Na noite de 11 de dezembro de 2019, o Plenário do Senado aprovou o “pacote anticrime”, trazido pelo Projeto de Lei n. 6.341/2019, com substancias alterações no Direito Penal e Processual Penal brasileiro, com o objetivo de alcançar maior rigor no combate à criminalidade, e que agora aguarda a sanção presidencial.
Com muita honestidade, a nova realidade que se quer impor, parte de um pressuposto equivocado de que, na atual conformidade, juízes – e também os membros do Ministério Público, defensores que são da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme art. 127 da Constituição Federal – não possuem na essência de sua atuação, no seu “DNA”, o dever de garantir direitos individuais daqueles submetidos à persecução penal. Nesse contexto, entendeu-se necessário a criação do juiz das garantias, atuante apenas na fase de investigação, fracionando-se, ainda mais, a persecução criminal.
Pior que prever um juiz de garantias, pressupondo que os demais não o sejam, é limitar essa realidade a determinados jurisdicionados, a saber, apenas aqueles jurisdicionados da Justiça Comum, já que a nova realidade vem apenas por alteração do Código de Processo Penal comum, não alcançando o Código de Processo Penal Militar. Seria o jurisdicionado das Justiças Militares um cidadão de somenos importância, portanto, sem a plenitude de garantias conferida ao jurisdicionado da Justiça Comum?
Assim, não apenas haverá juízes mais juízes do que outros – a depender, ainda, de como isso será implantado –, mas, também, cidadãos (jurisdicionados) mais cidadãos do que outros.
Pois bem, feito o desabafo, resta avaliar o que expressamente será alterado no Direito Castrense, o que se resume à inserção do art. 16-A no Código de Processo Penal Militar, especificamente no ponto em que o Código trata do inquérito policial militar. Disposição semelhante também foi acrescida no Código de Processo Penal comum, no art. 14-A.
Vamos à análise, ainda inaugural e sujeita a críticas e posterior revisão, dessa pretensa novidade no Direito Processual Penal Militar.
De partida, dispõe o caput do art. 16-A que nos “casos em que servidores das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares figurarem como investigados em inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas nos arts. 42 a 47 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), o indiciado poderá constituir defensor”.
Entendamos, primeiro, os elementos do artigo.
A princípio, sua amplitude se limitaria aos militares dos Estados e do Distrito Federal, não alcançando os integrantes das Forças Armadas. Entretanto, o § 6º do art. 16-A dispõe que as “disposições constantes deste artigo aplicam-se aos servidores militares vinculados às instituições dispostas no art. 142 da Constituição Federal, desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem”.
Assim, o art. 16-A é aplicado aos policiais militares, aos bombeiros militares e aos militares federais, mas estes apenas no desempenho de missões de Garantia da Lei e da Ordem.
Garantia da Lei e da Ordem está torneada pela Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999, e no Decreto n. 3.897, de 24 de agosto de 2001, podendo ser compreendida como missões desencadeadas, exclusivamente, por ordem da Presidência da República, que ocorrem nos casos em que há o “esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem”[1]. Nestes casos, as Forças Armadas “agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições”[2] e, para tanto, os militares federais envolvidos possuem, provisoriamente “a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade”[3].
De se questionar se militares federais em outra atuação que não seja em Garantia da Lei e da Ordem não mereceriam a mesma distinção, como no caso de militares que cumpram o disposto no art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica e destruam aeronave hostil, ou, ainda, militares federais que estejam no curso de intervenção federal em Unidade Federativa. Entretanto, sigamos o que dispõe expressamente a norma, nesta análise.
Esses militares estaduais, do Distrito Federal e das Forças Armadas, para que se lance mão do art. 16-A, devem ser investigados em inquéritos policiais militares ou outros procedimentos extrajudiciais, a exemplo do Procedimento Investigatório Criminal do Ministério Público, regulado, por exemplo, no Ministério Público Militar pela Resolução do Conselho Superior do Ministério Público Militar n. 101, de 26 de setembro de 2018.
Note-se, basta que sejam investigados, ou seja, que a autoria do fato seja indicada a eles, não se exigindo, no caso do inquérito policial militar, que haja o indiciamento, mesmo porque a ideia do artigo é garantir, como se verá, um direito desde a instauração do procedimento, momento em que não haverá ainda o ato de indiciamento.
Em adição, esses procedimentos devem apurar fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas nos arts. 42 a 47 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar).
Uso da força letal, em nossa compreensão, restringe-se aos casos de homicídio, afastando-se os casos, por exemplo, de lesão corporal e a expressão “de forma tentada ou consumada” delimita ainda mais a aplicação do dispositivo para o homicídio doloso, ou seja, com a intenção evidente de produção do resultado morte ou com a aceitação do risco de produção desse resultado.
Não há aqui que se discutir se há ou não dolo em fatos praticados com amparo de excludente de ilicitude, o que ficará, obviamente, a cargo dos atores da persecução criminal em momento posterior. Neste ponto há apenas a preocupação com a existência, em tese, de fato típico de homicídio doloso, em teoria, o que fica muito claro com o trecho legal “incluindo as situações dispostas nos arts. 42 a 47 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar)”, que pressupõe enquadramento de casos em que esteja patente ou não a excludente de ilicitude.
Pois bem, preenchidos todos esses requisitos, o art. 16-A garante um direito ao investigado, qual seja, o de constituir um defensor (advogado).
Tem-se uma faculdade de ele constituir um advogado para acompanhar o feito investigativo, não o processo, que terá regras próprias, mas apenas a inquisa que busca apurar o fato na fase pré-processual.
Não há, diga-se de início, nenhuma inovação na disposição, exceto por buscar uma maior especificidade para os casos de policiais militares, bombeiros militares e militares federais que, usando de força letal no exercício da profissão, figurem em procedimento investigatório, como o inquérito policial militar.
A constatação de não inovação se inaugura com a previsão do art. 5º, LV, da Constituição Federal, que dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, consagrando-se a ampla defesa e o contraditório como princípios também do processo penal militar.
A ampla defesa consiste no “asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor” (MORAES, 2008, p. 106).
Em outros termos, a ampla defesa refere-se às possibilidades amplas de produção de provas no processo, limitadas apenas pelo desenho da ilicitude traçado pelo Direito. Contraditório, por sua vez, diz respeito à oportunidade paritária de manifestação acerca de determinada prova produzida, caracterizado pelo binômio conhecimento e reação, ou seja, conhecer o que foi produzido pela parte oposta e reagir ao que foi produzido (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2007, p. 63.).
Em relação ao contraditório, óbvio, não há sua observância no inquérito policial militar ou em procedimento investigatório extrajudicial, mas o mesmo não se pode dizer ocorrer com a ampla defesa.
Já defendemos, há muito, que, em algumas circunstâncias na fase de polícia judiciária (estendendo a qualquer procedimento investigativo de crime militar), há elementos em que a amplitude de defesa deve ser acolhida, por exemplo, na aceitação no curso de uma investigação de prova sugerida ou produzida pela indiciado ou por seu defensor, com a devida juntada aos autos. Não é adequado, nessa situação, tolher a possibilidade defensiva, devendo o responsável pelas apurações, em regra, aceitar a prova, incluindo-a na inquisa, ainda que, posteriormente, o valor probatório dela seja diminuto em face de outras provas.
Assim, o direito de ter um defensor a acompanhar um procedimento apuratório (extrajudicial) decorre de comando constitucional, frisando-se que esse defensor terá o direito de peticionar nos autos de inquérito, até mesmo em homenagem a outro comando da Constituição Federal, a alínea a do inciso XXXIV do art. 5º, segundo o qual são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Aliás, não por acaso, o direito de petição foi enumerado expressamente na mensagem de veto da Presidente da República para a alínea b do inciso XXI do art. 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, trazida pela Lei n. 13.245/2016[4], consistindo, portanto, em fórmula há muito aplicada na fase de investigação pré-processual.
Note-se que essa compreensão – e disso também decorre o caráter não inovador do “Pacote Anticrime” neste ponto – ganha muito mais força da análise da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994 (“Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil”), mormente com a redação que lhe deu a Lei n. 13.245, de 12 de janeiro de 2016.
O art. 7º do referido Estatuto consagra os direitos dos advogados e, entre eles, no inciso XIV, examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.
Consagra-se, assim, pela Constituição Federal, um direito de o investigado (indiciado ou não) acompanhar e peticionar em determinada inquisa, podendo fazê-lo por defensor que, por previsão legal (do Estatuto da Advocacia), terá acesso ao caderno apuratório. Há, inclusive, pela alínea a do inciso XXI do art. 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil a possibilidade de o Advogado, na assistência de seus clientes investigados durante a apuração de infrações – sob pena de nulidade absoluta de interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados – apresentar razões e quesitos.
Encerre-se com a constatação de, em não sendo garantido esse direito de acesso à investigação do interessado por seu advogado (defensor) – com exceção apenas da negativa de acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível – haverá, ao menos em tese, crime de abuso de autoridade trazido pelo art. 32 da Lei n. 13.869/2019.
Em conclusão, o art. 16-A do CPPM, em seu caput, não é inovador, pois o que ele pretende já estava consagrado há muito em nosso Direito, e não apenas a militares que sejam investigados por uso de força letal no desempenho do serviço, mas a todos os investigados, inclusive civis, em quaisquer crimes.
Mas a realidade até aqui vista diz respeito a uma faculdade, a um direito de constituir advogado. A verdadeira inovação está nos parágrafos do art. 16-A, que têm a pretensão de consagrar uma regra, uma opção do Estado em assistir os militares que pratiquem o delito de homicídio na atuação funcional, ainda que não tenham constituído defensor, uma verdadeira reprodução do que ocorre no processo penal, agora na fase que o antecede.
O § 1º do novo art. 16-A do CPPM dispõe que para os casos previstos no caput do artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação.
Em primeiro plano, não compreendemos o ato como citação, e sim como intimação ou notificação.
Como se sabe, a citação é o chamamento do réu ao processo penal militar, com o fito de que ele possa versar sua defesa, em plena consonância com o princípio da ampla defesa e, agora sim, também do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da CF). Já há a primeira incongruência, pois o inquérito policial militar, embora possa ser inebriado pela ampla defesa, não é contraditório, a exigir que a cada passo do órgão oficial, no caso a polícia judiciária militar, haja o “contrapasso” da defesa, sob pena de nulidade.
Ademais, nos termos do art. 277 do CPPM, a citação é sempre executada por oficial de justiça, que, de acordo com a situação específica, a fará por uma das formas previstas, ou seja, citação pressupõe instauração do processo com a atuação da estrutura do Poder Judiciário (oficial de justiça).
Mais adequado, repita-se, é compreender que deverá haver intimação ou notificação.
Rigorosamente, intimação trata-se de meio pelo qual se dá ciência de um ato já praticado no processo penal militar, enquanto notificação consiste na comunicação da prática futura de um ato ou, então, em levar ao conhecimento do interessado que, se praticar determinado ato, ou não praticá-lo, sofrerá determinada consequência. Em suma, intimação refere-se a ato já praticado; notificação refere-se a ato a ser praticado.
Assim, seria mais correto que o § 1º do art. 16-A falasse em intimação.
Há, no entanto, posição que não enxerga a diferença entre intimação e notificação, considerando as expressões como sinônimas. Nessa linha, Guilherme Nucci, ao tratar da intimação:
“É o ato processual pelo qual se dá ciência à parte da prática de algum outro ato processual já realizado ou a realizar-se, importando na obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa. Não vemos diferença alguma entre os termos intimação e notificação, por vezes usado na lei processual penal. Aliás, se fôssemos adotar uma posição que os distinguisse, terminaríamos contrapondo normas do próprio Código de Processo Penal, que não respeitou um padrão único. […]” (NUCCI, 2009, p. 653).
Também o Código de Processo Penal Militar não seguiu um rígido padrão na distinção das duas espécies. Exemplificativamente, nos arts. 66, 347 e 421 do CPPM, a notificação é empregada conforme a definição acima, ou seja, para ato futuro, mas, no § 3º do art. 133 e na alínea d do art. 399, a palavra intimação também está utilizada como forma de comunicação de ato futuro, ou seja, no sentido de notificação, segundo a distinção apresentada. Já nos arts. 444 e 445, a palavra intimação surge conforme o significado correto, ou seja, comunicação de ato pretérito. Melhor, então, como o faz Nucci, ter os termos por sinônimos.
Mas, enfim, o que não pode ocorrer é compreender o disposto no § 1º do art. 16-A como citação.
Vencida a questão formal da nomenclatura, vamos à essência do parágrafo.
Tem-se, então, que há uma obrigação de a autoridade de polícia judiciária militar que instaura o inquérito policial militar – ou autoridade que instaure procedimento investigatório – intimar o indiciado dessa instauração, para que possa constituir defensor no prazo de até 48 horas a contar do recebimento da intimação.
Obviamente, o comando deve ser observado quando houver identificação do autor do fato, lembrando-se que em alguns casos o procedimento chega à autoria muito após a sua instauração.
Mas havendo uma pessoa (ou um grupo) identificada da pretensa prática do delito, ainda que sob uma frágil suspeita e mesmo que não indiciada, a intimação deve ocorrer de maneira que se possibilite o acompanhamento do inquérito desde o início por defensor constituído.
Como o § 1º se refere aos casos do caput do art. 16-A, na intenção da lei, a regra se aplica apenas aos casos de militares do Estado, do Distrito Federal e das Forças Armadas em Garantia da Lei e da Ordem, por força do § 6º, que forem investigados em inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, por fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional.
Eis uma nova impropriedade, na nossa compreensão.
Como acima indicado, o direito a ter o acompanhamento do inquérito por defensor, por imposição constitucional, assiste a toda e qualquer pessoa que esteja no foco da persecução criminal e não apenas nos casos que se enquadrem no caput do art. 16-A. Nesse sentido, o dever de intimar o suspeito, ainda que não indiciado está, agora, presente em todos os casos em que houver a instauração de inquérito policial militar, desde que com autoria pretensamente indicada.
Não há pressuposto lógico para se garantir a possibilidade de acompanhamento de inquérito policial militar, por defensor, desde o início, a alguns investigados e negar essa possibilidade a outros. Fere-se a isonomia sem que haja esse pressuposto que justifique o discrímen.
Mas continuemos na análise dos parágrafos.
O § 2º do art. 16-A impõe que, esgotado o prazo disposto no § 1º (48 horas a contar da “citação”) com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar – aqui, sim, utilizou-se a adequada designação – a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que esta, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.
O discrímen aqui, ao nosso sentir, não afronta a isonomia, posto se tratar, como se disse, de uma opção do Estado, grafado na lei processual penal militar, em garantir a assistência de defesa técnica ao militar do Estado desde a instauração do feito. Há aqui, repita-se, uma escolha de Estado em assistir juridicamente os que possam ter praticado fato típico no exercício profissional, desde que se refira a uso letal de força.
Há alguns problemas para a implementação desta regra.
A instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência do fato será, muito possivelmente, a mesma instituição da autoridade responsável pela investigação, já que se trata, quase sempre, de inquérito policial militar. Excepcionalmente, haverá procedimento extrajudicial que investigue um caso enquadrado no caput do art. 16-A, como na já mencionada situação do Procedimento Investigatório Criminal (PIC) pelo Ministério Público, em que a autoridade responsável será o promotor de justiça, por exemplo.
No primeiro caso – autoridade responsável pela investigação pertencente à mesma instituição do suspeito – a intimação deverá ser dirigida a quem?
Possivelmente, ao comandante da unidade do pretenso autor do fato, que poderá ser também a autoridade instauradora. Nesta situação, óbvio, não caberá a intimação de si próprio, o que leva à necessidade de as instituições militares inovarem sua estrutura para controlar a nova realidade. Exemplificativamente, uma Polícia Militar pode ter sua Diretoria de Assuntos Jurídicos que poderá, obviamente, ser o órgão gestor dessa situação, o que também, frise-se, pode ser gerido pela Corregedoria da instituição. Assim, transcorridas as 48 horas da intimação do autor para que possa constituir defensor, em não havendo resposta ou em sendo negativa a resposta do investigado, embora a lei não mencione esta hipótese, a autoridade de polícia judiciária militar, geralmente o Comandante da Unidade do investigado, deverá intimar (comunicar) do Diretor de Assuntos Jurídicos (o Corregedor, ou quem tenha a gestão da questão por norma interna da instituição) para que seja feita a indicação de defensor.
No segundo caso – autoridade responsável pela investigação não pertencente à instituição do suspeito – deverá haver a intimação após as 48 horas sem nomeação de defensor (ou diante da negativa do indiciado). Neste caso, havendo uma questão interinstitucional, adequado que a intimação da autoridade seja endereçada ao Comandante da Instituição, por exemplo, o Comandante-Geral da Polícia Militar.
Alerte-se que, na moldura do caput, apenas militares terão essa dinâmica, o que significa dizer que a instituição a que ele pertencia na época do fato será uma instituição militar. As instituições militares, por sua vez, em regra não possuem corpo de defensores que possam atuar em defesa do suspeito de prática delitiva, sob pena de desvio de finalidade, não havendo possibilidade de indicar defensor para a representação do investigado.
Mas a solução é trazida pelo § 3º, que dispõe que, havendo necessidade de indicação de defensor nos termos do § 2º, a defesa caberá preferencialmente à Defensoria Pública e, nos locais em que ela não estiver instalada, a União ou a Unidade da Federação correspondente à respectiva competência territorial do procedimento instaurado deverá disponibilizar profissional para acompanhamento e realização de todos os atos relacionados à defesa administrativa do investigado.
Assim, recebida a intimação da autoridade responsável pela investigação, a instituição a que pertencia o autor do fato indicará, onde houver essa estrutura, a Defensoria Pública para atuar e, onde não houver, a indicação de outro defensor, da Administração Pública ou não, que possa fazer o acompanhamento do procedimento investigatório.
Aqui, abrem-se algumas possibilidades.
As instituições militares, agora, possuem argumento legal para compor, por lei, obviamente, corpo jurídico de defensores militares, realidade inexistente no Brasil.
Possível, ademais, que os quadros jurídicos já existentes nas instituições militares, conheçam, também por alteração estatutária da carreira, a possibilidade de ampliação de sua atuação, para alcançar essa possibilidade. Assim, pode ocorrer, por exemplo, com o Quadro Complementar do Exército na formação em Direito que, além do assessoramento da Administração Militar pode ter a ampliação para a atuação nestes casos.
Em outra possibilidade, será possível a celebração de convênios, onerosos ou não, que permitam, por exemplo, a atuação de advogados privados, bastando que, em caso de onerosidade, haja a alteração orçamentária com arrimo na nova realidade normativa. A possibilidade de atuação de defensor não integrante da Administração Pública, aliás, decorre da disposição do § 4º que esclarece que “a indicação do profissional a que se refere o § 3º deverá ser precedida de manifestação de que não existe defensor público lotado na área territorial onde tramita o inquérito e com atribuição para nele atuar, hipótese em que poderá ser indicado profissional que não integre os quadros próprios da Administração” (g.n.).
Conclui-se, portanto, que todo o procedimento instaurado nesses termos – investigação de fato praticado por militar do Estado no exercício profissional que implique em uso letal da força – deverá ter a assistência de um defensor, seja ele constituído, ou público, integrante, preferencialmente, da Defensoria Pública, ou quem lhe faça as vezes, por exemplo, pela atuação de outra instituição como a própria Força, ou mesmo em razão de convênio celebrado com a Ordem dos Advogados do Brasil.
Nesse contexto, identificamos uma questão interessante que diz respeito à atuação da Defensoria Pública, já que a atuação em foco foge à regra regularmente assentada nas leis orgânicas dessas instituições.
Exemplificativamente, no caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o art. 2º da Lei Complementar n. 988, de 9 de janeiro de 2006, dispõe que a “Defensoria Pública do Estado é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e tem por finalidade a tutela jurídica integral e gratuita, individual e coletiva, judicial e extrajudicial, dos necessitados, assim considerados na forma da lei” (g.n.).
Note-se, a atuação está limitada aos necessitados, conceito não trazido pela mencionada Lei Complementar, mas que conhece regulamentação por norma administrativa interna. Particularmente, no âmbito da Defensoria Pública de São Paulo, regula a questão a Deliberação CSDP n. 89, de 08 de agosto de 2008, que em seu art. 4º dispõe que o “exercício da defesa criminal não depende de considerações prévias sobre a situação econômico-financeira do interessado”, mas seu parágrafo único consagra que o “exercício da defesa criminal de quem não é hipossuficiente não implica a gratuidade constitucionalmente deferida apenas aos necessitados, devendo ser promovida a oportuna cobrança de honorários advocatícios, nos termos do artigo 3º, inciso II da Lei Estadual nº 12.793 de 04 de janeiro de 2008”.
Como se viu, o texto do art. 16-A do CPPM não impõe condições para a atuação da Defensoria Pública no que concerne à constatação de que o autor do fato seja necessitado, de maneira que a atuação será sem a aferição da hipossuficiência nesta questão. Entretanto, seguindo a linha do disposto no exemplo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, poderia haver cobrança de honorários advocatícios a posteriori.
Mas o § 5º do art. 16-A torna a situação um pouco mais complicada.
Por ele, na hipótese de não atuação da Defensoria Pública, os custos com o patrocínio dos interesses do investigado nos procedimentos de que trata o art. 16 correrão por conta do orçamento próprio da instituição a que este esteja vinculado à época da ocorrência dos fatos investigados.
Dessa forma, a atuação da Defensoria Pública será efetivamente gratuita, ainda que o investigado não seja necessitado, nos termos definidos pela instituição, sem a possibilidade de cobrança de honorários advocatícios, devendo as Defensorias Públicas buscar a adaptação de suas regras de atuação, ainda que considere o militar na situação do art. 16-A como objetivamente necessitado, já que há a imposição de atuação institucional.
Ademais, o § 5º traz uma outra regra importante.
As instituições militares, que não possuem serviço de assistência jurídica de seus integrantes e, portanto, não contam com orçamento próprio para tanto, deverão mudar sua matriz orçamentária, incluindo previsão para o custeio em caso de impossibilidade de atuação da Defensoria Pública.
Em conclusão, a inovação trazida pelo chamado “Pacote Anticrime” ao Código de Processo Penal Militar teve a boa intenção de prestar o apoio àqueles que, no cumprimento do mister constitucional de preservação da ordem pública ou de Garantia da Lei e da Ordem cometam crimes pelo uso letal da força. Mas essa boa intenção, a reboque, traz implicações e problemas que devem ser assimilados e solucionados, isso para além das críticas ideológicas que, certamente, surgirão no sentido de transformar este apoio, levianamente, em uma “licença para matar”, como sói acontecer nos recentes debates polarizados no Brasil.
REFERÊNCIAS:
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.
GRINOVER, Ada Pellegrini, CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[1] Conforme definição do Ministério da Defesa constante do sítio https://www.defesa.gov.br/exercicios-e-operacoes/garantia-da-lei-e-da-ordem. Acesso em 14 Dez. 2019.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] “Da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que a requisição a que faz referência seria mandatória, resultando em embaraços no âmbito de investigações e consequentes prejuízos à administração da justiça. Interpretação semelhante já foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em sede de Ação Direita de Inconstitucionalidade de dispositivos da própria Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 1127/DF). Além disso, resta, de qualquer forma, assegurado o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos da alínea ‘a’, do inciso XXXIV, do art. 5º, da Constituição” (g.n.).
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