Poucos temas de política exterior suscitarão, hoje, maior polêmica do que a situação na Venezuela, e a razão pela qual isso se dá tem tanto a ver com as condições objetivas no país vizinho como com o debate político doméstico no Brasil. Deixando de lado argumentos de outra ordem, limitemo-nos aqui a registrar uma das principais razões pelas quais o tema se tornou tão divisivo: com ele, tornou-se possível fazer juízos de valor quase definitivos sobre toda a política exterior praticada na última década.
Caso se depare com uma questão a respeito, o candidato fará bem em guardar para si os seus juízos de valor mais enfáticos, para um lado ou para outro. Isso não quer dizer que não deva tomar posição, desde que o faça de forma ponderada e com amparo nos fundamentos mais permanentes da política exterior brasileira. E é esse instrumental que este artigo pretende dissecar, de maneira a permitir ao candidato posicionar-se a respeito, no tom adequado, sobre este e outros temas correlatos da política latino-americana do Brasil.
Ao deparar-se com qualquer assunto polêmico, o candidato fará bem em iniciar sua reflexão com a referência aos princípios pelos quais se pauta a política exterior brasileira. Estão expressos no art. 4º da Constituição, e dentre eles se elencam a “prevalência dos direitos humanos”, a “autodeterminação dos povos”, a “não intervenção” e a “defesa da paz”. Complementarmente, fora da enumeração e com o destaque que mereceu num parágrafo único, o mesmo artigo prescreve que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
A depender da visão que se tenha da Constituição e da efetividade de normas assim programáticas, poderão soar palavras ao vento, e mesmo entre os formuladores da política exterior haverá quem prefira uma latitude indefinida ao definir os rumos da diplomacia brasileira. Mesmo essa latitude, no entanto, não poderá deixar de levar em conta a experiência histórica do Brasil, e a razão pela qual esses princípios estão aí enumerados é porque decorrem de maneira cristalina dessa experiência histórica.
No mais, haverá entre pensadores de outras disciplinas quem veja a questão de maneira completamente diferente. A hipótese nunca foi posta à prova, mas este autor recorda-se com clareza de como Luiz Roberto Barroso usava justamente esses princípios sobre política exterior para defender suas teses sobre a “efetividade das normas constitucionais”. Em livro de 1993, o hoje ministro do STF sustentava que tais princípios não eram palavras ao vento e que num caso extremo se poderia perfeitamente contemplar a hipótese de entidade habilitada ir buscar em juízo a anulação de um acordo internacional celebrado, por hipótese, com entidade terrorista, por violação ao inciso VIII do mesmo artigo (o exemplo que o autor usava, que não deixará de suscitar polêmicas, era a celebração de acordo com a Organização para a Libertação da Palestina).
Posto isso, é forçoso concluir que os princípios ali elencados não fornecem respostas óbvias às questões suscitadas pelo caso venezuelano. Se, por um lado, a “não intervenção” (i.e., nos assuntos domésticos de outros estados soberanos) figura como uma das pedras de toque de toda a diplomacia brasileira, por outro, os princípios da “prevalência dos direitos humanos” e da “defesa da paz” bem poderiam interpretar-se como determinantes para forçar o estado brasileiro a tomar posição diante de violações flagrantes a esses valores. Adicionalmente, o parágrafo único, ao destacar do texto o compromisso com a integração latino-americana, como que indica que o Brasil terá, se não responsabilidades, ao menos uma atenção especial a sua própria vizinhança, e isso o obrigaria a posicionar-se claramente sobre a questão venezuelana.
A questão, portanto, não é exatamente de escassez de princípios orientadores, mas talvez de excesso. É possível, no próprio texto constitucional, encontrar argumentos a justificar tanto o silêncio respeitoso acerca dos processos políticos venezuelanos como uma política ativa de condenação de abusos que porventura se tenham perpetrado contra a população civil. Nisso, como em tudo o mais, sopesar os princípios e escolher quais devem prevalecer é prerrogativa da autoridade legitimamente eleita para tomar exatamente esse tipo de decisões: o Presidente da República.
Mas prossigamos em nossa análise, que há outros elementos em jogo. Para além do ordenamento doméstico, também o direito internacional deve ser levado em conta no momento de tomar decisões a esse respeito. E o principal dos instrumentos aplicáveis ao caso foi justamente aquele invocado pelos governos do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, em abril de 2017, e implementado no dia 5 de agosto de 2017 para suspender a Venezuela do Mercosul: o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile, de 24 de julho de 1998.
E o que expressa esse documento? Antes de chegar a seu conteúdo, convém ter presente que o Mercosul foi um projeto de governos e sociedades que há muito pouco começavam a construir ou reconstruir suas instituições democráticas (Argentina em 1983, Brasil e Uruguai em 1985, Paraguai em 1989), após interrupções mais ou menos longas de seus processos políticos (interrupções que, no caso paraguaio, duraram 35 anos). Manifesta ou não, já em princípios dos anos 90, havia a percepção de que a vigência da democracia era condição essencial para a participação, eis que a própria integração surgiu em decorrência dos gestos dos dirigentes democráticos (notadamente Sarney e Alfonsín) tendentes a desarmar antigas rivalidades e construir uma prosperidade comum.
Ocorre que, em fins dos anos 90, Brasil, Argentina e Uruguai já poderiam considerar-se democracias estabelecidas, mas as condições eram substancialmente mais frágeis no Paraguai: em 1996, o comandante do Exército, general Lino Oviedo, tentara destituir o presidente Juan Carlos Wasmosy num golpe de estado. O golpe não se concretizou pela postura ativa da diplomacia brasileira, que não se paralisou diante do princípio da não ingerência (e há detalhes inéditos do episódio em artigo recente do embaixador Marcio Dias). Três anos depois, em 1999, o Paraguai passaria por novo episódio de instabilidade, o Marzo Paraguayo, para cujo desenlace, uma vez mais, a ação diplomática do Brasil foi fundamental. O importante, no entanto, é que, desde o ano anterior, 1998, o Protocolo de Ushuaia já estabelecera explicitamente o princípio de que a plena vigência das instituições democráticas num país membro do Mercosul é assunto que interessa a todos os sócios do bloco.
Estamos, então, em condições de debruçar-nos sobre esse documento e entender-lhe o sentido. O protocolo afirma textualmente, já em seu artigo 1º, que “a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração dos estados partes do presente protocolo”. Mais: estabelece, em seu artigo 3º, que “toda ruptura da ordem democrática em um dos estados parte” enseja os procedimentos aí previstos. Tais procedimentos englobam, sequencialmente, o estabelecimento de consultas entre os demais países, e entre esses e o estado afetado (art. 4º), e, caso estas se revelem “infrutíferas”, medidas ulteriores proporcionais à “gravidade da situação existente”. Essas medidas irão da “suspensão do direito de participar dos diferentes órgãos” do Mercosul à “suspensão dos direitos e obrigações resultantes” do processo de integração (art. 5º). Quaisquer medidas aí previstas dependem da unanimidade de votos entre os estados não afetados (art. 6º) e durarão até que estes constatem “o pleno restabelecimento da ordem democrática” (art. 7º).
Foi esse documento que embasou a decisão do Mercosul, em 2012, de suspender o Paraguai por supostos vícios no juízo político do presidente Fernando Lugo. E foi ao mesmo documento que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai recorreram, em 2017, para suspender a Venezuela. Desta feita, decidiu-se convocar consultas já em abril, num contexto marcado por conflito de poderes entre a Corte Suprema e a Assembleia Nacional; em agosto, com a convocação de assembleia constituinte composta por integrantes não eleitos por sufrágio universal, decidiu-se então suspender a Venezuela, nos termos do protocolo.
Há um segundo instrumento de direito internacional relevante, no caso em pauta. Trata-se da Carta Democrática Interamericana, um documento vinculante para os 34 membros da Organização dos Estados Americanos, adotado curiosamente no dia 11 de setembro de 2001 (na ocasião, o secretário de Estado americano, Colin Powell, encontrava-se em Lima para a Assembleia Geral da OEA que adotou o documento e teve de voltar às pressas para os EUA após a notícia dos atentados terroristas em Nova York). A Carta estabelece que “os povos das Américas têm o direito à democracia, e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la” e chega a elencar, de maneira exemplificativa, “elementos essenciais” do que venha a constituir democracia: “o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, o acesso ao poder, e seu exercício, segundo o primado do direito, a realização de eleições periódicas, livres e justas com base em votação secreta e no sufrágio universal como expressão da soberania popular, um sistema plural de partidos e organizações políticas e a separação de poderes e a independência entre os ramos do governo”.
Como o Protocolo de Ushuaia, a Carta Democrática estabelece procedimentos a seguir no caso de “interrupção inconstitucional da ordem democrática”. Uma interrupção dessa ordem, prescreve a Carta, constitui “obstáculo intransponível à participação do governo [afetado]” nos órgãos da OEA. Antes de tomar medidas mais drásticas, a Organização deverá “adotar as iniciativas diplomáticas necessárias, inclusive os bons ofícios, de modo a encaminhar a restauração da democracia”. Malogrados esses esforços, os membros da OEA podem decidir pela suspensão do estado afetado.
Diante disso, onde está a diferença entre os mecanismos previstos pelo Protocolo de Ushuaia e aqueles estabelecidos na Carta Democrática Interamericana? Os ritos, como se viu, são similares, e a distinção que há, no caso venezuelano, é puramente prática: no Mercosul, foi possível construir a unanimidade necessária para constatar a existência de ruptura da ordem democrática e adotar as punições cabíveis no caso; na OEA, não foi possível reunir a maioria qualificada (de dois terços) necessária para fazer a mesma constatação e adotar as mesmas decisões.
O que, para os propósitos deste artigo, convém repisar é que, para além dos precedentes históricos, tanto o direito interno como o direito internacional contêm princípios e normas capazes de orientar a ação do governo brasileiro num caso como o venezuelano. Às vezes tais princípios e normas soarão contraditórios entre si, ou no mínimo poderiam embasar soluções perfeitamente distintas para casos similares. Não chega a ser um problema insolúvel: como já se ressaltou aqui, parte legítima do exercício de governar é escolher que princípios privilegiar quando dois ou mais dentre eles colidem entre si.
Isso não quer dizer que o governante tenha uma latitude indefinida na hora de fazer escolhas. Passando ao largo da questão controvertida da densidade jurídica das normas programáticas, há que se levar em conta que as normas consagradas no Protocolo de Ushuaia ou na Carta Democrática Interamericana, mais do que expressar princípios, constituem compromissos juridicamente vinculantes para o estado brasileiro. É até possível argumentar — e a experiência do caso venezuelano demonstra-o à perfeição — que governos distintos, inspirados por valores diversos, poderão valorar o mesmo fato de maneiras perfeitamente divergentes. Mas, em casos extremos e patentes, seria legítimo perguntar se o governante que se recuse a aplicar cláusula prevista em acordo internacional não incorre no crime de responsabilidade previsto no art. 5º, 11, da Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950 (“violar tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras”), que regula os “crimes contra a existência da União” previstos no art. 85 da Constituição.
Excetuados, no entanto, os casos extremos, o que há são os princípios que aqui se analisaram, que como se viu podem aplicar-se de maneira diversa por governos de signos distintos. Tais decisões, reitere-se pela segunda vez, são parte legítima do exercício de governar, e as polêmicas que daí decorrerem devem ser dirimidas no campo do embate político regular.
Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.
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