No dia 28 de julho, a Coreia do Norte realizou teste de míssil balístico intercontinental (o segundo em questão de semanas), e o governo brasileiro deixou constância de sua preocupação. Em nota divulgada dois, três dias depois, o Itamaraty registra que “o governo brasileiro tomou conhecimento, com preocupação, de novo lançamento de míssil” por parte de Pyongyang e, pela mesma via, “conclama [a Coreia do Norte] a cumprir plenamente as resoluções pertinentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a engajar-se na retomada de negociações relativas à paz e à segurança na Península Coreana”.
Será talvez improvável que, no próximo exame de ingresso, o candidato ao Rio Branco se depare com questão específica sobre a Coreia do Norte. Ainda assim, o episódio e a reação brasileira lançam luz sobre alguns instintos diplomáticos do Brasil que, bem assimilados, ajudariam o candidato a enfrentar diversas questões relacionadas à paz e segurança internacionais.
Esse é o propósito específico deste artigo, e aqui partimos do pressuposto de que o candidato buscará por conta própria compreender os antecedentes mais distantes da questão coreana. Por ora, bastará registrar que, encerradas as operações bélicas na península coreana, em 1953, o que se estabeleceu a seguir foi apenas e tão somente um armistício. Noutras palavras, não houve um acordo de paz propriamente dito, mas um arranjo provisório de cessar-fogo, que, entre outras cláusulas, previu o estabelecimento de uma zona desmilitarizada a separar os dois campos, regulou a repatriação de prisioneiros de guerra e proibiu a introdução de novos armamentos no teatro de guerra, salvo em substituição a peças “destruídas, danificadas, exauridas ou completamente utilizadas”.
Esse último não é um detalhe irrelevante, na medida em que reforçou a justificativa usada pelas autoridades norte-coreanas para seu programa nuclear. Em 1956, o governo dos EUA revogou unilateralmente o artigo que consagrava esse compromisso, sob o argumento de que a Coreia do Norte já o vinha violando reiteradamente (o que não chega a ser inverossímil, mas nunca foi comprovado pelos americanos). Consequentemente, em 1958, as Forças Armadas americanas introduziram armas nucleares na Coreia do Sul, dando início ao que se convencionou chamar a “nuclearização da península coreana”. As armas nucleares americanas foram afinal retiradas em 1991, no governo de George H. W. Bush, mas a essa altura quatro décadas de pressão militar já tinham contribuído para criar a particular psique do regime de Pyongyang.
Segundo os especialistas no tema, o programa nuclear norte-coreano decorreu do fim da Guerra Fria e da sensação de abandono que acometeu o regime de Kim Il-sung (1948-1994) com o fim da ajuda soviética e com a aproximação entre os aliados de outrora e o inimigo de sempre. Em 1990, o então ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS, o georgiano Edvard Shevarnadze, teria ouvido de interlocutores norte-coreanos que Pyongyang optara por desenvolver armas nucleares como resposta à decisão soviética de reconhecer a Coreia do Sul. Nos cálculos do regime, a alternativa seria sofrer o mesmo destino da Alemanha Oriental, então em processo de absorção por parte do vizinho ocidental.
Uma vez mais, este não é o âmbito apropriado para uma exposição técnica sobre os desafios do desarmamento e não proliferação nucleares. O que convém ressaltar é que uma dinâmica muito particular se estabeleceu entre a Coreia do Norte e os EUA (agindo, então, como hegemon na nova ordem inaugurada com o fim da Guerra Fria), a partir do momento em que Pyongyang se recusou a admitir inspeções da Agência Internacional da Energia Atômica, em 1993: a cada gesto de desafio norte-coreano, seguiam-se ameaças e medidas de força por parte dos americanos, que, no melhor dos casos, tinham apenas o efeito de trazer a Coreia do Norte à mesa de negociações; uma vez lá instalada, a Coreia do Norte exigiria o levantamento de sanções ou a concessão de benefícios a troco do compromisso de congelar seus programas nucleares ou missilísticos; frustrado em sua tentativa, ou desejoso de obter condições ainda mais vantajosas, o regime norte-coreano faria novos gestos de ruptura, e o mesmo processo haveria de reiniciar-se.
(Nesse ponto, por uma preocupação de equanimidade, conviria ressaltar que os EUA jamais chegaram perto de considerar o único gesto que — ao menos na retórica norte-coreana — serviria para aplacar seus temores existenciais: a assinatura de um acordo de paz definitivo, pelo qual Washington abandonasse para sempre quaisquer veleidades de derrubar o regime.)
Não será o caso, aqui ou no exame, de incorrer em juízos de valor a respeito. O que convém registrar, para terminar esta exposição factual, é que, já desde o governo de Bill Clinton (1993-2001), os EUA adotaram, para lidar com o desafio norte-coreano, uma estratégia que se convencionou chamar de “carrots and sticks” — ou seja, de “cenouras e varas”, de incentivos e punições calculados para orientar a Coreia do Norte no caminho que se lhe pretendia impor: o do abandono de seu programa nuclear. E os EUA seguiram esse caminho pela via unilateral (reforçando as sanções que vinham adotando desde 1950, ou condicionando sua suspensão a passos concretos rumo ao desarmamento), pela multilateral (pela imposição de sanções, por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 2006, 2009, 2013 e 2016) e pela que chamaremos “plurilateral” (ou seja, buscando a concertação com um grupo limitado de potências capazes de influir sobre os cálculos de Pyongyang).
É importante levar em conta que, no acionar de Washington, essas vias eram perseguidas simultaneamente e deveriam reforçar-se umas às outras. Registre-se, no entanto, que, a partir de 2003, o principal fórum pelo qual se pretendeu encaminhar a questão foram as chamadas “negociações hexapartites”, conduzidas entre os EUA, a China, a Coreia do Sul, o Japão e a Rússia, de um lado, e a Coreia do Norte, de outro. Por causas que não serão destrinchadas aqui, nenhuma dessas vias impediu a Coreia do Norte de finalmente detonar um artefato nuclear (9 de outubro de 2006), nem de prosseguir no desenvolvimento de um programa de mísseis.
O que, sim, será proveitoso ao candidato é atentar-se aos princípios que informam a reação do Brasil a esses episódios e a outros relacionados à defesa da paz e segurança internacionais. Anunciemos esses princípios esquematicamente:
(1) O Brasil associou-se, em cada um dos casos, às manifestações do Conselho de Segurança que condenaram a Coreia do Norte pelos testes nucleares e sempre manifestou sua preocupação pelos testes missilísticos. Sobre esse ponto, a retórica brasileira é — como não poderia deixar de ser — explícita: o Brasil condena as violações da Coreia do Norte a seus compromissos no terreno da não proliferação e nunca deixou de instá-la a reintegrar-se ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, bem como a assinar e ratificar ao Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares.
(2) Até mesmo por mandamento constitucional (art. 4º, VI e VII), o Brasil sempre instará, nesses casos, as partes envolvidas a estabelecerem diálogo com vistas à solução pacífica da controvérsia. Esse elemento estará presente, com destaque, em todos os pronunciamentos oficiais do Itamaraty a respeito da questão coreana, e nesse sentido o Brasil apoiará quaisquer iniciativas, como as “negociações hexapartites”, capazes de promover esse objetivo.
(3) O Brasil internalizou e cumpre escrupulosamente todas as sanções adotadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (mais recentemente, pelo Decreto n. 9.033, de 19 de abril de 2017, que internalizou medidas coercitivas contra os setores de mineração civil, comércio de aeronaves, cooperação técnica e até mesmo no que concerne ao próprio desenvolvimento dos laços diplomáticos: a Resolução n. 2321 determina a redução de pessoal diplomático nas representações norte-coreanas no exterior e das contas bancadas a elas associadas).
(4) Isso não obstante, seguidos governos brasileiros, ao longo das décadas, demonstraram desconforto com a noção de sanções unilaterais, ou seja, aquelas impostas por um único país (no caso, os EUA) ou por uma coalizão de países. E o Brasil age assim por preocupações sistêmicas, por entender que o único organismo legitimado a estabelecer ações dessa natureza, sobretudo quando capazes de comprometer a economia de terceiros países, é o próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas. Será raro — excetuado o caso do embargo americano a Cuba — que o Brasil se pronuncie explicitamente a respeito, mas, no mais das vezes, o país deixará constância de sua posição simplesmente pelo fato de desconsiderar apelos no sentido de que venha a somar-se a qualquer iniciativa nesse sentido.
(5) Como já se assinalou, o Brasil favorecerá quaisquer iniciativas, como as “negociações hexapartites”, capazes de favorecer soluções pacíficas de controvérsias. Mas aqui também conviria registrar outra preocupação sistêmica do Brasil: tais iniciativas podem, naturalmente, ocorrer à margem do CSNU, mas não devem jamais comprometer o mandato desse órgão como o garante e o promotor da paz e segurança internacionais. No mínimo, o que o Brasil espera nesses casos é que os envolvidos se reportem regularmente ao CSNU, mantendo-o a par do desenvolvimento das tratativas. (Entre parênteses, o candidato interessado encontrará formulações explícitas de autoridades brasileiras a esse respeito sobre as ações do chamado “Quarteto” — EUA, União Europeia, Rússia e um representante do Secretário-Geral da ONU — a respeito do processo de paz entre israelenses e palestinos, uma das questões mais prementes da paz e segurança internacionais e, no entanto, insolitamente ausente da agenda do CSNU.)
Esses são princípios genéricos, como se anunciou, capazes de orientar o candidato a pronunciar-se sobre grande parte da agenda da paz e segurança internacionais. Há, ainda, um último elemento relacionado especificamente à Coreia do Norte que convém levar em conta: o Brasil mantém relações diplomáticas com o país desde 2001 e, desde 2009, é um dos poucos países a manter embaixada residente em Pyongyang. Mais: nos limites estabelecidos pelas resoluções do CSNU, o Brasil chegou a manter cooperação com a Coreia do Norte no terreno humanitário, sobretudo por meio da remessa de alimentos (em especial feijões).
Nada disso há de garantir ao Brasil um papel central em futuras tratativas tendentes a encaminhar as questões da paz e segurança na península coreana. Mas, se a isso se soma o fato de o Brasil manter, ao mesmo tempo, relações das mais profícuas com a Coreia do Sul, é preciso não perder de vista que o Brasil tem, sim, credenciais diplomáticas não desprezíveis para contribuir positivamente nesse sentido, caso instado a fazê-lo pelas partes interessadas.
Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.
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