Há arte por toda parte?

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16 de agosto10 min. de leitura

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Raciocínio Lógico, Matemática Financeira, Informática, Gramática, Redação Oficial, Interpretação de Texto, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Penal, Direito Processual Penal… Arte.

– Eita, isso não acaba?

O pior é que não, principalmente se o cargo trouxer consigo uma gama de exigências de conhecimentos específicos; neste caso, inclui-se Regimento Interno, Conhecimentos Bancários, Física, Química, Biologia, Primeiros Socorros, entre outras diversas e possíveis matérias. Ou ainda, como tem sido habitual, cobrar que se redija uma redação. Nessa hora, as interrogações pairam no ar em festa.

– E o tempo para mim estudar tudo isso?… Ou seria para EU estudar tudo isso? Ai, ai… Acho que vou começar por Gramática…

A rotina de estudos de um concurseiro vem carregada de exigências de organização, paciência, perseverança e fé – sim, é preciso acreditar, senão, qual o motivo de se continuar, não é mesmo? Então, por que não colocamos algo a mais para apimentar essa salada de obrigações? Ou seria melhor dizer “para adoçar essa seleção de requisitos”? Do que eu estou falando? Ah, estou falando de poesia…

 

“De tudo ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto” (Vinícius de Moraes)

“O presente é tão grande, não nos afastemos. /Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (Carlos Drummond de Andrade)

“Que a mulher que amo seja pra sempre amada/ Mesmo que distante/ Pois metade de mim é partida/ A outra metade é saudade” (Ferreira Gullar)

“Quem um dia irá dizer que existe razão/ Nas coisas feitas pelo coração?/ E quem irá dizer que não existe razão?” (Renato Russo)

 

– Ok, ok! Agora vamos voltar ao estudo? Afinal, não posso perder meu tempo com asneiras, com tolices que não caem em prova!

Aí é que você se engana!

– Jura?

Sim. A Literatura – em prosa tanto quanto em poesia – sempre foi recorrente em provas para concurso. Quando os examinadores selecionam textos para criar questões, eles têm diante de si um universo de letras para escolher e, nesse universo, existe uma galáxia mágica repleta de encanto e ritmo, conhecida como a “Arte da Escrita”.

No final do século XIX, a Doutrina da Arte pela Arte definiu a Literatura como sendo arte e, por tal razão, só poderia ser encarada e analisada enquanto arte. Jean-Paul Sartre, por exemplo, filósofo francês no século seguinte, afirmou que “o poeta sente as palavras ou frases como coisas e não como sinais, e sua obra como um fim e não como um meio; como uma arma de combate”. E seu contemporâneo, o escritor André Gide, afirmou soberbamente que até uma Literatura ruim se faz com bons sentimentos. Então, já que estamos tentando definir isso, vamos usar as palavras de um dos mais renomados críticos literários que o Brasil teve, além de haver sido o ocupante da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras:

A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio. (COUTINHO, 1978, p. 9-10)[1]

Isso é tão lindo que me traz lágrimas aos olhos… (pausa para enxugar aquela que caiu sorrateira pelo canto esquerdo do olho direito).

            – A mim também, mas é de desespero! Eu também tenho de estudar ISSO?

Ai, nossa, para que usar o pronome demonstrativo com tanto ar de desprezo? Afinal, o tal isso é simplesmente o registro cultural escrito de sua nação, de seu povo, de seu planeta! É errado, muito errado, acreditar que os escritores são tão somente seres sentimentais e chorosos que passam seus dias derramando lágrimas em forma de letras, as quais, unidas, transformam-se em palavras lamurientas lidas e gostadas somente por pessoas com baixíssimo nível de testosterona. Então, pode parar com preconceito, porque ter uma mente aberta é a moda do momento!

– Ok, ok… O que preciso saber sobre isso…? Quer dizer: o que preciso saber sobre Literatura para PASSAR NA MINHA PROVA. Que fique bem claro o meu objetivo! Afinal, não tenho tempo…

… a perder com asneiras sentimentais. Que bom! Porque eu também não! E, ainda assim, sou apaixonada por Literatura. Isso parece paradoxal, mas não é. Por isso, “aqui e agora”, procurarei fazer você ganhar o seu tempo. Vamos entender, então:

A Comunicação possui seus elementos e suas funções. Numa pequena tentativa de lhe mexer com a memória, cito os elementos: emissor, receptor, mensagem, código, canal, ruído e contexto; e agora as funções: referencial, metalinguística, conativa/apelativa, fática, poética e emotiva/expressiva. Se você já percebeu – e sei que já – isto é conhecimento técnico de Interpretação Textual. E é exatamente assim que funciona: quando se estuda para concurso público, a Literatura faz parte do conhecimento adquirido nessa matéria, sendo somente ensinada como disciplina independente em provas bem específicas, as quais a apresentem de forma nominal e clara no edital. Em linhas gerais, então, quando aprendemos as técnicas interpretativas, as “dicas” de como analisar um texto literário fazem parte do conhecimento absorvido nas aulas.

– Então o professor de Interpretação de Texto usa partes das aulas para falar dos escritores de Literatura? Hum… Não estou lembrando disso, não…

Na verdade, não. O professor não faz isso porque não é esse o objetivo. No decorrer das aulas de interpretação, ensinamos técnicas de análise de textos diversos e, entre eles, estão os literários. Não há tempo de falar da vida, das obras e das características particulares de cada autor. Por isso, fazemo-lo de forma generalizada, a fim de que o candidato tenha a visão certa, com os preconceitos corretos sobre o gênero textual em questão. É bem verdade que ter um entendimento básico sobre esse tipo textual termina por auxiliar sobremaneira no julgamento de um item, no assinalar de uma alternativa, otimizando o tempo que se gasta numa questão ou, até mesmo, dando um suporte de confiança na escolha de julgamento.

– Hum… E podemos nos lembrar quais técnicas são essas?

Sim, é claro! É importante entender que, nesse momento, darei algumas “dicas” de como se analisar de forma adequada um texto que pertença ao gênero poesia, pois, se formos também falar de prosa, não dará tempo.

– Mas a prosa cai pouco em prova?

Não! Na verdade, a prosa é muito usada pelos examinadores. O que estou fazendo é indo por partes: numa outra ocasião (edição), falaremos somente da prosa e dos autores mais cobrados, como, por exemplo, Machado de Assis.

– O cara que escreveu Dom Casmurro?

Sim, ele mesmo. Viu que excelente memória a sua? Adoro! Vamos à poesia, então?

– Sim! Convença-me de que não é um bando de gente se lamentando de amores perdidos!

Quando lhe lembrei das funções da Comunicação, não foi à toa. Perceba que a função referencial está muito presente em textos informativos, técnicos, de caráter jornalístico, jurídico ou científico. Mas, quanto às demais funções… Cuidado! Apetecem muito à Literatura! Quer ver?

O gênero poesia é a típica composição estruturada em forma de versos, os quais, por sua vez, se estruturam em estrofes. Se o verso é cada linha do poema, a estrofe é o conjunto de versos, ou seja, o agrupamento dessas linhas, que aparece separada de outra estrofe por espaços em branco.

Podemos dizer que o poema é uma obra fechada em si mesma, curta e escrita em versos. O poema tem uma relação direta e intensa com a língua em que é escrito; nele, a informação aparece condensada, o significado está tensionado.

Verifique, como exemplo, o texto seguinte, de Cecília Meireles:

 

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

— em que espelho ficou perdida

a minha face?

Perceba, no texto Retrato, a separação de uma estrofe a outra feita pelo espaço em branco, além de verificar que o verso – a linha – não vai de uma margem a outra, mas se centraliza, sendo específica, “quebrada” sem “tocar” as laterais da folha. Mas é importante lembrar que existem, também, poemas em prosa. Embora sejam escritos em prosa, têm todas as características da poesia, como os temas, o estilo e a inspiração. (Mas disso falaremos naquela outra ocasião que já citei.)

Apesar de ser ritmado – pois foi criado para ser cantado ou recitado –, o poema nem sempre traz rima, e isso não é uma obrigação, tampouco uma valoração. Há poetas que têm uma preferência pela rima e há outros que se debruçam sobre o efeito sonoro das sequências silábicas das palavras escolhidas. Então, não é algo com o que temos de nos preocupar na hora da prova.

Um ponto crucial em Retrato é verificar a escolha da autora por uma classe gramatical: adjetivo. Perceba como isso dá ao texto uma caracterização descritiva. Sim, temos uma produção que pertence ao gênero poesia e que também traz a descrição como tipologia dominante, ou seja, o lirismo fez uso da caracterização para se revelar, para acontecer.

Agora, repensando as funções, observe que há o uso reiterado da marca da primeira pessoa do discurso, tanto pela presença de pronomes quanto pela de verbos, o que nos apresenta claramente a função emotiva/expressiva. Lembrando que a função poética está presente no texto da poetisa por ser a marca estrutural da composição textual – versos, rimas, ritmo, sonoridade –, podemos, com isso, enxergar ambas as funções presentes num só texto.

– Mas um poema sempre traz a função emotiva.

Cuidado! Nem sempre. Observe esta estrofe, do poema Procura da poesia, de Carlos Drummond de Andrade:

 

[…]

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos,

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície inata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva

e concentrada no espaço.

[…]

Notou? Não há qualquer marca de função emotiva/expressiva. E se você – com sua linda e necessária curiosidade – procurar o poema inteiro para ler, verificará que ela não se encontra em qualquer parte dele. Assim, temos um texto com função poética, mas sem função emotiva. Contudo, podemos encontrar outras: a função conativa está fortemente presente nos verbos no imperativo, que apelam ao emissor que tenha uma determinada atitude, e a função metalinguística se encontra em todo o texto, já que o assunto nele é o próprio ato do escrever poético.

Por que estamos fazendo essas observações? Porque o examinador objetivará induzir-lhe ao erro! Não, calma, deixe-me usar uma expressão mais apropriada: O examinador quererá verificar se você entende que um texto poético não traz em si a obrigação da emoção e da expressão do eu lírico. Ufa! Pronto, ficou melhor assim.

E a análise da poesia não para aqui, em suas funções. Afinal, quando falamos de poesia, devemos nos lembrar da linguagem.

– Não é em Língua Portuguesa?

Sim, com certeza. Mas falo do tipo, ou seja, se a linguagem é predominantemente denotativa ou conotativa.

A denotação é o uso da palavra com o seu sentido original, como, por exemplo: “A pedra é um corpo duro e sólido, da natureza das rochas.”. Enquanto conotação é o uso da palavra com um significado diferente do original, criado pelo contexto, como, por exemplo: “Você tem um coração de pedra.”. Notou que o uso da palavra em destaque foi diferente? No primeiro, há o uso literal, real, técnico dela e, no segundo, um uso figurado, imaginativo, de intenção comparativa.

– E a Literatura gosta da conotação?

Bingo! A Literatura é arte, o que, além de lhe proporcionar a liberdade criativa, dá ao escritor o “poder” de mexer com os sentidos e isso é feito, na escrita, pelo uso do sentido conotativo, pelas figuras de linguagem. As dezenas figuras de linguagem, ou figuras de estilo, existentes, provocam um olhar imaginativo no texto, uma forma diversa da tradicional de se analisar. No início desse texto, citei Renato Russo: “Quem um dia irá dizer que existe razão/Nas coisas feitas pelo coração?/E quem irá dizer que não existe razão?”. Eduardo e Mônica – o texto de onde extraímos os versos anteriores – é uma produção poética. Perceba o jogo de significados que a palavra “razão” recebe. Verifique, também, os dois últimos versos do poema Retrato, de Cecília Meireles, e analise a força imaginativa das palavras “espelho”, “pedida” e “face”: “– em que espelho ficou perdida/ a minha face?”.

– No início deste texto, você citou Carlos Drummond de Andrade, que disse: “O presente é tão grande, não nos afastemos. /Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”. Ele faz uso figurado ao dizer “presente tão grande”!

Isso mesmo! Excelente! Você está com uma interpretação sagaz… Mas ele também usa de sentido figurado quando diz “vamos de mãos dadas”, afinal, não imagino ser possível que todas as pessoas do mundo inteiro deem as mãos de uma só vez. Percebe?

– Sim. Mas isso quer dizer que nos poemas eu sempre terei essa conotação?

Calma! O uso do “sempre” é bem perigoso. Eu quero que você adquira um olhar técnico, ou seja, que analise tendo certos conceitos como pressupostos. Como, por exemplo, lembrar que um poema tem a intenção de:

  • Induzir correlações emocionais pelo som e pelo ritmo;
  • Trazer um objeto para a imaginação visual;
  • Produzir associações emocionais e intelectuais.

E que também:

  • Terá predominância conotativa;
  • Apresentará predileção pelas funções poética e emotiva – mas poderá usar as outras;
  • Não possuirá a obrigação de seguir as regras gramaticais;
  • Gostará de fazer uso da inversão sintática (SVC).

– E isso me ajudará?

Sim, pode acreditar. Tomarei como exemplo um texto bem conhecido, a fim de que não haja qualquer objeção. Vamos ao afamado Hino Nacional Brasileiro, escrito por Joaquim Osório Duque Estrada. Não preciso colocar a letra aqui, porque você sabe de cor, não é mesmo? Assim, tomando os conceitos técnicos que lhe passei, vamos fazer a análise interpretativa.

Primeiramente, verificamos no decorrer de todo o texto a intenção de nos provocar uma emoção, utilizando som e ritmo como recursos, além de ter uma sonoridade acentuada pela rima. É possível, também, se fazer valer da imaginação visual, pois o autor cita lugares e símbolos representativos. E, num perfeito jogo de palavras e frases, faz associações do nosso conhecimento histórico com palavras fortes de louvor e exaltação patriótica, ainda citando a intertextualidade com o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, explicitada na nona estrofe.

Além de tudo isso, o Hino está embasado numa linguagem de predominância figurada, como “Deitado eternamente em berço esplêndido,/Ao som do mar e à luz do céu profundo” ou “E diga o verde-louro dessa flâmula/ – Paz no futuro e glória no passado”, para citar somente uns poucos exemplos.

Verifica-se a função poética – marcada pela estrutura – e, realmente e sem enganos, a função emotiva/expressiva, representada por verbos e pronomes, como exemplifica a segunda estrofe. Contudo, a função conativa está marcada pelos apelos feitos com verbos no imperativo. Por ser uma produção de representação nacionalista e política, o texto segue os rigores da norma culta de língua, mas é marcante em todo ele a não obediência à ordem direta oracional (sujeito, verbo, complemento – SVC).

Veja, por exemplo, os dois primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante”.

Caso o candidato não se lembre dessas orientações, pode errar ao fazer uma análise gramatical e semântica, dizendo, por exemplo, que nessa construção o sujeito é classificado como indeterminado. Cuidado! Por ser produção poética, a oração pode – e, nesse caso, está – em ordem irregular. Se o colocarmos na ordem regular, assim ficará: As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico. Percebe que agora aparece, sem dúvidas, o sujeito simples: As margens plácidas do Ipiranga. E além de sujeito simples – com um só núcleo: margens –, o autor o faz de forma figurada, imaginativa, com uma figura de linguagem chamada “personificação/prosopopeia”, atribuindo características humanas a seres inanimados, já que são as margens que testemunham o grande acontecimento.

– Poxa, então é importante me lembrar disso, né?

Muito! Notou como seria fácil ser enganado sem essas técnicas? Tanto sintaticamente quanto semanticamente.

– Em uma poesia tudo pode acontecer… Culpa dessa “liberdade poética”!

Não a culpe! É justamente ela que faz a Literatura ser arte, ser livre e ser tão bela! Mas, deixemos de efusões expressivas, o importante é que você tenha entendido que um texto poético não pode ser interpretado da mesma forma que se interpreta um texto informativo e que, além disso, os versos não estão carregados somente de sentimentos amorosos e melodramas de tristeza e solidão. A poesia é mais, muito mais: é uma forma rítmica e figurada de falar do mundo, de si mesmo e de tudo que se forma e transforma, e isso vai do amor perdido à situação sociopolítica dos países.

– Está certo, prometo me lembrar disso. Agora posso estudar outra coisa?

Claro que sim! Voltaremos a nos falar quando o assunto for a prosa literária, não se preocupe.

Mas, antes de ir embora, quero lhe deixar mais uma dica: no Dia dos Namorados, talvez alguns versos sejam mais bem-vindos que alguns artigos do Código Penal. Lembre-se: o sentido de um texto sempre dependerá do contexto! – guarde essa dica também para a sua prova!

Viviane Faria: Professora do Gran Cursos

[1] COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. 2. ed. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1978. p. 9-10

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