Direito da Sociedade – Eficácia direta e prima facie dos direitos fundamentais na esfera privada

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21 de fevereiro5 min. de leitura

Caras e caros colegas,

Ainda sobre a relação entre os direitos fundamentais e o direito privado, hoje faremos uma resenha do texto “a influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro”, de Ingo Wolfgang Sarlet, texto debatido na disciplina de Introdução ao Direito Público, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob a regência da Profa. Dra. Ana Gouveia Martins.

Os direitos fundamentais são multifuncionais e heterogêneos. Essas características acabam por gerar diversos desafios e controvérsias em relação à sua compreensão e aplicação, além de gerar um complexo pano de fundo de discussão acerca dos efeitos dessa aplicação na seara do Direito Privado e das relações entre particulares.

Nesse contexto, Ingo parte da premissa de que os direitos fundamentais são constantemente violados no âmbito das relações privadas, com maior intensidade em países periféricos, como é o caso do Brasil. Ele ressalta, ainda, que a sua concepção de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas abarca também os direitos sociais, fundados na dignidade da pessoa humana (SARLET, 2007, p. 123).

Antes de detalhar o tema, Sarlet faz uma crítica à terminologia mais utilizada pela doutrina e jurisprudência brasileiras: “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, pois o desequilíbrio econômico e social entre alguns atores privados cria uma verticalidade na relação, “por vezes até mais evidente do que a encontrada nas relações entre os particulares e o Estado” (SARLET, 2007, p. 126). A terminologia proposta pelo autor é eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais, como veremos adiante.

Com fundamento no art. 5º, § 1º (aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais), tanto a doutrina quanto o STF defendem a “eficácia e a efetividade dos direitos fundamentais em todos os setores da ordem jurídica e da vida social de um modo geral”, ou seja, reconhecem a “eficácia e aplicabilidade direta na esfera das relações entre particulares” (SARLET, 2007, p. 128).

Contestando Canaris, que defende a eficácia em geral indireta dos direitos fundamentais, SARLET afirma que: “uma vinculação direta dos órgãos estatais no âmbito dos deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais não exclui a possibilidade de os particulares também estarem vinculados por determinados deveres de proteção, ainda que evidentemente não estatais, e que na esfera das relações entre particulares não exista pelo menos um dever de respeito e tolerância em relação aos direitos fundamentais dos demais sujeitos de direitos (…)” (SARLET, 2007, p. 129).

Assim, mesmo reconhecendo a complexidade do fenômeno, cuja compreensão exige que se considere a complexidade da matéria e se pressuponha a utilização de uma metodologia diferenciada, conforme aconselha Canotilho, Ingo afirma que: “partindo do pressuposto da existência tanto de uma convivência dialógica entre a vinculação dos órgãos estatais e dos particulares, quanto entre uma eficácia direta e indireta, seguimos sustentando que a resposta constitucionalmente adequada no caso do Brasil é no sentido de reconhecer uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais também na esfera das relações privadas” (SARLET, 2007, p. 131).

O fato de o legislador (ou o juiz) considerar os direitos fundamentais não exclui a possibilidade de efeitos direitos, sendo possível argumentar que, pelo fato de ocorrem violações aos direitos fundamentais nas relações privadas, o Estado possuiu o dever de proteção, em razão do monopólio da jurisdição (SARLET, 2007, p. 131-132).

Neste ponto, Sarlet não recomenda a adoção pelo Brasil da tese restritiva, segundo a qual apenas o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana se aplicaria diretamente, pois a CF não apresenta em seu texto essa restrição, ao contrário da Alemanha. Contudo, segundo esclarece: “ao se afirmar uma eficácia direta prima facie não se está a sustentar uma eficácia necessariamente forte ou mesmo absoluta, mas uma eficácia e vinculação flexível e gradual”, compreendendo os direitos fundamentais como “mandamentos de otimização” (SARLET, 2007, p. 132-133).

Após ressaltar a falta de sistematização doutrinária e jurisprudencial, Sarlet fala da tentativa de desenvolver alguns critérios que possibilitem a implementação da tese da eficácia direta, pautada nos já conhecidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Nesse contexto, há o critério do exercício do poder social, fundado na tese da assimetria das relações pela presença de um ator social privado poderoso. Segundo Sarlet, tal critério não é determinante para aplicação direta da constituição aos direitos fundamentais, servindo apenas como justificativa “da maior ou menor necessidade de efetivar os deveres de proteção do Estado, viabilizando eventual restrição (sempre proporcional) da autonomia privada do ator social ‘poderoso’ em benefício da parte mais frágil da relação” (SARLET, 2007, p. 134-135).

No âmbito da jurisprudência pátria, temos alguns exemplos da dimensão negativa da eficácia direta dos direitos fundamentais em relações privadas, vejamos alguns exemplos: i. HC 71.373-4 RS, que decidiu pela proibição da condução compulsória para teste de paternidade. Dignidade pessoal do investigado. Proporcionalidade: meio menos gravoso: inversão do ônus da prova e presunção relativa da paternidade (para proteção da dignidade da criança); ii. REx 161.243-6/DF, que decidiu pela aplicação do princípio da igualdade às relações privadas. Equiparação entre funcionários franceses e brasileiros da Air France; iii. REx 352.940/SP que declarou a constitucionalidade da penhora do imóvel do fiador, bastante criticada pelo autor, por desconsiderar o impacto da penhora sobre o devedor e sua família, prejudicando a dimensão defensiva do direito à moradia como direito individual. O STF apenas considerou o direito à moradia em escala mais ampla, ponderando sobre os prejuízos que a não penhora poderia trazer aos contratos de locação, com uma possível diminuição da oferta (SARLET, 2007, p. 135-139).

Também existem importantes atuações em que o Judiciário brasileiro adota a eficácia direta na sua dimensão positiva: i. REsp 158.728, que decidiu pela obrigação dos planos de saúde privados arcarem com tratamentos não previstos pelo contrato; ii. Apelação 9845 TJRJ, que decidiu pela necessidade de o empregador cobrir despesas de tratamento de um trabalho suspenso em virtude do seu problema de saúde; iii. Apelação 355/99 TJRJ, que decidiu pelo direito à educação, impedindo o cancelamento de matrícula de estudantes inadimplentes durante o ano letivo; iv. AI 478.911/RJ STJ, que decidiu pela impossibilidade de interrupção do fornecimento de água e energia por concessionárias (SARLET, 2007, p. 139-141).

A dimensão positiva não foi muito explorada pela doutrina brasileira, mas devemos reconhecer que os direitos sociais não se limitam a prestações estatais. Para aplicabilidade dos direitos sociais prestacionais às relações privadas é necessário, contudo, que se pondere entre a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, de um lado, e a autonomia privada ou outros direitos fundamentais, do outro. Neste contexto, Ingo ressalta que o princípio da solidariedade, que “implica deveres de solidariedade decorrentes da própria dignidade da pessoa”, tem sido utilizado como justificativa para uma eficácia de direitos a prestações em relação aos particulares (SARLET, 2007, p. 141).

Em síntese, para o autor os direitos fundamentais geram efeitos diretos prima facie no âmbito das relações privadas, tanto na sua dimensão negativa (uma abstenção, um não fazer) quanto na positiva (prestacional). Contudo, é necessário sistematizar os critérios e evitar os excessos, pois um dos efeitos colaterais dessa eficácia direta é a judicialização excessiva das relações sociais. Por essa razão, é imprescindível o desenvolvimento de uma metodologia para aplicação da proporcionalidade pelo Judiciário brasileiro (SARLET, 2007, p. 143).

Por hoje ficamos por aqui.

Sigamos sempre com foco, força e fé.

Até breve.

Referência

SARLET, Ingo Wolfgang. A influência dos direitos fundamentais no Direito privado: o caso brasileiro. In: AAVV, coord. António Pinto Monteiro, Jörg Neuner e Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos Fundamentais e Direito Privado: uma perspectiva de Direito Comparado. Coimbra: Almedina, 2007, págs. 111 e ss.

Chiara Ramos

Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito. 

 

 

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