A terceirização e o concurso público

Avatar


23 de março3 min. de leitura

Gostaria de saber quem criou essa lenda urbana de que o Projeto de Lei n. 4.302, de 1998, vai acabar com os concursos públicos.

Por enquanto, é apenas um projeto de lei, que foi submetido à sanção (ou veto) do Presidente da República. Mesmo que Michel Temer o sancione na íntegra, ainda sim, não há que se falar em reflexos nos concursos públicos pelas razões a seguir expostas.

Primeiramente, é a própria Constituição Federal que exige prévia aprovação em concurso público para investidura em cargos e empregos públicos, vejamos:

Art. 37, II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

            Deve-se interpretar a lei de acordo com a Constituição Federal, jamais o inverso, sob pena de se subverter o escalonamento normativo e de se colocar em risco a rigidez constitucional.

A Constituição Federal ocupa o ápice do ordenamento jurídico, possuindo supremacia formal e funcionando como fundamento de validade para toda produção normativa subsequente. Dessa forma, a novel lei (se sancionada, promulgada e publicada) deverá se adequar ao mandamento constitucional.

Ademais, é importante trazer para esse debate o Decreto n. 2.271, de 7 de julho de 1997, que dispõe sobre a contratação de serviços pela Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências. Em seu art. 1º, caput, é imposto que “no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade”. Por seu turno, o parágrafo segundo desse artigo primeiro é taxativo em afirmar que “não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal”.

Em regulamentação ao Decreto n. 2.271, de 1997, foi editada a Instrução Normativa n. 2, de 30 de abril de 2008, que disciplina a contratação de serviços, continuados ou não, por órgãos ou entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais – SISG. Em seu art. 9º, a norma expressamente proíbe a contratação de atividades que impliquem limitação do exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público, exercício do poder de polícia, ou manifestação da vontade do Estado pela emanação de atos administrativos, tais como: a) aplicação de multas ou outras sanções administrativas; b) a concessão de autorizações, licenças, certidões ou declarações; c) atos de inscrição, registro ou certificação; e d) atos de decisão ou homologação em processos administrativos.

 

Tal previsão vai ao encontro do que alude a doutrina pátria, vejamos:

Os atos jurídicos expressivos de Poder Público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas (caso, e.g., dos poderes reconhecidos aos capitães de navio), ser delegados a particulares, ou ser por eles praticados.

A restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros. (in: Curso de Direito Administrativo. 29ª edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2012, p. 855)

           O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 1.717, declarou a invalidade do caput e dos parágrafos 1º a 8º do artigo 58, da Lei n. 9.649, de 1998, consignando que “a fiscalização das profissões, por se tratar de uma atividade típica de Estado, que abrange o poder de polícia, de tributar e de punir, não pode ser delegada”.

Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que configura ato de improbidade a terceirização de atividades pertencentes ao “cargo”, afirmando que contratação de funcionários, sem a realização de concurso público, mediante a manutenção de vários contratos de fornecimento de mão de obra – via terceirização de serviços –, para trabalharem em instituição bancária estadual, com inobservância do art. 37, II, da Constituição Federal, se amolda ao ato de improbidade administrativa do art. 11, da Lei n. 8.429, de 1992 (REsp n. 772.241).

Ainda, há pronunciamento do Tribunal de Contas da União a esse respeito:

O normativo vigente (Constituição Federal e normas legais e infralegais), a farta jurisprudência deste Tribunal e do Tribunal Superior do Trabalho – TST (Enunciado/Súmula n. 331) e a doutrina só admitem a terceirização de pessoal na Administração Pública quando direcionada a atividade-meio, a exemplo dos serviços de vigilância, limpeza e manutenção, e ainda assim, desde que inexistente a pessoalidade, habitualidade e subordinação direta. (…)

É lícita a terceirização de serviços, que difere da locação de mão de obra, e ainda assim somente aqueles relacionados à atividade-meio, sem a presença de pessoalidade (qualquer um pode executar), habitualidade (trabalho não sazonal) e subordinação direta (coordenação do preposto da contratada).

Nesse sentido a Jurisprudência deste Tribunal vai além, asseverando que a contratação de prestação de serviços para a execução de atividades inerentes à atividade-fim da Administração ou às suas categorias funcionais caracteriza contratação indireta e terceirização indevida de atividades exclusivas dos servidores efetivos, com afronta à exigibilidade constitucional concurso público nas admissões (CF, art. 37, II), e não se justifica nem mesmo em razão da existência de déficit de pessoal (Acórdãos nos 2.084/07 – P; 1.193/2006 – P; 256/05 – P; 341/04 – P; 593/05 – 1ª C.; 975/05 – 2ª C).

              Por tudo isso, meus alunos e minhas alunas, esqueçam essa lenda urbana apocalíptica de que os concursos irão acabar e acelerem os seus estudos.

Força, foco e fé na missão.


Luciano Dutra – Advogado da União desde 2009. Autor de livros e articulista. Especialista em jurisprudência do STF. Aprovado em diversos concursos públicos. Comentarista jurídico de revistas, jornais, sites e rádios especializados em concursos públicos. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora e pós-graduado em Direito Público. Graduado e pós-graduado em Ciências Militares. Professor de Direito Constitucional do Gran Cursos Online.

 

 


 

Avatar


23 de março3 min. de leitura