Comecemos com uma bela música da antiga, mas ainda em atividade, banda inglesa The Mission. Na música Butterfly on a Wheel, nos dois primeiros versos da quinta estrofe, foi assimilado um dito popular:
Wise man say all is fair in love and war
And there’s no right or wrong in the design of love
Estaria o sábio correto? Tudo é válido no amor e na guerra?
Não vou falar de amor, obviamente, mas apenas da compreensão da expressão na guerra.
Embora o Direito e a ética não desejem, sim, no campo de batalha muitas coisas acontecem à margem do que se postula e se considera ético, humano, legal etc. Por essa visão, o sábio estaria coberto de razão.
Mas não é esta a tonalidade que devemos empregar no atual estágio civilizatório da Humanidade, especialmente diante – ou após: tomara que este texto seja lido também por alguém após a pandemia que vivemos na atualidade – a acentuação de valores outrora esquecidos, como solidariedade, empatia, caridade, entre outros, retomados durante o combate à proliferação mundial do COVID 19.
Para quem faz do Direito sua razão principal de raciocínio no cotidiano, o sábio da música está errado e, portanto, cai o mito: ele não é mais o sábio, porque nem tudo é válido na guerra.
Os prolegômenos até aqui trazidos poderiam servir, muito bem, à exaltação do Direito Internacional dos Conflitos Armados (ou Direito Internacional Humanitário), o jus in bello, ou seja, a reação, o torneamento, da condução da guerra, com limites convencionados para evitar atrocidades já testemunhadas no passado, mas não é este o enfoque que será dado. Aqui, o sábio já estaria errado, uma vez que nem tudo é justo e válido em um guerra.
Entretanto, ficarei adstrito ao Direito Penal Militar e sua conformação à luz da Constituição Federal.
A pena de morte no Código Penal Militar é prevista como pena principal e se caracteriza, obviamente, pela execução do autor do fato em decorrência de sentença condenatória passada em julgado. A forma de execução é o fuzilamento, conforme dispõe o art. 56 do CPM, e só pode ser efetivada sete dias após a comunicação do trânsito em julgado ao Presidente da República que, nesse período de sete dias, pode indultar o condenado ou comutar a pena de morte para a pena de reclusão de 30 anos, por exemplo.
Na República Brasileira há caso que remonta a II Guerra Mundial, no Direito Penal Militar, muito bem resumido por Alves-Marreiros, Rocha e Freitas (2015, p. 852):
No dia 09.01.1945, dois soldados brasileiros, armados com metralhadoras, estupraram uma adolescente de quinze anos no interior de sua residência e mataram um de seus familiares quando este tentou impedir a execução do crime. No dia 07.02.1945, os dois foram condenados à pena de morte pela Justiça Militar. Acórdão prolatado no dia 07.03.1945 pelo CSJM, no Rio de Janeiro, confirmou a condenação, tornando-a definitiva. Getúlio Vargas, no entanto, comutou a pena de morte que lhes foi imposta em pena privativa de liberdade consistente em 30 anos de reclusão. Posteriormente, ambos foram beneficiados por uma nova comutação que redundou na redução de suas penas para 06 anos de reclusão. Tal fato constitui o exemplo historicamente mais recente de comutação pelo Presidente da República da pena de morte aplicada por crime militar cometido em tempo de guerra.
Apesar desse rito, o CPM prevê uma exceção, em que a execução ocorreria sumariamente, mas apenas no caso de imposição em zona de operações de guerra, e somente quando assim o exigir o interesse da ordem e da disciplina militares (parágrafo único do art. 57).
Quanto ao rito da execução, a disciplina é prevista no Código de Processo Penal Militar, a partir do art. 707. Pelos dispositivos, o militar que tiver de ser fuzilado sairá da prisão com uniforme comum e sem insígnias, e terá os olhos vendados, salvo se o recusar, no momento em que tiver de receber as descargas. As vozes de fogo serão substituídas por sinais. O civil será executado nas mesmas condições, devendo deixar a prisão decentemente vestido. Dispõe-se, ainda, que será permitido ao condenado receber socorro espiritual.
De se notar que algumas disposições do imaginário – fruto, talvez, da influência do cinema ou de sistemas normativos diversos do brasileiro – não possuem respaldo na lei processual penal militar, como a concessão de um “ultimo desejo” ou de uma “última refeição” ao condenado.
Da execução da pena de morte lavrar-se-á ata circunstanciada que, assinada pelo executor e duas testemunhas, será remetida ao comandante-chefe, para ser publicada em boletim.
Façamos, agora, o cotejo constitucional do tema.
O ponto de partida para esse cotejo é letra “a” do inciso XLVII do art. 5º da Constituição Federal:
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
Um primeiro ponto curioso é que, à literalidade, a Constituição não veda a pena de morte para crime comum, mas exige apenas a guerra reclarada. Outros países dispuseram de maneira diferente, como no caso da Constituição Espanhola (1978), que ao grafar o direito fundamental à vida, consagra em seu texto:
Artículo 15. Derecho a la vida Todos tienen derecho a la vida y a la integridad física y moral, sin que, en ningún caso, puedan ser sometidos a tortura ni a penas o tratos inhumanos o degradantes. Queda abolida la pena de muerte, salvo lo que puedan disponer las leyes penales militares para tiempos de guerra (g.n.).
Outra matriz adotou a Constituição Portuguesa, abolindo, em qualquer situação, a pena de morte, ao tratar dos direitos fundamentais:
Artigo 24.º
Direito à vida
1. A vida humana é inviolável.
2. Em caso algum haverá pena de morte.
Como se percebe, o Brasil, repita-se, exige apenas a guerra declarada para a pena de morte, não importando se o fato se caracteriza como crime comum ou militar. Ocorre que, na atual conformação normativa, apenas o Código Penal Militar possui a pena capital em preceitos secundários de delitos, como no caso do art. 355 do CPM, no crime de traição.
Diante dessa realidade, tem-se que o Brasil, não pela Constituição, mas pela legislação infraconstitucional, aboliu a pena de morte para crimes não militares, o que suscita uma outra discussão se seria possível retoma-la, por nova lei, nesses crimes (v.g., crimes contra a segurança nacional), o que parece ser impossível diante da previsão do número 3 do artigo 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, que expressamente comanda que “Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido”. Abolida a pena de morte para crimes comuns, ainda que pela legislação infraconstitucional, parece-nos, com o reforço do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, que o Brasil não poderá retomá-la nesses casos.
Este é um primeiro ponto a ser considerado no tema da pena de morte, para o qual poucos dão atenção. Em conclusão, aqui, o sábio, mencionado no começo, também não teria razão, pois não é admitida pena de morte para crimes comuns, no Brasil, ainda que se tenha em curso uma guerra.
Há um outro detalhe muito importante sobre o tema, que diz respeito ás características da guerra que admite a pena de morte. A guerra deve ser declarada e não se trata de qualquer guerra, mas aquela trazida pelo inciso XIX do art. 84 da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
XIX – declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;
Essas peculiaridades não passaram despercebidas aos olhos de Jorge Alberto Romeiro (1994, p. 167), ao comentar as duas disposições constitucionais:
A conjugação dos dois mandamentos constitucionais transcritos impõe que se conclua, numa interpretação que há de ser restrita, em se tratando de limitação do direito à vida, que atualmente no Brasil, só terá lugar a pena de morte no caso de guerra motivada por agressão estrangeira.
Quando outro for o motivo da guerra, a Constituição proíbe a pena de morte.
Seria o caso de guerra semelhante às várias ocorridas, no âmbito das Nações Unidas. Guerra só de fato, sem declaração de guerra ou de estado de guerra, negado até pelas partes beligerantes, a fim de ser evitada a incidência da Carta das Nações Unidas, que só permite guerra em legítima defesa, tal como nossa vigente Constituição.
Com efeito, à literalidade, apenas a guerra de defesa é assimilada pelo Brasil nos termos constitucionais e, portanto, apenas ela poderia dar ensejo à pena de morte. Mais, ainda, essa guerra deve ser formalmente declarada, nos termos da alínea “a” do inciso XLVII do art. 5º da Constituição Federal.
Acrescente-se que não se pode confundir guerra declarada com tempo de guerra. Busquemos, inicialmente, a interpretação autêntica contextual para tempo de guerra, trazida pelo art. 15 do Código Castrense:
Art. 15. O tempo de guerra, para os efeitos da aplicação da lei penal militar, começa com a declaração ou o reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização se nele estiver compreendido aquele reconhecimento; e termina quando ordenada a cessação das hostilidades.
Como se percebe, o tempo de guerra não se alcança apenas pela declaração de guerra, mas é possível também começar a imperar por reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização se nele estiver compreendido aquele reconhecimento. Perfeitamente possível, portanto, estar em tempo de guerra, mas sem a formal declaração de guerra do art. 84, XIX, da CF.
Seria possível a pena de morte em tempo de guerra, mas sem a formal declaração por agressão estrangeira?
Entendemos que não, em estrita previsão constitucional, fazendo eco a Romeiro e contrariando o sábio.
Havendo tempo de guerra, apenas pela declaração de guerra, nos termos do dispositivo constitucional, é que poderá ser instalada a pena de morte. Vigendo tempo de guerra sem essa declaração, ou seja, por reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização se nele estiver compreendido aquele reconhecimento, outros dispositivos do Código Penal Militar, específicos, passarão a ter eficácia, como o Livro II da Parte Especial (“Dos crimes militares em tempo de guerra”), e também alguns dispositivos da Parte Geral, como os arts. 18, 20 e o artigo em estudo (o art. 10). Claros, estes dispositivos também poderão ser aplicados em caso de guerra declarada nos termos constitucionais, pois esta via também compõe o estado de guerra.
Para tornar mais clara a proposição, em eventual guerra não declarada, configurando o tempo de guerra, estará vigendo o Livro II da parte Especial do Código Penal Militar, sendo possível, por exemplo, a condenação de um réu pelo crime de traição (art. 355 do CPM), mas não será possível fixar a condenação com pena de morte, nos exatos termos constitucionais.
Claro que as construções acima, em poética linguagem, nas músicas que nos embalam, não resistiriam ao adágio do sábio, pois, diz ele “tudo é válido no amor e na guerra”. Entretanto, preferimos ficar com a visão jurídica, na tutela da dignidade da pessoa humana, na proteção da vida, em sentenciar; “a guerra deve conhecer limites”.
REFERÊNCIAS:
– ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA RAMOS, Guilherme da; FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. Direito penal militar – Teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015.
– ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2017.
– ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de direito penal militar: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994.
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