não é determinado e disponibilizado o aparelhamento.
(3) A soma das horas de recolhimento domiciliar a que o réu foi submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. Se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, essa fração de dia deverá ser desprezada.
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] REsp 1.977.135-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 23/11/2022, DJe 28/11/2022.
[2] AgRg no HC 515.444/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, DJe 18/12/2020
[3] HC 455.097/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 7/6/2021
[4] REsp 1.977.135-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 23/11/2022, DJe 28/11/2022.
[5] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas: comentários à lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 234/235.
[6] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Manual de direito penal. parte geral. 3. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 471.
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