Alteração de entendimento no STJ: o reconhecimento de pessoas feito pela vítima durante a investigação criminal sem observância da regra do art. 226 do CPP não se revela evidência segura da autoria delitiva.

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07 de maio6 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo?

Falaremos hoje acerca de um tema importantíssimo e que vem sendo alterado pelas Turmas Criminais do Superior Tribunal de Justiça. Refiro-me ao rigor da observância dos parâmetros legais para o reconhecimento de pessoas no processo penal, previsto no art. 226 do CPP[1]. Dentre esses regramentos, podemos destacar a necessidade de (i) prévia descrição da pessoa que deverá ser reconhecida, (ii) a colocação, se possível, da pessoa a ser reconhecida ao lado de outras a ela semelhantes, (iii) a lavratura de auto pormenorizada da diligência, entre outras formalidades.

Feitas essas observações, a grande celeuma a ser apreciada se dá em relação à OBRIGATORIEDADE de observância dessas previsões legais. Dito de outra forma, caso estejamos diante de um caso concreto em que esses dispositivos NÃO FORAM observados, estaremos diante de uma nulidade?

Antes de analisar o entendimento dos Tribunais Superiores, vale consignar que – particularmente – entendo e defendo a posição trazida por parcela da doutrina no sentido de que a violação às previsões do artigo 226 do CPP deve ensejar o reconhecimento de nulidade! Na esteira das lições de AURY LOPES JR, “trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais”. O professor ainda afirma que eventuais e arbitrárias simplificações desse procedimento constitui um desprezo à formalidade do ato probatório, atropelando as regras do devido processo e, principalmente, violando o direito de não fazer prova contra si mesmo. Por mais que os tribunais brasileiros façam vista grossa para esse abuso, argumentando às vezes em nome do “livre convencimento do julgador”, a prática pode ensejar nulidade”.

Vou dar um exemplo para tentar ilustrar um PÉSSIMO hábito presente no cotidiano forense. Amiúde, o juiz ou o promotor viram para a vítima ou para uma testemunha que está sendo ouvida e faz a célebre frase: “você reconhece alguém nessa sala de audiências que seria o autor do delito ora analisado”? E ato contínuo há a indicação do réu (que está no lugar de réu).

Pronto! Chegamos ao ponto fundamental! Essa atuação não respeita, claramente, o artigo 226 do CPP, mas deve configurar nulidade? Quando analisamos alguns precedentes mais antigos (não de há muito tempo), a 6ª Turma do STJ asseverava que “a inobservância das formalidades legais para o reconhecimento pessoal do acusado NÃO ENSEJA NULIDADE, POR NÃO SE TRATAR DE EXIGÊNCIA, MAS APENAS RECOMENDAÇÃO, sendo válido o ato quando realizado de forma diversa da prevista em lei, notadamente quando amparado em outros elementos de prova”[2]. No mesmo sentido, entendimentos da 5ª Turma advogando justamente que “o artigo 226, do Código de Processo Penal, encerra UMA RECOMENDAÇÃO E NÃO UMA EXIGÊNCIA A SER SEGUIDA, em relação ao procedimento para o reconhecimento de pessoas, conforme assente entendimento deste Tribunal”[3].

Conforme registrado, apesar de alguma resistência de parcela da doutrina, o fato é que esse entendimento que consagrava o procedimento do art. 226 do CPP para fins de reconhecimento de pessoas como uma MERA RECOMENDAÇÃO prevaleceu durante muito tempo como norte interpretativo nos Tribunais Superiores.

Entretanto, no ano de 2020, o cenário começou a se alterar. No julgamento no HC 598.886/SC, a 6ª Turma do STJ concluiu que (i) o reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; (ii) à vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; (iii) pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; (iv) o reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo[4].

De acordo com o Ministério Rogério Schietti, de acordo com estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis, razão pela qual a observância do procedimento edificado em lei deve ser rigoroso e atento, de forma a reduzir as chances de equívocos. Com base nessa realidade, concluiu-se ser, portanto, necessário adotar um novo rumo na compreensão dos Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas, não mais se podendo referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças.

Bacana, Pedro! Mas ainda remanesce a divergência com a 5ª Turma do STJ?

Eis a recentíssima novidade! ATENÇÃO! Em julgamento realizado no início de maio de 2021, ao apreciar a ordem de HC nº 652284/SC, a 5ª Turma do STJ, anuindo ao entendimento já consagrado na 6ª Turma, anotou que o reconhecimento fotográfico ou presencial feito pela vítima na fase do inquérito policial, sem a observância dos procedimentos descritos no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), não é evidência segura da autoria do delito. Para o colegiado, tendo em conta a ressalva contida no inciso II do artigo 226 – segundo o qual a colocação de pessoas semelhantes ao lado do suspeito deve ser feita sempre que possível –, eventual impossibilidade de seguir o procedimento precisa ser justificada, sob pena de invalidade do ato. De acordo com o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, o reconhecimento fotográfico do suspeito é uma prova inicial, que deve ser ratificada pelo reconhecimento presencial e, mesmo havendo confirmação em juízo, não pode servir como prova única da autoria do crime.

Conforme se extrai da ementa do referido precedente, uma reflexão aprofundada sobre o tema, com base em uma compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e precisa, leva a concluir que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico ou presencial) efetuado pela vítima, em sede inquisitorial, não constitui evidência segura da autoria do delito, dada a falibilidade da memória humana, que se sujeita aos efeitos tanto do esquecimento, quanto de emoções e de sugestões vindas de outras pessoas que podem gerar “falsas memórias”, além da influência decorrente de fatores, como, por exemplo, o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor; o trauma gerado pela gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos); estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo, etnia etc.). Diante da falibilidade da memória seja da vítima seja da testemunha de um delito, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o reconhecimento presencial de pessoas efetuado em sede inquisitorial devem seguir os procedimentos descritos no art. 226 do CPP, de maneira a assegurar a melhor acuidade possível na identificação realizada. Tendo em conta a ressalva, contida no inciso II do art. 226 do CPP, a colocação de pessoas semelhantes ao lado do suspeito será feita sempre que possível, devendo a impossibilidade ser devidamente justificada, sob pena de invalidade do ato.

O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível. E, no caso de uma ou ambas as formas de reconhecimento terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou total) dos preceitos do art. 226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do rito processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se revelará incapaz de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de prova, sem corroboração do restante do conjunto probatório, produzido na fase judicial.

Dessa maneira, evidencia-se uma alteração significativa dos rumos da jurisprudência do STJ, com a uniformização da 5ª e 6ª Turma da Corte advogando a superação da ideia de “mera recomendação” e entendimento atual de necessária observância do procedimento edificado no art. 226 do CPP para legitimação e validade do reconhecimento de pessoas como prova apta a convencer acerca da autoria delitiva.

Tema importantíssimo!

Espero que tenham gostado!

Vamos em frente.

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

[1] Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

 

[2] HC 278.542/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta   Turma, DJe 18/08/2015.

[3] AgRg no REsp 1444634/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 01/06/2017.

[4] HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020.

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