Afinal, o reconhecimento de pessoas é uma regra ou mera recomendação?

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28 de março5 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo?

Hoje falaremos sobre um dos temas mais controvertidos dentro do tema “prova criminal” nos últimos anos. Refiro-me ao meio de prova legalmente chamado de reconhecimento de pessoas.

Trata-se de um meio de prova típico, uma vez que sua procedimentalização encontra exaustivamente delineada no art. 226 do Código de Processo Penal. Vejamos:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Entretanto, a partir de 2015, as Turmas Criminais do Superior Tribunal de Justiça passaram a identificar que o descumprimento ou inobservância do procedimento acima referido não conduziria ao reconhecimento de nulidade da diligência probatória. Isso porque, conforme diversas decisões anotavam, as disposições ali contidas ali contidas configurariam apenas uma verdadeira “recomendação legal”, e não uma exigência absoluta. Destarte, o ato seria válido ainda que perpetrado de forma diversa da lei[1].

Esse panorama passou a começar a ser alterado no ano de 2020, especialmente com o julgamento do HC 598.886/SC, por parte da 6ª Turma do STJ. À ocasião, o Ministro Rogério Schietti trouxe à baila inúmeras e importantes ponderações. Segundo o seu voto, a partir de

estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador.  Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva.

Diante dessa análise, os demais Ministros da 6ª Turma firmaram importante conclusões, abaixo esquematizadas:

(i) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime;

(ii) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;

(iii) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento;

(iv) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s)[2] ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo[3].

Posteriormente a esse julgado, que marcou a mudança de entendimento da 6ª Turma, foi a vez da 5ª Turma do mesmo STJ seguir semelhante trajetória. Segundo o Colegiado, uma reflexão aprofundada sobre o tema, com base em uma compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e precisa, leva a concluir que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico ou presencial) efetuado pela vítima, em sede inquisitorial, não constitui evidência segura da autoria do delito, dada a falibilidade da memória humana, que se sujeita aos efeitos tanto do esquecimento, quanto de emoções e de sugestões vindas de outras pessoas que podem gerar “falsas memórias”, além da influência decorrente de fatores, como, por exemplo, o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor; o trauma gerado pela gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos); estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo, etnia etc.). Diante da falibilidade da memória seja da vítima seja da testemunha de um delito, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o reconhecimento presencial de pessoas efetuado em sede inquisitorial devem seguir os procedimentos descritos no art. 226 do CPP, de maneira a assegurar a melhor acuidade possível na identificação realizada[4].

Especificamente sobre o reconhecimento fotográfico, anotou-se que sua serventia seria apenas como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível. E, no caso de uma ou ambas as formas de reconhecimento terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou total) dos preceitos do art. 226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do rito processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se revelará incapaz de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de prova, sem corroboração do restante do conjunto probatório, produzido na fase judicial.

Recentemente, já em 2022, tivemos um “novo capítulo” da evolução do tema, desta feita a partir do Supremo Tribunal Federal. De acordo com o sufragado pela 2ª Turma, a desconformidade ao regime procedimental determinado no art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios, justificando-se eventual condenação somente se houver elementos independentes para superar a presunção de inocência. O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa.

A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas[5].

Tema importantíssimo e que está na ordem do dia para a sua prova!

Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido.

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

[1] STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 1665453/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 02/06/2020.

[2] O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.

[3] HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020

[4] HC 652.284/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/04/2021, DJe 03/05/2021

[5] RHC 206846/SP, relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 22.2.2022

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