Olá pessoal, tudo certo?
Vamos falar um pouco sobre o impacto das normas estampadas da Lei do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) no âmbito das investigações criminais, especificamente daquilo que foi objeto – recentemente – de apreciação pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no HC 587.732/RJ[1].
O artigo 10 do Marco Civil da Internet prevê a imprescindibilidade de tutela da privacidade dos dados pessoais e do conteúdo das comunicações privadas[2]. No entanto, isso não significa que as exigências para eventual acesso judicial são similares àquelas observadas nas interceptações das comunicações telefônicas.
Segundo o dispositivo acima mencionado, aguarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. O § 2° desse mesmo dispositivo legal determina que o conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, e o art. 22 prevê quais são os requisitos do pedido para o acesso a aplicações de internet. Vejamos:
Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet. Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade: I – fundados indícios da ocorrência do ilícito; II – justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e III – período ao qual se referem os registros.
Nesse contexto, não obstante a orientação normativa do Marco Civil da Internet no sentido de ser necessário observar a tutela da privacidade de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas (art. 10), ao tratar do acesso judicial somente exige limitação temporal no acesso aos registros de “aplicações de internet”, termo legal usado para definir “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet” (art. 5°, VII). Ou seja, não há limitação de tempo para acesso aos dados pessoais, em sentido amplo, mas apenas ao acesso à internet.
É importante registrar que não se deve confundir as “comunicações privadas armazenadas” (art. 7°, III, da Lei 12.965/2014) com o “fluxo de comunicações pela internet” (art. 7°, II) e “aplicações de internet” (art. 5°, VII), sobretudo porque somente ao fluxo de comunicações é que se determinar limitação temporal para a interceptação (art. 15, § 1°).
Não há ilegalidade na decisão que determina o acesso aos dados constantes nos bens que vierem a ser apreendidos, a fim de que sejam submetidos à perícia, sem a determinação de limite temporal, porque se trata de dados já salvos nos dispositivos eletrônicos, em que os pacientes tiveram a liberdade de apagarem ou acrescentarem informações, não sendo “fluxo de comunicações” mantidos ou armazenados por provedores de internet.
De acordo com a doutrina especializada, em relação ao conteúdo dos registros a serem guardados, este não abrange as comunicações em si mesmas estabelecidas a partir do acesso a aplicações. Então, o § 2° do art. 10 do Marco Civil da Internet informa que o conteúdo das comunicações somente poderá ser fornecido pelos provedores mediante ordem judicial, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7°. Contudo, não existe previsão de guarda do conteúdo das comunicações nem prazo legal para tanto, de forma que se conclui que somente ordem judicial poderá obrigar os provedores a assim agirem[3].
Em um caso apreciado pela 6ª Turma do STJ, a Corte asseverou que em se tratando de equipamento (computador, pen drive, HD externo etc) apreendido em busca e apreensão domiciliar, o próprio mandado judicial pode facultar o acesso às informações que nele constem. Por isso, não há óbice para que a autoridade policial ou o Ministério Público solicite, em sua representação pela autorização de busca e apreensão, que seja deferido o acesso aos dados estáticos contidos no material coletado. As Leis n. 12.965/2014 e 9.296/1996 possuem dispositivos legais que objetivam tutelar o fluxo das comunicações em sistemas de informática e telemática, isto é, proteger a fluência da comunicação em andamento, diversamente do que ocorre quando são recolhidos aparelhos informáticos em decorrência de busca e apreensão domiciliar, nos quais os dados são estáticos. Em virtude disso, é incorreta a avaliação dos requisitos necessários para a interceptação do fluxo de comunicações, a fim de aferir a possibilidade de acesso as informações estáticas que estão armazenadas em aparelhos recolhidos em busca e apreensão domiciliar[4].
Com base nessas orientações, diferentemente do que ocorre quando se está almejando o acesso a fluxo de comunicações, não há necessidade de a ordem judicial estabelecer limitação temporal específica para os acessos requeridos pelo Ministério Público, por se tratar de dados estáticos, constantes nas plataformas de dados[5].
Tema extremamente complexo! Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente.
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] HC 587.732-RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 20/10/2020.
[2] Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
[3] BRAUN, Caroline; MARTINS, Rafael D’Errico. O marco civil da internet, a guarda e fornecimento de registros por provedores de conexão e de acesso a aplicações de internet: limites legais e questões probatórias relevantes. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 130.
[4] HC 444.024/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 02/04/2019.
[5] Segundo o STJ, no caso, não se tratava de guarda e disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, e, acaso fosse, a autoridade policial ou o Ministério Público poderia requerer cautelarmente que o provedor de aplicações de internet, por ordem judicial, guardasse os registros de acesso à aplicação de internet, para finalidades de investigação criminal.
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