Causas suspensivas trazidas pela Lei n. 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) e o Direito Penal Militar

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27 de maio7 min. de leitura

A Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, trouxe ao art. 116 do Código Penal duas causas de suspensão da prescrição, a saber, a pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis (inciso III do art. 116 do CP), e enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal (inciso IV do art. 116 do CP).

Como ensinam Estefam e Gonçalves, o “Supremo Tribunal Federal firmara entendimento no sentido de que, se o prazo prescricional fosse, em tese, atingido durante a tramitação de recurso especial ou extraordinário, não poderia ser declarada, de imediato, a extinção da punibilidade, pois, se o recurso não fosse admitido por falta dos requisitos legais, considerar-se-ia que o acórdão (decisão de 2ª instância) havia transitado em julgado antes da interposição do recurso ao tribunal superior. A não admissão do recurso especial ou extraordinário em tais casos teria consequência semelhante à de sua própria inexistência”[1].

Em outros termos, interposto recurso extraordinário, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal, enquanto não julgado, não se declarava a prescrição, pois, em caso de inadmissibilidade, retornava-se à data de trânsito em julgado do acórdão que antecedeu o recurso. Agora, há a causa de suspensão expressa no art. 116, inciso III, do CP, valendo dizer que “uma vez interposto recurso especial ou extraordinário, o prazo prescricional deixa de correr. Se o recurso, futuramente, não for admitido pela falta dos requisitos legais, considerar-se-á ter havido trânsito em julgado, descontando-se o prazo da suspensão. (…). Com a nova regra temos as seguintes situações: interposto o recurso especial ou extraordinário, a prescrição fica suspensa. Se o recurso não for admitido pela falta de algum dos requisitos legais, a decisão anterior transitará em julgado, não se computando o prazo de suspensão. Admitido o recurso especial ou extraordinário pela presença dos requisitos legais, a prescrição é computada normalmente desde a interposição destes recursos, ainda que a Corte Superior negue provimento ao mérito do recurso”[2].

Aplica-se a mesma lógica aos embargos de declaração.

Poderíamos também trasladar essa regra de suspensão para o Direito Penal Militar?

A resposta não é tão simples como pode parecer.

De partida, óbvio, não se pode trazer a causa suspensiva sem a previsão expressa no Código Penal Militar, sob pena de haver a analogia in malam partem.

Por outro lado, a posição do Supremo Tribunal Federal é anterior à alteração do art. 116 do CP, ou seja, a concepção de não atingimento da prescrição diante de recurso extraordinário ou especial inadmitidos – que traz a mesma consequência da suspensão do prazo prescricional –, não estava arrimada em texto legal nesse sentido, portanto, a mesma compreensão pode ser levada ao Direito Penal Castrense, ainda que não se tenha a estrita previsão legal.

Como paradigma no Supremo Tribunal Federal, entre outros, tome-se o ARE n. 737.485 AgR-ED/SP, rel. Min Dias Toffoli, j. 17/03/2015:

Embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Matéria criminal. Inexistência de hipótese autorizadora da oposição dos embargos (RISTF, art. 337). Alegada prescrição da pretensão punitiva estatal. Matéria de ordem pública, que pode ser arguida e reconhecida a qualquer tempo. Artigo 61 do Código de Processo Penal. Não ocorrência. Trânsito em julgado que se aperfeiçoou em momento anterior. Recurso extraordinário indeferido na origem, por ser inadmissível. Ausência de óbice à formação da coisa julgada. Precedentes de ambas as Turmas. Rejeição dos embargos.

Inexiste na espécie hipótese autorizadora da oposição do recurso declaratório, conforme previsto no art. 337 do Regimento Interno da Corte.

A prescrição em direito penal, em qualquer de suas modalidades, é matéria de ordem pública e, por isso, pode ser arguida e reconhecida a qualquer tempo (art. 61 do Código de Processo Penal).

Tendo por base a jurisprudência da Corte de que o indeferimento dos recursos especial e extraordinário na origem – porque inadmissíveis – e a manutenção dessas decisões pelo STJ não têm o condão de empecer a formação da coisa julgada (HC nº 86.125/SP, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 2/9/05), o trânsito em julgado da condenação do ora embargante se aperfeiçoou em momento anterior à data limite para a consumação da prescrição, considerada a pena em concreto aplicada.

Embargos de declaração rejeitados”.

A mesma concepção foi assimilada na Justiça Castrense, como se extrai dos seguintes julgados:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. INOCORRÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INDEFERIDO NA ORIGEM. DECISÃO MANTIDA NO STF. INOCORRÊNCIA DA COISA JULGADA. PRESCRIÇÃO EXECUTÓRIA. ART. 126, § 1º, ALÍNEA “A”, do CPM. CONTAGEM INICIAL, TRÂNSITO EM JULGADO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. O Supremo Tribunal Federal entende que os “recursos especial e extraordinário indeferidos na origem, porque inadmissíveis, em decisões mantidas pelo STF e pelo STJ, não têm o condão de empecer a formação da coisa julgada” (HC nº 86.125/SP, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 2/9/05). Nos termos do art. 126 do CPM “a prescrição da execução da pena privativa de liberdade ou da medida de segurança que a substitui (art. 113) regula-se pelo tempo fixado na sentença e verifica-se nos mesmos prazos estabelecidos no art. 125, do CPM.” O termo inicial para a contagem da prescrição executória começa a correr do dia em que passa em julgado a sentença condenatória. Recurso provido. Prescrição executória reconhecida de ofício. Decisão unânime (STM, RSE n. 100-12.2017.7.11.0211, rel. Min. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, j. 08/08/2017).

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INADMITIDO NÃO OBSTA A FORMAÇÃO DA COISA JULGADA. PROVIMENTO. UNÂNIME. O trânsito em julgado para fins de reconhecimento da prescrição punitiva em casos de interposição de recursos extraordinários inadmitidos retroage, em virtude do juízo negativo de admissibilidade, ao momento em que restou esgotado o prazo legal de interposição das espécies recursais não admitidas. Recurso provido. Decisão unânime (STM, RSE n. 15-35.2017.7.01.0201, rel. Min. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, j. 22/11/2017).

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. LIMINAR. EFEITO SUSPENSIVO. INDEFERIMENTO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA INTERCORRENTE. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INADMISSÃO NA ORIGEM. AUSÊNCIA DO LAPSO TEMPORAL ALEGADO PELA DEFESA. DESPROVIMENTO. DECISÃO UNÂNIME. O art. 516, parágrafo único, do CPPM, é categórico ao afirmar que os recursos em sentido estrito não têm efeito suspensivo, “salvo os interpostos das decisões sobre matéria de competência, das que julgarem extinta a ação penal, ou decidirem pela concessão do livramento condicional”, o que, à evidência, não é o caso dos presentes autos, porquanto se trata de RSE interposto com base no art. 516, alínea “l”, do CPPM. A interposição de Recurso Extraordinário, inadmitido na origem, não tem o condão de impedir a formação da coisa julgada. Não há que falar em prescrição intercorrente, considerando que, entre a data da publicação da Sentença condenatória e da interposição do Recurso Extraordinário, não houve transcurso temporal superior ao prazo alegado pela Defesa. O processo tramitou no âmbito das duas instâncias, dentro dos limites previstos em lei. Recurso não provido. Decisão Unânime (STM, RSE n. 7001046-82.2018.7.00.0000, rel. Min. Lúcio Mário de Barros Góes, j. 02/05/2019).

Com essa visão, note-se, haverá a necessária reação àqueles recursos meramente procrastinatórios que, sem preencher os requisitos de admissibilidade, buscavam apenas alcançar a prescrição.

A outra causa de suspensão trazida pelo “Pacote Anticrime” está ligada ao Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), hoje trazido no art. 28-A do Código de Processo Penal comum.

A compreensão majoritária na Justiça Militar – especialmente na da União – é a de não aplicação do ANPP, justamente pelo fato de não ter a Lei n. 13.964/2019 alterado o Código de Processo Penal Militar, mas apenas o Código de Processo Penal. Nesse sentido:

APELAÇÃO. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ART. 312 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CERTIFICADO DE REGISTRO. CONDENAÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. DEVOLUÇÃO AMPLA DA QUESTÃO LITIGIOSA. PRELIMINAR DE NULIDADE POR INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. REJEIÇÃO. UNANIMIDADE. PRELIMINAR DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. REJEIÇÃO. UNANIMIDADE. MÉRITO. AUSÊNCIA DE DOLO NA CONDUTA. NÃO ACOLHIMENTO. AUTORIA, MATERIALIDADE E CULPABILIDADE COMPROVADAS. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. NÃO ACOLHIMENTO. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. UNANIMIDADE.

O Princípio tantum devolutum quantum appellatum limita a atuação do Tribunal ad quem, condicionando-a à insurgência contida nas razões ou nas contrarrazões recursais.

Consoante a dicção do art. 124 da Constituição Federal, compete à Justiça Militar da União o processamento e o julgamento dos crimes militares definidos pelo Código Penal Militar, cabendo à legislação ordinária estabelecer a sua organização, o seu funcionamento e a sua competência.

Tendo sido o Acusado denunciado pela prática delituosa prevista no art. 312 do Código Penal Militar, consoante a dicção do artigo 9º, inciso III, alínea ‘a’, do Estatuto Repressivo Castrense, c/c o artigo 30, inciso I-B, da Lei de Organização Judiciária Militar – LOJM, compete a esta Justiça Especializada o processamento e o julgamento do Réu, a ser levado a efeito pelo Juiz Federal da Justiça Militar.

Preliminar rejeitada. Decisão unânime.

O alcance normativo do Acordo de Não Persecução Penal está circunscrito ao âmbito do processo penal comum, não sendo possível invocá-lo subsidiariamente ao Código de Processo Penal Militar, sob pena de violação ao Princípio da Especialidade, uma vez que não existe omissão no Diploma Adjetivo Castrense.

Somente a falta de um regramento específico possibilita a aplicação subsidiária da legislação comum, sendo impossível mesclar-se o regime processual penal comum e o regime processual penal especificamente militar, mediante a seleção das partes mais benéficas de cada um deles.

Preliminar rejeitada. Decisão unânime.

[…]. (STM, Apelação n. 7001106-21.2019.7.00.0000, rel. Min. Carlos Vuyk de Aquino, j. 20/02/2020) (g.n.).

Na mesma esteira, encontramos o Habeas Corpus n. 7000374-06.2020.7.00.0000, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 26/08/2020, destacando-se a declaração de voto do Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz no sentido de restar claro que “não houve omissão ou mesmo esquecimento por parte do legislador em não tratar do Acordo de Não Persecução Penal no Código de Processo Penal Militar, mas de fato, um silêncio eloquente, o que indica a intenção clara de afastar a possibilidade de aplicação do instituto no âmbito da Justiça Castrense”. A Ementa do Acórdão restou com a seguinte redação:

HABEAS CORPUS. CRIME CAPITULADO NO ART. 290 DO CPM. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO. PGJM. REJEIÇÃO. UNANIMIDADE. MÉRITO. ART. 28-A DO CPP. INSTITUTO DA NÃO PERSECUÇÃO PENAL. NEGATIVA DE APLICAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. INAPLICABILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM DE HABEAS CORPUS. UNANIMIDADE.

I – Rejeita-se a preliminar de não conhecimento do Habeas Corpus, suscitada pela PGJM, considerando que a questão relativa à transação penal comporta arguição por meio do mencionado remédio constitucional. Decisão unânime.

II – O instituto do acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, não se aplica aos crimes militares previstos na legislação penal militar, tendo em vista sua evidente incompatibilidade com a Lei Adjetiva castrense, opção que foi adotada pelo legislador ordinário, ao editar a Lei nº 13.964, de 2019, e propor a sua incidência tão somente em relação ao Código de Processo Penal comum.

III – Inexiste violação dos preceitos constitucionais, insculpidos no art. 5º, caput, e incisos LIV e LXVIII, da Constituição Federal de 1988, e art. 467, “b” e “c”, do CPPM, uma vez que a negativa dos Órgãos judicantes da JMU, afastando a incidência do acordo de não persecução penal em relação aos delitos previstos na legislação penal militar, por óbvio, não pode ser considerada violação de formalidade legal e tampouco se configura constrangimento ilegal em relação ao acusado.

IV – Ordem de Habeas Corpus denegada. Decisão unânime” (STM, Habeas Corpus n. 7000374-06.2020.7.00.0000, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 26/08/2020).

Observe-se, por fim, que no âmbito das Justiças Militares dos Estados a compreensão não está sedimentada pelo não cabimento, sendo possível encontrar decisões favoráveis, como na Apelação Criminal n. 581-63.2018.8.24.0091, do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, julgada em 29 de junho de 2020, sob relatoria do Desembargador Sérgio Rizelo”.

Como se percebe, sem a alteração legislativa no CPPM e no CPM – inclusive sendo importante que a suspensão da prescrição seja prevista, para evitar equívocos,  nos dois diplomas, diferentemente da legislação penal (e processual penal) comum, em que o ANPP veio previsto no CPP e a suspensão da prescrição no CP, fruto da Lei n. 13.964/2019 – não se mostra possível a assimilação do ANPP na persecução penal militar.

Entretanto, é preciso consignar que, no âmbito das Justiças Militares Estaduais, o ANPP já foi admitido, como, por exemplo na Apelação Criminal n. 581-63.2018.8.24.0091, do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, julgada em 29 de junho de 2020, sob relatoria do Desembargador Sérgio Rizelo, e, neste caso, a suspensão da prescrição se torna um problema, porquanto admitir a suspensão da prescrição, aplicando o art. 28-A por analogia significaria, em consequência, aplicar a causa de suspensão do art. 116, IV, do CP, também por analogia, importando em analogia, neste último caso, in malam partem, que deve ser afastada em Direito Penal.

[1] ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal (Parte Geral) esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 411.

[2] ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal (Parte Geral) esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 411.

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