Olá, queridos alunos e alunas do Gran!
Vamos dar uma olhada em uma mudança promovida pela Emenda Constitucional 103? Bom, você já deve saber que a Emenda Constitucional 103 promoveu alterações profundas em nosso sistema de previdência social, não é? Foram feitas muitas e muitas alterações nas regras de concessão de benefícios, tanto no regime geral de previdência social, quanto nos regimes próprios estabelecidos pelos entes federativos.
Mas, o que quero chamar à atenção hoje é que a Emenda 103 não alterou apenas as regras relacionadas aos requisitos exigidos para o pagamento de prestações previdenciárias naqueles regimes. Ela alterou, também, uma regra de competência até então prevista na Constituição Federal.
Refiro-me à chamada COMPETÊNCIA DELEGADA nos processos previdenciários, conforme previsão do art. 109, §3º, CF. Vou transcrever o dispositivo aqui embaixo pra você:
Art. 109. (…)
(…)
- 3º Lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Essa é a redação atual do dispositivo constitucional, alterado pela EC 103. Algumas mudanças muito importantes foram feitas, considerando a redação que antes vigia.
Vamos ver como isso aconteceu!
Pois bem, a competência delegada é um instituto processual que já estava previsto na legislação anterior ao regime constitucional de 1988. Na década de 1960, em virtude da pouca interiorização da Justiça Federal, foi editada a Lei 5.010/66, que passou a prever que nas comarcas em que não houvesse sede da Justiça Federal (perceba: qualquer comarca, independentemente da distância!), as demandas previdenciárias pudessem ser ajuizadas perante a Justiça Estadual.
Naquela época, as demandas previdenciárias ajuizadas contra a autarquia previdenciária federal também eram da competência da Justiça Federal. Em verdade, a Justiça Federal de 1º Grau tinha acabado de ser recriada pelo Ato Institucional n. 02/65, desde sua extinção pela Constituição de 1937 (extinção essa mantida na Constituição de 11946). No referido ato de recriação da Justiça Federal de 1º Grau, estabeleceu-se a competência dos Juízes Federais em razão da pessoa, de modo que, em regra, os Juízes Federais seriam competentes para o processamento e julgamento de causas previdenciárias movidas em face do INSS. Em relação a essa passagem histórica, aproveito para colacionar trechos do artigo abaixo, extraído do próprio site do Conselho da Justiça Federal[1]:
Em 1937 extinguiu-se, pela Constituição do Estado Novo, a Justiça Federal. O Poder Judiciário Nacional passou a ser composto pelo Supremo Tribunal Federal, pelos juízes e tribunais dos estados, Distrito Federal e territórios, e pelos juízes e tribunais militares (também foi extinta a Justiça Eleitoral). Os juízes federais com mais de 30 anos de serviço foram aposentados com vencimentos integrais; aqueles que não dispunham desse tempo foram postos em disponibilidade, com vencimentos proporcionais (OLIVEIRA, 1996. p. 11). A Justiça estadual de primeira instância passou a ter competência para processar a julgar as causas de interesse da União, passando o Supremo Tribunal Federal a julgar essas mesmas causas em recurso ordinário (SADEK in: SADEK, 1995, p. 11; VELLOSO, 1995. p. 8).
(…)
A Constituição de 1946 recriou apenas a 2ª instância da Justiça Federal — o Tribunal Federal de Recursos, composto de 9 juízes, que integrava o Poder Judiciário Nacional juntamente com o Supremo Tribunal Federal, os juízes e tribunais militares, os juízes e tribunais eleitorais e os juízes e tribunais do trabalho. Destaque-se o ressurgimento da Justiça Eleitoral, a constitucionalização da Justiça do Trabalho e a utilização do termo “Poder Judiciário Nacional”, que excluiu a Justiça Estadual — seguindo o raciocínio de que cada Estado constituiria seu Poder Judiciário próprio.
(…)
Na vigência do regime militar instaurado em 1964, o Ato Institucional n. 2, de 27/10/65, recriou a Justiça Federal de 1ª instância.
(…)
A competência da Justiça Federal foi definida em razão da pessoa — União ou entidade autárquica; em razão da matéria — Direito marítimo, de navegação aérea, direito de greve e os crimes contra a organização do trabalho; ou da natureza da causa — os mandados de segurança e habeas corpus contra autoridades federais (OLIVEIRA, 1996. p. 11).
(…)
Em 30/05/66, a Lei n. 5.010 criou o Conselho da Justiça Federal, composto pelo Presidente, Vice-Presidente e três ministros do Tribunal Federal de Recursos, com competência para tratar de questões disciplinares dos juízes e funcionários e de outros assuntos administrativos da Justiça Federal de 1ª instância. A Justiça Federal de 1a instância passou a se dividir em 5 regiões e em cada Estado, Território e no Distrito Federal seria instalada uma seção judiciária. A Justiça Federal passou a ser composta por 44 varas: duas no Distrito Federal, três em Minas Gerais, duas em Pernambuco, duas na Bahia, cinco na Guanabara, duas no Paraná, três no Rio Grande do Sul, sete em São Paulo, e uma nos demais estados, com respectivamente um cargo de juiz federal e um de juiz substituto.
Como se vê, logo após o retorno da Justiça Federal de 1º Grau, foi editada a Lei 5.010/66, estabelecendo diversas regras sobre o exercício da jurisdição e competência federal. Nesse ato legal que surgia, portanto, a figura processual da COMPETÊNCIA DELEGADA, remetendo-se o encargo jurisdicional das ações previdenciárias aos Juízes Estaduais das comarcas nas quais não houvesse sede da Justiça Federal. A competência delegada, portanto, era uma exceção prevista em norma LEGAL.
Após a Constituição Federal de 1988 essa competência delegada foi transferida para a norma CONSTITUCIONAL, passando a ser prevista no artigo 109, §3º, da CF/88, que assim dizia em sua redação original:
- 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.
Vamos comparar com a redação atual? Veja:
- 3º Lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
No comparativo entre a redação anterior e a redação atual, posso lhe afirmar que foram feitas DUAS MUDANÇAS muito importantes em relação ao instituto da competência delegada.
Conseguiu perceber? Leia novamente!
Bom, antes de tudo, o mais óbvio, mas que ainda gera certo falatório incoerente por aí: a Emenda 103 NÃO EXTINGUIU o instituto da competência delegada, ok? Acho que isso está claro, mesmo por uma leitura rápida do dispositivo. Entretanto, sim, ele sofreu mudança e a Emenda 103, de certa forma, MITIGOU sua aplicabilidade.
Vamos às mudanças!
A PRIMEIRA MUDANÇA se refere à retirada do trecho que permitia que outras causas também fossem processadas e julgadas pela Justiça Estadual.
Antes, era permitido que uma determinada lei também previsse outras hipóteses e tipos de matérias, além de causas previdenciárias, a fim de que elas também fossem incluídas no âmbito da competência delegada. Como exemplo, até bem pouco tempo atrás existia a competência delegada em relação às execuções fiscais, o que acabou sendo extinto por meio da Lei n. 13.043/14, que revogou o disposto no art. 15, inciso I, da Lei 5.010/66. Note que, na redação original do art. 103, §3º, CF, já constava permissão para que a LEI incluísse outras causas no espectro da competência delegada. Logo, se poderia permitir, também poderia impedir, isto é, retirar do ordenamento jurídico eventual previsão legal que criasse alguma outra hipótese de competência delegada. Foi o que fez a Lei 13.043/14, impedindo que a competência delegada continuasse a existir para as ações de execução fiscal.
A SEGUNDA MUDANÇA se refere a alteração da forma como passou a ser prevista a competência delegada em relação às causas previdenciárias.
Antes da Emenda 103, a norma previa de maneira impositiva a existência da competência da Justiça Estadual nas causas previdenciárias referentes aos segurados com domicílio em comarcas nas quais não haja sede da Justiça Federal. A norma constitucional então vigente não deixava margem para que o legislador não regulasse a previsão desse importante direito constitucional (que, aliás, possui nítida correlação com o direito fundamental da inafastabilidade do Judiciário, já que visa superar impedimentos geográficos quanto ao acesso à Justiça).
Agora, a Constituição Federal diz que a LEI PODERÁ AUTORIZAR essa competência delegada. Percebe-se, com isso, que não mais vige o caráter impositivo que antes permeava a redação do art. 109, §3º, CF. A manutenção da exceção à regra de competência da Justiça Federal, a partir da Emenda 103, passou a ser escolha do legislador. Temos nisso, cabe constatar, mais uma ocorrência de desconstitucionalização de direitos ligados à seara previdenciária, operada pela reforma de 2019.
Resta-nos indagar, portanto, se a LEI ainda mantém a competência delegada!
SIM, a resposta é positiva, ainda existindo tal instituto em nosso ordenamento jurídico. Contudo, embora não tenha promovido a extinção da competência delegada, uma lei recente incluiu restrição em seu âmbito de aplicabilidade.
Explico melhor.
Ainda permanece válida a Lei n. 5.010/66, incidindo o quanto previsto em seu art. 15, III, mas, recentemente, esse dispositivo tece sua redação alterada pela Lei n. 13.876/19. Até a edição dessa lei, não havia condicionante relativa à DISTÂNCIA DA SEDE DE VARA FEDERAL. Com a mudança legislativa, somente haverá competência delegada nas comarcas cuja DISTÂNCIA DA SEDE DA JUSTIÇA FEDERAL FOR MAIOR DO QUE 70 KM. Vejamos:
Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual: (Redação dada pela Lei nº 13.876, de 2019)
I – os executivos fiscais da União e de suas autarquias, ajuizados contra devedores domiciliados nas respectivas Comarcas; (Vide Decreto-Lei nº 488, de 1969) (Revogado pela Lei nº 13.043, de 2014)
II – as vistorias e justificações destinadas a fazer prova perante a administração federal, centralizada ou autárquica, quando o requerente fôr domiciliado na Comarca; (Vide Decreto-Lei nº 488, de 1969)
III – os feitos ajuizados contra instituições previdenciárias por segurados ou beneficiários residentes na Comarca, que se referirem a benefícios de natureza pecuniária. (Vide Decreto-Lei nº 488, de 1969)
III – as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município sede de Vara Federal; (Redação dada pela Lei nº 13.876, de 2019)
Registro que a alteração legal promovida pela Lei 13.876/19 somente passou a valeu a partir do dia 1º de janeiro de 2020, conforme vacatio legis diferida determinada pelo art. 5º da referida lei. Assim, desde 01º de janeiro de 2020, somente há competência delegada para a Justiça Estadual, se a Comarca na qual foi ajuizada a ação previdenciária estiver distante mais de 70 quilômetros de sede da Justiça Federal.
Para arrematar esse tema, cabe-nos a seguinte indagação: se ajuizada a ação previdenciária junto ao Juízo Estadual que exerce a competência delegada, cabe o declínio de competência de ofício para o Juizado Especial Federal que engloba a respectiva comarca?
Se a comarca onde foi ajuizada a ação previdenciária estiver situada a menos de 70 Km da sede de Vara Federal, tenho que o declínio de competência pode ser realizado de ofício pelo Juízo Estadual. De outro lado, se a ação tiver sido ajuizada em comarca que dista mais de 70 Km da sede de Vara Federal, não pode haver declínio de competência, por se tratar de competência de natureza relativa. O art. 109, §3º, da CF/88 c/c a nova redação do art. 15, III, da Lei 5.010/66 concede uma faculdade ao segurado, o qual opta por ajuizar a demanda previdenciária no local de sua preferência caso possua domicílio em comarca distante a mais de 70 km de sede de Vara Federal. Nos termos da Súmula 33, do STJ, a “incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”. Esse é o entendimento antigo e pacífico da jurisprudência. Confira:
CONFLITO DE COMPETENCIA – INCOMPETENCIA RELATIVA – O JUIZ NÃO PODE, DE OFICIO, DECLINAR DA COMPETENCIA QUANDO SE TRATA DE INCOMPETENCIA RELATIVA. NECESSARIA A PROVOCAÇÃO DA PARTE.”
(CC 1506 DF, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/11/1990, DJ 19/08/1991, p. 10974)
Por fim, cabe registrar que o Conselho da Justiça Federal editou a Resolução nº 603/2019 reproduzindo recomendação semelhante para a manutenção das ações, em fase de conhecimento ou de execução, ajuizadas anteriormente a 1º de janeiro de 2020, no Juízo Estadual, ainda que situado em distância inferior a 70 Km. Vejamos:
Art. 4º. As ações, em fase de conhecimento ou de execução, ajuizadas anteriormente a 1º de janeiro de 2020, continuarão a ser processadas e julgadas no juízo estadual, nos termos em que previsto pelo § 3º do art. 109 da Constituição Federal, pelo inciso III do art. 15 da Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1965, em sua redação original, e pelo art. 43 do Código de Processo Civil.
Muito bem, queridos leitores e aluno(as) do Gran! Espero ter ajudado no entendimento desse tema. Continuo à disposição para quaisquer dúvidas. Vamos seguindo em frente! Com força, determinação e muita disciplina (a “mãe” de todas as virtudes).
Fraternal abraço,
Frederico Martins.
Juiz Federal
Professor do Gran Cursos
@prof.fred_martins
[1] https://www.cjf.jus.br/atlas/1ahist.htm
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