Sete filhos e uma vaga

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A frase veio simples, sem trombetas nem holofotes:
— Agora é sua vez. Vá atrás do seu sonho.

Na mesa, o caçula ainda mamava. No quintal, o varal balançava cheio. Na cabeça, as contas por pagar não davam trégua. Márcia respirou fundo. Com quase 40 anos, 7 filhos e uma vida marcada por sucessivos adiamentos, entendeu que o “depois” havia, enfim, chegado. Era agora.

Lembrou da casa de infância, que fora barulhenta, sim, mas pelos motivos errados. O velho e torto ditado — “em briga de marido e mulher não se mete a colher” — servia de cortina para a violência que os vizinhos fingiam não ver. Até que, um dia, a mãe reuniu coragem, agarrou os filhos que couberam nos braços, distribuiu os demais entre parentes e escolheu viver. 

A liberdade, porém, veio sem garantias. Márcia cresceu vendo a mãe trabalhar duro e no que aparecesse. Mesmo assim, faltava quase tudo em casa, inclusive comida. Foi nesse cenário de escassez que ela aprendeu uma lição valiosa: apesar de tudo, é possível recomeçar. Às vezes sangrando, quase sempre com medo, mas ainda assim de pé.

Carregou essa certeza como se fosse um talismã, embora o caminho seguisse cheio de pedras. Estudou em escola particular graças a bolsas de estudos. Quando deixou de contar com elas, recorreu às diárias como faxineira ou ao salário de balconista de loja para pagar as mensalidades. Veio o casamento, aos 22, seguido dos filhos e da primeira tentativa de cursar Pedagogia, abandonada quando o trabalho do marido obrigou a família a se mudar de estado. A vontade de estudar ficou guardada numa gaveta que ela abria de vez em quando, como quem espia o mapa de um tesouro escondido.

Márcia não é de tirar fotos. Nesta, ela está com o marido e seis dos sete filhos.

Até que o esposo se aposentou e proferiu a frase que abre este texto: “Vá atrás do seu sonho”. 

Ela foi.

Ingressou no pré-vestibular e garantiu vaga no curso noturno de Serviço Social. Recusou, com o coração apertado mas a mente firme, o recém-conseguido emprego de empacotadora, porque os horários batiam com as aulas. Escolheu o caminho mais longo, e também o mais promissor.

Começou a luta. No ônibus, fones de ouvidos para ouvir videoaulas. Na pia, PDF plastificado ao lado do escorredor. Na biblioteca, cadernos cheios de esquemas, setas e resumos. De madrugada, simulados — e um bebê no colo, mamando entre um tópico e outro. Cortou a internet para manter o foco. Imprimiu materiais de estudo para poder sublinhar o que fosse mais importante. Descobriu uma revista especializada em concursos, que decifrava aquela linguagem estranha. Fez um curso técnico em Serviços Públicos para entender a máquina por dentro. Uniu vontade e método. Foi assim que virou a chave.

Os resultados começaram a aparecer. Primeiro foi o IBGE: agente de pesquisas e mapeamento, seu nome no topo da lista de aprovados. Foram quase três anos de roteiro, prancheta, rua — e o salário que bancava xerox, passagem, livros. As tais vagas “escada” que ajudam a subir degrau a degrau…

Formou-se em 2020 e começou a colecionar listas, estudando pela plataforma do Gran: TRF4, TRF1, TRF6. Às vezes, era só o nome no Diário Oficial. Em outras, o sonho avançava um pouco mais. Até que a engrenagem encaixou de vez: TRT Rio e TRT 15, segundo lugar nas cotas, empate na nota. Na Polícia Federal, área administrativa em Cuiabá, havia uma única vaga — a tal “uma vaga” que ela repetia como mantra — e, finalmente, o primeiro lugar. 

Hoje, está em Macaé, onde ingressou como assistente social há dois meses. A assinatura no termo de posse ainda cheira a tinta fresca.

Não há milagre escondido na rotina; há, sim, engenharia doméstica. Há um marido que troca de turno para dar banho nas crianças e ajudar com a lição de casa. Há filhos pequenos que aprendem o valor do silêncio enquanto a mãe revisa a matéria. E há adolescentes que vão se tornando parceiros na lida diária. Há, também, escolhas mínimas capazes de mudar tudo: optar por material impresso para escapar das notificações do celular, transformar a biblioteca em uma espécie de bunker de foco, usar o tempo da fila do mercado para reler a lei seca.

E, claro, há coragem. Coragem de reconhecer os próprios limites e de pedir ajuda sem constrangimento. Vale usar a criatividade: talvez uma rede de mães que se revezem no cuidado com os filhos umas das outras, talvez uma sala comum convertida em creche, talvez um abaixo-assinado requerendo providências ao prefeito da cidade…

O resto é o que a vida devolve a quem não desiste. No caso de Márcia, são três filhos já servidores públicos e os outros quatro estudando para isso; a casa que começa a conhecer o conforto dos boletos em dia; o sonho singelo de viajar em família sem precisar fazer contorcionismo para bancar tudo.

Márcia não romantiza. Sabe que a opção pelos concursos públicos está longe de ser fácil. Sabe que a preparação cansa e que há dias de culpa, de dúvida, de vontade de largar tudo. E sabe que a idade pode ser um grande obstáculo. No caso dela, porém, foi sua maior aliada. Trouxe clareza de propósito, serenidade e disciplina. E reforçou aquela verdade aprendida lá atrás, ao ver a mãe recomeçar: estabilidade não cai do céu; constrói-se aos poucos, com tijolos de quinze, vinte, trinta minutos de dedicação por dia.

Se você se identifica com Márcia de alguma forma, seja por estar lendo isto com um bebê no colo, dentro de um ônibus lotado ou diante de uma pia cheia de louças para lavar, pense como ela: 

  1. Você não precisa de tudo — só de uma vaga.
  2. Você não precisa de um dia perfeito — só de hoje.

O resto é somar pequenos avanços até ver o seu nome estampado no Diário Oficial.

Márcia diria com serenidade: 

Comece onde der, com o que tiver, do jeito que puder.

E não pare.

Porque a vida faz exatamente isto: insiste até dar.

Um raro momento com todos os filhos reunidos. A família é grande, então sempre falta alguém.


Gabriel Granjeiro –O e sócio-fundador do Gran, maior Edtech do Brasil em número de alunos, com mais de 800 mil discentes ativos pagantes. Reitor e professor da Gran Faculdade. Acompanha o universo dos concursos desde a adolescência e ingressou profissionalmente nele aos 14 anos. Desde 2016, escreve artigos semanais para o blog do Gran, que já somam milhões de leitores.

Formou-se entre os melhores alunos em Administração e Marketing pela New York University Stern School of Business. Foi incluído na lista Forbes Under 30 (2021), eleito Empreendedor do Ano pela Ernst & Young (2024) e reconhecido pela MIT Technology Review como Innovator Under 35 no Brasil e na América Latina. Autor de quatro livros best-seller na Amazon Kindle.

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