Crime militar extravagante de atentado à integridade nacional (art. 359-J do Código Penal)

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A Lei n. 14.197, de 1º de setembro de 2021, além de revogar a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/1983), acrescentou no Código penal os crimes contra o Estado Democrático de Direito, a partir do art. 359-I, prestando-se este raciocínio a verificar se estes crimes, neste caso especialmente o crime de atentado à integridade nacional, pode ou não ser adjetivado como crime militar extravagante.

Nesse caminho, necessariamente, deve-se passar pela compreensão do novo crime.

O tipo penal do crime consigna:

 

Atentado integridade nacional:

Art. 359-J. Praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, além da pena correspondente à violência

 

A objetividade jurídica deste delito é o Estado Democrático de Direito, especificamente pelo viés do elemento territorial do Estado.

Sobre o Estado Democrático de Direito, como já definimos em artigo anterior, basta aqui resumir que trata-se de bem jurídico com expressa previsão constitucional (art. 1º da CF) e que encerra a ideia de que o Estado deve submeter todos à lei, mas uma lei parida por um processo que garanta a participação de todos os cidadãos, de forma direta ou indireta, curando dos direitos e garantias individuais.

A rubrica do delito, ademais, indica que o viés específico é a preservação do território brasileiro, guardando-se sua integridade. Essa integridade possui, também, grandeza constitucional, na instituição da federação como forma de Estado, também consignada no art. 1º da Lei Maior.

O mencionado dispositivo constitucional da Constituição de 1988 comanda que o Brasil é uma república federativa, deflagrando, em sequência, que é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal.

Frise-se: união indissolúvel!

Isto significa que não há uma possibilidade de secessão, o que, aliás, é signo próprio dos Estados federados, comportando poucas exceções, como a que nos aponta Dallari ter ocorrido na Constituição Russa de 1993 que permite, se houver concordância da Federação Russa, a separação[1].

Como proteção dessa forma de Estado indissolúvel, deve-se consignar, primeiro, que a forma federativa é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, CF), assim como o levante separatista interno pode até ensejar a intervenção federal (art. 34, I, CF).

Pois bem, tem-se no plano de estudo a tutela penal, agora sob a forma trazida pela Lei n. 14.197/2021, de maneira que quem praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente, incorrerá no crime do art. 359-J do CP.

No que concerne aos sujeitos, o sujeito ativo é qualquer pessoa, civil ou militar (crime comum), nacional ou estrangeiro. Trata-se, ainda, de crime monossubjetivo ou de concurso eventual. Deve-se anotar que, em se concluindo por crime militar extravagante, o julgamento de civis pela Justiça Militar da União ainda pode conhecer nova compreensão, pois pende no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 289, ajuizada em 2013, pela Procuradoria-Geral da República, “em que pede que seja dada ao artigo 9º, incisos I e III, do Código Penal Militar (CPM, Decreto-Lei nº 1.001/1969), interpretação conforme a Constituição Federal (CF) de 1988, a fim de que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e que esses crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça comum, federal ou estadual”[2].

O sujeito passivo é titular do bem jurídico aviltado, ou seja, o Estado. De maneira mediata, também o será aquele atingido pela violência ou grave ameaça.

Passando aos elementos objetivos, a conjunção nuclear primeira é praticar violência ou grave ameaça.

Violência, como se apresenta aqui e em outros tipos penais, trata-se da vis corporalis, ou seja, a violência física, podendo ser caracterizada por ação, por exemplo, o caso do agente que atua contra nacionais com armas, com o intento de expulsá-los para permitir a separação do território, ou por omissão, por exemplo, privar nacionais de recursos mínimos de subsistência em determinada região, com o mesmo propósito. Não se exige, é bom que se anote, que a violência seja resistível por alguém – aliás, nem sequer se exige que se tente resistir, bastando que seja empregada com a finalidade descrita no tipo.

A ameaça, como exige o próprio tipo, deve ser grave, ou seja, uma promessa de mal futuro apta a causar temor nas pessoas, que podem ser aquelas que resistem à separação do território. Trata-se de violência moral (vis compulsiva). Pode consistir em ameaça oral, escrita, gestual etc., mas claro, nas circunstâncias mais propícias à prática do delito, é muito mais provável com o emprego da ameaça armada, com iminente prática de violência física. Não se exige, por outro lado, que o mal versado na ameaça seja injusto, como em alguns tipos penais – vide, por exemplo, o delito de ameaça, capitulado no art. 147 do CP e no art. 223 do CPM –, mesmo porque, quem pratica o ato pode entender que sua conduta é justa por várias razões. Também não se exige que a ameaça configure coação irresistível – aliás, nem sequer se exige que alguém tente resistir –, já que se trata de elemento estranho ao tipo penal em estudo, bastando que, como dito, seja idônea a causar medo.

A conduta do agente tem um intento, o de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente.

Assim, o autor deseja seccionar o País, destacar, desmembrar parte do território brasileiro, mas não a qualquer propósito, e sim para que se constitua um outro Estado nacional.

Entendemos que a abrangência da expressão constituir país independente não se restringe a um novo Estado a ser formado, mas pode também comportar a anexação a um Estado já existente, e assim entendemos com arrimo em duas possibilidades alternativas de assimilação do tipo penal.

Primeiro, na literalidade, porque a expressão não traz o temor “novo” país, podendo ser, obviamente, um já existente. Ademais, a palavra constituir pode ter por significado compor, integrar, não necessariamente algo (um país) novo ou não existente. Preferimos esta via de interpretação.

Segundo, se se entender que a expressão se refere a um novo país, possível, à exceção, a interpretação extensiva, pois é claro que o efeito do desmembramento para que o naco de território integre um novo país tem a mesma afetação à integridade do que no caso de composição junto a um país já existente, ficando límpido que o legislador, neste caso, grafou menos do que realmente desejava.

No preceito secundário grafa-se a pena de reclusão de 2 a 6 anos, além da pena correspondente à violência, vingando o cúmulo material em eventual unificação de pena dos delitos.

Há conflito da descrição típica em análise com o inciso II do art. 142 do CPM. Aliás, já havia o conflito com o art. 11 da revogada Lei n. 7.170/1983.

Sustentávamos, na vigência da Lei de Segurança Nacional, que a análise seria em favor da norma mais recente nos casos em que a conduta não seja por meio de movimento armado ou tumultos planejados, pois, em sendo por essa forma, havia de prevalecer a norma mais específica, ou seja, o Código Penal Militar (lex specialis derogat generali). Hoje, como o novel tipo possui por elementar a violência e a grave ameaça, o que, naturalmente, abarca o movimento armado ou tumulto, reiteramos que deve prevalecer o tipo penal incriminador do Código Penal comum, do art. 359-J.

Também são pela não mais aplicação do inciso II do art. 142, Rogério Sanches e Ricardo Silvares:

O inciso II do art. 142 do Estatuto penal militar, por sua vez, possuía identidade de bem jurídico tutelado e de conduta com o art. 11 da Lei de Segurança Nacional. Em ambos, era a soberania que acabava atingida e a conduta buscava desmembrar o território nacional. Logo, pensamos que, por força do art. 2º da Lei 7.210, sempre que a conduta se apresentasse, seria aplicável o art. 11 deste último veículo normativo, não restando espaço para a aplicação do art. 142 daquele Código, que fora, portanto, tacitamente revogado […][3].

Naturalmente, quiseram os autores se referir à Lei n. 7.170/1983 e não à Lei n. 7210, como consignado, mas fica evidente a posição pela não aplicação do dispositivo em comento, abrindo válvula para a aplicação do art. 359-J do CP.

Em relação ao inciso III do art. 142 do CPM não há conflito com o art. 359-J do CP, sobrevivendo os dois dispositivos, como também propõem Rogério Sanches e Ricardo Silvares:

a) se o militar praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente, cometerá delito do art. 359-J do CP: se agir nas circunstâncias do art. 9º do CPM, haverá crime militar, do contrário, delito comum;

b) se o militar tentar internacionalizar, por qualquer meio, região ou parte do território nacional, cometerá o crime do art. 142, III, do CPM: o crime é militar próprio, pois a conduta só é prevista no Código militar”[4].

Importante lembrar que, pelo art. 359-T do CP, não constitui crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais, malgrado de difícil aplicação no crime em estudo.

O elemento subjetivo é o dolo, a intenção, a vontade livre e consciente de agredir a integridade nacional. Há, notadamente, elemento subjetivo especial do tipo, marcado pela finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente.

No que concerne à consumação, o delito se consuma com a prática da violência ou da grave ameaça, ainda que não se atinja o fim desejado de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente, tratando-se de crime formal. Mais ainda constataremos a classificação como delito formal, se entendermos que o agente quer, ao fim e ao cabo, desestruturar o Estado Democrático de Direito, o que não precisa ocorrer para a consumação. Como crime plurissubsistente, possível a tentativa tanto na modalidade simples como na modalidade qualificada.

É crime de ação penal de iniciativa pública incondicionada.

Vamos, agora, à avaliação da possibilidade de ocorrência de crime militar extravagante.

Perfeitamente possível a adjetivação deste delito como militar (crime militar extravagante), bastando a subsunção da conduta a uma das hipóteses do art. 9º do CPM.

Exemplificativamente, o militar federal que pratique violência, por armas, para alcançar o desmembramento do território brasileiro, fins de que se constitua em um país independente, negará seu compromisso constitucional de defesa da Pátria, grafado no art. 142 da Lei Maior, portanto, estará ferindo gravemente a ordem administrativa militar, podendo ter sua conduta subsumida na alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Castrense.

Não é outra a pioneira visão de Rogério Sanches e Ricardo Silvares, que, ressalte-se, assimilaram a expressão crimes militares extravagantes, que cunhamos em 2017, em artigo próprio[5]:

Assim, quando, na situação do art. 9º do CPM, um militar cometer qualquer conduta dentre as previstas no CP, salvo os crimes dolosos contra a vida, estará cometendo crime militar extravagante, assim chamado por estar tipificado em diploma legal diverso do Código castrense. Logo, os crimes do novo Título XII, em tais circunstâncias, serão considerados crimes militares, de competência da Justiça Militar[6].

[1]   Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 254.

[2]   Cf Informativo do STF de 22 de agosto de 2013. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=246326. Acesso em 20.mai.2020.

[3]              CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 196.

[4]              CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 202.

[5] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Inquietações na investigação criminal militar após a entrada em vigor da Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 126, p. 23-28, set./dez. 2017.

[6]   CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 202-3.

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