Crime Militar praticado por militares inativos e por civis: teorias monista e dualista

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16 de janeiro5 min. de leitura

Ao estudarmos a tipicidade no Direito Penal Militar, tem-se no art. 9º do Código Penal Militar dispositivo de fundamental importância para distinguir o crime comum do crime militar, particularmente nos casos em que uma conduta esteja tipificada de maneira idêntica no CPM e na legislação penal comum ou apenas nesta.

O art. 9º do CPM complementa a tipicidade dos crimes militares em tempo de paz, e possui três incisos, que devem ser bem compreendidos, sob pena de prejudicar a análise do crime militar.

O inciso III está direcionado apenas aos casos em que o crime for praticado por militares inativos, entenda-se militares da reserva ou reformados, ou por civis, mas se discute se essas pessoas poderiam também cometer crime militar em outra construção.

Há duas posições sobre essa discussão. Por um veio, há quem sustente que o civil e os inativos apenas podem praticar crime militar por aplicação do inciso III, o que rotularemos como teoria monista. Por outra senda, há quem sustente que, além do inciso III, o inciso I pode respaldar diretamente o crime militar praticado por civil ou por militar inativo, visão que chamamos de teoria dualista.

Apresentada a discussão, impõe-se exibir o texto da lei, naquilo que interessa ao raciocínio construído:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – […].

III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.       

 

Pois bem, pela teoria monista, o inciso I aplica-se apenas às condutas praticadas por militares da ativa, reservando-se unicamente o inciso III para a prática de crime militar por inativos ou por civil.

Argumenta-se que, se o inciso III enumera quem são os sujeitos ativos aos quais é destinado (militar da reserva, militar reformado e civil), por exclusão, os incisos que o antecedem são destinados ao militar da ativa e ao assemelhado, este figura inexistente no Direito Penal Militar em verve atual.

Em adição, no inciso III, há expressamente o trecho “considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II”, o que comanda o entendimento segundo o qual quaisquer dos crimes praticados pelos inativos ou pelo civil, deve passar pelo inciso III, não importando se se trate de um crime apenas existente no CPM, ou nele previsto de maneira diversa, conforme dispõe o inciso I, ou se o crime esteja no CPM e na legislação penal comum, ou apenas nesta, como impõe o inciso II.

Por esses argumentos, entendemos como correta a teoria monista de subsunção de condutas de inativos e civis como crime militar, ou seja, apenas uma forma de isso ocorrer: pelo inciso III do art. 9º do CPM.

Entretanto, a expressão “qualquer que seja o agente” grafado no inciso I tem levado alguns operadores do Direito Penal Militar a sustentarem que também os inativos (militar da reserva e reformado) e civis podem ser enquadrados no inciso I, além, claro no inciso III, por expressa previsão. Tem-se a teoria dualista.

Esta teoria, adicione-se, ganhou fôlego com a edição da Lei n. 13.774/18, que alterou a Lei n. 8.457/92, que organiza a Justiça Militar da União. Inaugurando a possibilidade de julgamento monocrático na Justiça Militar da União em tempo de paz, a redação do atual art. 30 dispõe:

 

Art. 30. Compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente:             (Redação dada pela Lei nº 13.774, de 2018)

I – decidir sobre recebimento de denúncia, pedido de arquivamento, de devolução de inquérito e representação;

I-A – presidir os Conselhos de Justiça;                (Incluído pela Lei nº 13.774, de 2018)

I-B – processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo;                (Incluído pela Lei nº 13.774, de 2018)

 

Note-se que no inciso I-B, ao delinear a competência monocrática do juiz federal da Justiça Militar (antigo Juiz-Auditor), a lei menciona expressamente o civil tendo sua conduta subsumida como crime militar tanto no inciso I como no inciso III do art. 9º do CPM.

Não demorou para que os adeptos dessa teoria dualista (duas formas de o civil e o inativo terem sua conduta subsumida como crime militar, pelos incisos I e III do art. 9º do CPM), ganharem o combustível que desejavam.

Mas qual seria a diferença em adotar uma teoria monista ou dualista neste caso?

Bem simples!

Em se adotando uma teoria monista, em que sempre deve haver subsunção dos crimes praticados por inativos e civis no inciso III, alguns crimes militares seriam impraticáveis por essas pessoas, já que, primeiro, o crime militar pelo inciso III deve ser contra a instituição militar, e, segundo, deve, além disso, encontrar subsunção em uma das alíneas desse inciso. Por outro lado, com a teoria dualista, subsumindo diretamente a conduta desses autores no inciso I, essas “amarras” não existiriam, podendo qualquer crime que esteja apenas no CPM ou nele capitulado de forma diversa, ser perpetrado por civil ou inativo sem nenhuma cerimônia.

Vamos a um exemplo, para ficar mais claro.

No crime de falso testemunho no CPM, exige-se que o fato ocorra em inquérito policial militar, processo judicial militar etc., enfim, que haja uma afronta à promoção de Justiça Militar em sentido lato. Vejamos o artigo:

Falso testemunho ou falsa perícia

Art. 346. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, em inquérito policial, processo administrativo ou judicial, militar:

Pena – reclusão, de dois a seis anos.

 

Por essa especificidade, o crime é distinto do crime previsto no art. 342 do Código Penal comum, o que permite o enquadramento do art. 346 do CPM como crime definido de modo diverso na lei penal comum, portanto, crime do inciso I do art. 9º do CPM.

Pois bem, imagine um civil que cometa falso testemunho perante o juízo militar de uma auditoria da JMU. Ao cometer o delito ele estará afrontando a Justiça Militar (Poder Judiciário) e não a instituição militar (Poder Executivo), assim como não haverá nenhuma alínea do inciso III do art. 9º do CPM que subsuma a conduta que não foi, ressalte-se, contra a ordem administrativa militar, inserta no Poder Executivo.

Nestas circunstâncias, para a teoria monista, não haveria crime militar, por não encontrar subsunção no inciso III; para a teoria dualista, como é possível a prática de crime militar por civil tanto no inciso III como no inciso I (“qualquer que seja o agente”), haveria crime militar de falso testemunho.

Voltando à discussão das duas teorias, a visão dualista com o reforço da Lei n. 13.774/18 parece equivocada por algumas razões.

Primeiro, a alteração foi na Lei de Organização da Justiça Militar da União (LOJMU) e não no Código Penal Militar, o que significa dizer que a compreensão dada se refere a outro ramo do Direito, que não o Direito Penal Militar.

Segundo, justamente por ser na LOJMU, a alteração, frise-se, não alcançou as Justiças Militares dos Estados, de maneira que aceitar a teoria dualista seria admitir dois conceitos de crime militar para o inativo e para o civil, mas não por previsão múltipla da lei, em que duas formas seria grafadas no texto legal, e sim de acordo com o âmbito de aplicação do Código Penal Militar, ou seja, no âmbito federal o civil poderia cometer crime militar diretamente no inciso I, enquanto no âmbito da Justiça Militar Estadual não.

Terceiro e mais importante, aceitar a teoria dualista pela alteração da LOJMU seria fracionar a compreensão para civis e inativos o que o CPM não faz. Note-se que a alteração da LOJMU foi apenas em relação ao julgamento de civis, ao mencionar expressamente o inciso I do art. 9º do CPM no inciso I-B do art. 30 da LOJMU. Dessa maneira, utilizando esta alteração como fundamento, o civil, previsto expressamente no inciso I-B do art. 30, poderia praticar crime diretamente no inciso I, mas o militar da reserva ou reformado, não mencionados no inciso I-B do art. 30, não. Perde-se, por completo, a lógica de sustentação da teoria dualista.

Pelo exposto, firmamos nosso entendimento – embora, na prática, em caso pretérito, já tenhamos divergido – de que a única possibilidade de um civil ou de um militar inativo praticar crime militar é por subsunção ao inciso III do art. 9º do CPM, e suas alíneas.

Claro, não custa alertar, por fim, que a discussão sobre crime militar praticado por civil não possui relevância nas Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal, que, por imposição do § 4º do art. 125 da Constituição Federal, julga apenas militares dos Estados e do Distrito Federal.

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