A transposição de normas do processo comum ao processo do trabalho não se faz de maneira automática, devendo o intérprete perquirir acerca da presença de dois requisitos, quais sejam: a) omissão normativa e b) compatibilidade normativa (regras e princípios) (art. 15, do CPC c/c art. 769 da CLT)[1]
Nessa lógica, pode-se indagar acerca da aplicabilidade do disposto nos artigos 9º e 15 do CPC ao processo do trabalho, notadamente em face de sua faceta mais acentuada em termos de efetividade e celeridade processuais.
Fato é que a proibição de que o juiz possa decidir com base em causa de pedir ou fundamento de fato ou de direito a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes e a produção de prova, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício é norma que emana do próprio texto constitucional (art. 5º, inciso LV), ao qual, obviamente, deve o processo do trabalho guardar compatibilidade.
Não obstante, é preciso reconhecer que o contraditório, visto sob o processo sob sua perspectiva garantista, deve se acomodar ao processo visto sob seu viés instrumental, de modo que o direito material tutelado exerce parcela de influencia na harmonização desses valores. O que se quer dizer é que o contraditório possui graus de incidência de acordo com o direito material tutelado. Nesse sentido:
O contraditório deve ser observado em consonância com as peculiaridades do processo sobre o qual esteja sendo aplicado, alcançando diferente incidência no penal e no civil. O princípio, para o processo penal, significa contraditório efetivo, real, substancial. Tanto que se exige defesa técnica substancial do réu, ainda que revela (art. 261, CPP), para que se tenha por obedecido o mandamento constitucional. Para isso a norma é completada por aqueloutra do art. 497. n. V, do CPP, que manda seja dado defensor ao réu, quando o juiz o considerar indefeso. […] No processo civil o contraditório não tem essa amplitude. É suficiente que seja dada oportunidade aos litigantes para se fazerem ouvir no processo, por intermédio do contraditório recíproco, da paridade de tratamento e da liberdade de discussão da causa. (Nelson Nery Júnior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal)
Pois bem, o princípio garantista do contraditório substancial, enquanto garantia de influência e não surpresa, ganha diferentes coloridos a depender do direito material que visa instrumentalizar. No entanto, seja em qual ambiente for, o devido processo constitucional consagra o contraditório como elemento concretizador do princípio político da participação democrática do povo no processo.[2]
Nesse cenário, cabe ao intérprete a tarefa de encontrar o perfeito equilíbrio a ser estabelecido entre a atuação de ofício do juízo e o respeito ao contraditório, de modo a evitar que, surpreendendo as partes ao decidir a controvérsia sob perspectiva não debatida no processo, seja violada a garantia do devido processo legal.[3]
Nesse mister, é preciso registrar que o direito do contraditório prévio não é absoluto, podendo haver decisão surpresa, por exemplo, nas hipóteses de julgamento liminar de improcedência do pedido (art. 332, caput e § 1º, c/c parágrafo único, do art. 487 do CPC), de tutela provisória liminar de urgência ou da evidência (parágrafo único, do art. 9º) e de indeferimento liminar da petição inicial (CPC, art. 330).
O TST editou a Instrução Normativo nº 39 ao aplicar referido princípio, em sua plenitude, no julgamento do mérito da causa (art. 4º, § 1º, da IN) e, portanto, na esfera do direito material, de forma a impedir a adoção de fundamento jurídico não debatido previamente pelas partes. Segundo o TST, persiste a possibilidade de o órgão jurisdicional invocar o brocardo jura novit curia, mas não sem audiência prévia das partes;
Por outro lado, no plano estritamente processual, mitigou-se o rigor da norma (art. 4º, § 2º, da IN). E, assim o fez, em razão dos seguintes fatores:
b1) as especificidades do processo trabalhista (mormente a exigência fundamental de celeridade em virtude da natureza alimentar das pretensões deduzidas em juízo);
b2) a preservação pelo próprio CPC/2015 (art. 1046, § 2o) das “disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis”, dentre as quais sobressai a CLT;
b3) o próprio Código de Processo Civil não adota de forma absoluta a observância do princípio do contraditório prévio como vedação à decisão surpresa;
b4) a experiência do direito comparado europeu, berço da nova concepção de contraditório, que recomenda algum temperamento em sua aplicação; tome-se, a título de ilustração, a seguinte decisão do Tribunal das Relações de Portugal de 2004:“A decisão surpresa apenas emerge quando ela comporte uma solução jurídica que, perante os factos controvertidos, as partes não tinham obrigação de prever”.
No plano processual, portanto, o TST disciplinou que não se reputa “decisão surpresa” a que as partes tinham obrigação de prever, concernente às condições da ação, aos pressupostos de admissibilidade de recurso e aos pressupostos processuais.
No entanto, não se pode aceitar como fez o Tribunal Superior do Trabalho, o afastamento do conceito de decisão surpresa “a que, à luz do ordenamento jurídico nacional e dos princípios que informam o Direito Processual do Trabalho, as partes tinham obrigação de prever, concernente às condições da ação, aos pressupostos de admissibilidade de recurso e aos pressupostos processuais, salvo disposição legal expressa em contrário” (art. 4º, § 2º, da IN nº 39 do TST). Entendimento desse jaez viola o núcleo essencial do contraditório substancial.
Especificamente sobre o tema José Lebre de Freitas leciona que “a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou processual, de que o tribunal pode conhecer de ofício”.[4]
O contraditório constitui-se em uma limitação ao poder de o juiz decidir de ofício, seja em questões materiais, seja em temas afetos ao direito processual. Apenas em casos excepcionais, previstos na própria legislação infraconstitucional, é o que o princípio pode ser mitigado, levando-se em conta a natureza do direito material tutelado.
LEGISLAÇÃO DE REFERÊNCIA
NCPC. Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701.
NCPC. Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[1] O art. 15 do CPC não revogou o art. 769, da CLT, pois este dispositivo constitui-se em norma específica para solucionar os conflitos de interesses que são da competência constitucional da Justiça do Trabalho (LINDB, art. 2º, §§ 1º e 2º[1]). O próprio Código de Processo Civil estabelece, em seu art. 1.046, § 2º[1], que permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis – como na CLT –, aos quais se aplicará supletivamente este Código. Nesse prumo, segue dominante o entendimento pelo qual não basta que o processo do trabalho seja omisso em relação a determinado tema. A transposição de normas do processo civil somente será lícita se não for incompatível com o processo do trabalho (CLT, art. 679) – não apenas do ponto de vista da literalidade das disposições deste, mas de seus princípios essenciais. Portanto, apesar do art. 15 do CPC disciplinar que a integração do processo comum ao processo do trabalho se dará na hipótese de omissão remanesce a necessidade de examinar o requisito da compatibilidade, sob pena de desfalecimento do sistema processual trabalhista, criado para regular uma especial lide, qual seja, a relação de trabalho, de natureza totalmente distinta dos conflitos comuns.
[2] DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Elementos de teoria do processo constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2015. p. 134.
[3] MALLET, Estevão. Notas sobre o problema da chamada “decisão surpresa”. In: Revista da Faculdade de Dirieto da USP, v. 109, p. 389 – 414, jan./dez. 2014.
[4] FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 96.
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