Direito da Sociedade – Eficácia dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada: perspectiva do alemão Jöng Neuner

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01 de fevereiro5 min. de leitura

Caras e caros colegas,

Sabemos que, no contexto de uma sociedade mundial multicêntrica, o estudo comparado é de suma importância para lidar com os problemas hipercomplexos do cotidiano, sobretudo quando se trata dos direitos fundamentais. Por isso, hoje iremos mergulhar no direito comparado, fazendo uma resenha do texto “a influência dos direitos fundamentais no direito privado alemão“, de Jöng Neuner.

Inicialmente, Neuner ataca a ideia de plenitude hermética do ordenamento jurídico, concluindo que o direito privado não apresenta um fechamento funcional. Ou seja, existem lacunas e o juiz está obrigado ao desenvolvimento do direito, à integração dessas lacunas (NEUNER, 2007, p. 215-216).

Teorizando sobre o desenvolvimento dos direitos fundamentais, Neuner ressalta que as constituições do século XIX não vinculavam a atividade legislativa, muitos menos os direitos fundamentais eram tidos como direitos subjetivos diante do Poder Legislativo. Nesse contexto, o direito privado era materialmente prioritário (NEUNER, 2007, p. 217-218).

Já no século XX, as constituições sociais (Weimar, 1919) dotaram os direitos fundamentais de maior relevância jurídico-privada. A Constituição de Weimar, por exemplo, estendeu o direito à livre manifestação às relações laborais e empregatícias. Nesse contexto, a doutrina majoritária passou a entender os direitos fundamentais como direitos subjetivos públicos, sendo ventilada uma vinculação do legislativo aos direitos fundamentais, sobretudo no que se refere à igualdade (NEUNER, 2007, p. 218).

Nesse contexto, o Tribunal do Reich passou a recorrer à Constituição para a interpretação do direito privado, ainda de modo contido, sobretudo em razão de entender diversos dos direitos fundamentais previstos pela constituição como sendo enunciados programáticos, desprovidos de eficácia jurídica direta. Durante o Terceiro Reich, suspenderam-se os direitos fundamentais, o que durou até o final da Segunda Guerra. Em consequência, o constituinte de 1949 pôs os direitos humanos e fundamentais no topo da nova Constituição, vinculando de forma expressa os três poderes estatais, com a consequente ampliação da competência para o controle de constitucionalidade (NEUNER, 2007, p. 219).

Mas qual a relação entre os direitos fundamentais e o direito privados? Na Alemanha, vigoram duas teses principais: a tese da disparidade e a tese da identidade.

De acordo com a tese da disparidade, “os direitos fundamentais e o direito privado estão lado a lado e não guardam relação entre si, formando sistemas autárquicos” (NEUNER, 2007, p. 220), pois tratariam de objetos distintos, não havendo que se falar em concorrência ou primazia. Contudo, “assim como os status privado e público estão ligados, a autonomia privada também não se deixa apartar inteiramente da pública” (NEUNER, 2007,p. 221).

A tese da disparidade, pois, funda-se em delimitação puramente formal, o que a torna equivocada. Nas palavras de Neuner: “o direito privado não é, todavia, um sistema autárquico que, a partir de si, já produz e assegura todos valores fundamentais, antes pelo contrário, se encontra, com a Constituição e os direitos fundamentais, em uma mesma base conjunta de máximas jurídicas fundamentais” (NEUNER, 2007, p. 221).

a tese da identidade defende que os valores fundamentais da ordem privada foram absorvidos pela Constituição. Contudo, os conceitos constitucionais centrais, como o de propriedade, apenas se tornam compreensíveis considerando-se sua origem de direito privado. Ao mesmo tempo, as feições prévias de direito privado não podem abalar a autonomia da constituição.

Dito isso, Neuner conclui que “a primazia dos direitos fundamentais diante do código civil não é abalada do ponto de vista lógico-normativo, nem por meio de uma identidade, nem de uma disparidade” (NEUNER, 2007, p. 221-222).

A verdade é que a Constituição alemã pós-guerra declarou os direitos fundamentais como fundamento de toda comunidade humana, referindo-se a um regime de regulação supra-estatal, que vincularia, inclusive, a maioria constituinte. Assim, a lei fundamental relativiza “a vinculação à lei em favor de patamares mínimos de direitos humanos e leva em conta, nas palavras do tribunal constitucional federal, o conhecimento de que “direito e justiça não (estão) à disposição do legislador”, porquanto “justamente o período do regime nacional-socialista na Alemanha ensinou que também o legislador pode praticar injustiças”  (NEUNER, 2007, p. 223-224).

Nesse diapasão, os direitos humanos estabeleceriam os patamares mínimos diante do legislativo, protegendo tanto a autonomia privada quanto a autonomia coletiva, não havendo relação de primazia entre ambas (NEUNER, 2007, p. 224). Aqui, a relevante questão que se coloca é a força de atuação e aplicabilidade desses direitos na esfera privada. Dito de outra forma, haveria ou não eficácia horizontal dos direitos fundamentais?

Historicamente, os direitos fundamentais se opõem ao Estado, vedando a intervenção na relação direta Estado-cidadão. Além disso, seria imanente aos direitos fundamentais “uma função de mandamento de proteção, a qual leva em conta, em relação horizontal, o interesse de integridade dos cidadãos, e manda os órgãos estatais impedirem abusos por parte de particulares” (NEUNER, 2007, p. 227-228).

De acordo com a doutrina alemã majoritária, os direitos fundamentais também possuem uma dimensão social, orienta prestacionalmente. Neuner critica tal concepção material, afirmando que “o carregar e enriquecer destes direitos fundamentais com conteúdos sociais encerra consideráveis perigos e custa um elevado preço dogmático: primeiro, é abandonada a unidade da metodologia jurídica, porque e na medida em que se declara uma interpretação que passa por cima da lei como interpretação da Constituição. Como consequência ulterior, não é, sobretudo, suficientemente levado em consideração o ônus da argumentação, o qual é em princípio carregado por aquele que se desprende do teor literal da norma. Finalmente, corre perigo também a própria liberdade, quando interesses contrapostos não são explicitados, mas conduzidos conjuntamente de modo sincrético” (NEUNER, 2007, p. 231-232).

No que se refere aos direitos fundamentais sociais, estes  fundamentam deveres de proteção no direito privado, em princípio, apenas na medida que estiver eliminada uma realização estatal direta. Nesse contexto, o legislador tem limites em duas direções: de um lado, o princípio da proporcionalidade (proibição de excesso), de outro lado, a proibição de insuficiência, “a qual é fortemente limitada nos direitos prestacionais sociais pelo princípio da subsidiariedade” (NEUNER, 2007, p. 233).

Já no âmbito dos direitos fundamentais liberais, a proporcionalidade determina tanto a proibição de excesso quanto a de insuficiência. Nas palavras de Neuner: “a proibição de insuficiência não será, portanto, delimitada nesta constelação pelo princípio da subsidiariedade, com a consequência de que, por exemplo, à vítima de um boicote, ao não-fumador ou a outro lesado pelo ambiente caixa a mesma forte proteção jurídico-fundamental que ao exortador do boicote, ao fumador ou a outros emitentes” (NEUNER, 2007, p. 233). Em outras palavras, o autor nos fala da convivência das liberdades.

Em síntese, Neuner defende a eficácia jurídica direta apenas do núcleo da dignidade da pessoa humana. Fora desse estreito âmbito nuclear de direitos humanos, afirma o autor, “constituem os direitos fundamentais deveres de proteção. Com a doutrina dos deveres de proteção, deixa-se adequadamente manejar, no plano do direito privado, sobretudo a questão social e, ao mesmo tempo, a jurisprudência dos valores é posta, no plano jurídico-filosófico, sobre um fundamento democrático” (NEUNER, 2007, p. 235).

Por hoje, ficamos por aqui.

Sigamos sempre com foco, força e fé.

Até breve.


NEUNER, Jöng. A influência dos direitos fundamentais no Direito privado alemão, in AAVV, coord. António Pinto Monteiro, Jörg Neuner e Ingo Wolfgang Sarlet,  Direitos Fundamentais e Direito Privado – Uma perspectiva de Direito Comparado, Coimbra, Almedina, 2007.  pp. 213 a 235


Chiara Ramos

Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito. 


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