História Mínima do Mercosul – Parte I

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No último dia 21 de julho, os presidentes dos estados-membros do Mercosul reuniram-se em Mendoza, na Argentina, para a 50ª cúpula de chefes de estado do bloco. Ao final do encontro, emitiram um comunicado conjunto com 23 parágrafos operativos (mais os dois protocolares de rigor), que abrangem de tudo um pouco — da cooperação no combate ao narcotráfico à criação de uma Comissão Técnica de Serviços Hidrometeorológicos; da ambição de estabelecer um regime funcional de reconhecimento de títulos acadêmicos à proteção de migrantes; da cooperação consular à portabilidade da previdência social.

Na enumeração acima, meramente ilustrativa, há um domínio que brilha por sua ausência (para recorrer a uma fórmula gasta): os temas propriamente de integração comercial, que justificaram a criação do bloco, em 1991, e ao longo dos anos lhe deram sentido e razão de ser.

Este não será, naturalmente, o âmbito adequado para juízos críticos acerca do Mercosul atual, de suas virtudes e carências. Nem se recomenda que, no concurso, o candidato seja excessivamente franco ao expressar suas opiniões pessoais a respeito. Ocorre, no entanto, que o texto do comunicado, com essa lacuna conspícua, nos oferece uma boa ocasião para contextualizar o debate atual acerca do Mercosul e, com isso, dar ao candidato melhores condições de refletir a respeito diante de uma eventual questão de exame.

Partimos do pressuposto de que o candidato, a esta altura, já dominará os conceitos teóricos e históricos imprescindíveis para entender a evolução inicial do projeto. Quem ainda não o tiver feito faria bem em aprofundar a leitura sobre a convergência de visões que se estabeleceu entre os presidentes Sarney e Alfonsín e sobre como, no período entre 1985 e 1989, se estabeleceram as bases para a aproximação histórica entre Brasil e Argentina que está na gênese do Mercosul.[1] (Entre parênteses, aqui apenas se registrará a sugestão de que o candidato se ilustre, igualmente, sobre os avanços importantes, frequentemente relegados a segundo plano, que se deram na presidência de João Baptista Figueiredo, notadamente o acordo tripartite sobre o aproveitamento hidrelétrico de Itaipu e Corpus.)

Pressupõe-se, igualmente, que o candidato entenderá a distinção conceitual entre uma zona de livre comércio, uma união aduaneira e um mercado comum e saberá que, já desde o Tratado de Assunção, de 1991, os quatro membros fundadores do bloco optaram pelo formato ambicioso de uma união aduaneira (com a meta de, eventualmente, vir a constituir-se um mercado comum à maneira da União Europeia).

Esclareçamos apenas, muito resumidamente, que a opção pela união aduaneira representou um compromisso muito mais profundo e ambicioso do que tinham em mente Sarney e Alfonsín, ao iniciar o processo que desembocará no Mercosul (e muito mais pleno de consequências do que desejariam, inicialmente, os sócios menores Paraguai e Uruguai). De 1987 a 1989, recorde-se, as equipes técnicas de Brasil e Argentina trabalhavam para construir grandes acordos setoriais que visavam a construir uma integração mais limitada, voltada à integração de cadeias produtivas e a uma abertura comercial muito mais modesta, sob a direção dos dois estados nacionais. Ainda não tínhamos chegado ao primado do liberalismo que se estabelecerá, nestas latitudes, com as eleições sucessivas de Carlos Menem e Fernando Collor de Mello, em 1989. Mas há, na historiografia, argumentos ponderáveis no sentido de que, se não eram ainda públicos, o governo brasileiro já assumira compromissos firmes com um programa de abertura comercial, no contexto das negociações, para pôr fim à moratória da dívida externa decretada em fevereiro de 1987.[2]

O que é importante ressaltar é que, graças a essa nova orientação livre-cambista, os governos de Collor e Menem — com a eventual adesão do Uruguai e do Paraguai — irão muito além daqueles primeiros acordos setoriais. Inicialmente, aspirava-se construir uma zona de livre comércio, ou seja, um espaço onde vigeria isenção plena de tarifas de importação para os produtos oriundos dos quatro países-membros. A ideia, no entanto, sofreu reparos de formuladores de políticas em Brasília e, em menor medida, em Buenos Aires. De maneira que o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul em 1991, acrescentou um detalhe de fundamental importância para os parques industriais do Brasil e da Argentina: para além de aceitar a livre circulação de mercadorias intra-Mercosul, os quatro países estabeleceriam, para as importações provenientes de fora do bloco, uma tarifa externa comum (doravante TEC) negociada produto a produto.  (Sabedoria convencional: nenhuma autoridade brasileira jamais o formulará nesses termos, mas está perfeitamente assentado, entre analistas e historiadores, o entendimento de que a TEC foi o preço cobrado pelo Brasil para garantir aos sócios menores o acesso desimpedido aos seus mercados. Em troca desse benefício considerável para rizicultores uruguaios, triticultores argentinos ou pecuaristas paraguaios, os demais membros acordavam elevar suas tarifas de importação para aqueles bens industriais de interesse primordial do Brasil.)

Como já se antecipou, as autoridades argentinas não assumiram esse compromisso inteiramente a contragosto. No princípio dos anos 90, a percepção assentada era de que o Mercosul era um arranjo entre duas grandes economias de pesos similares (o Brasil e a Argentina, embora com alguma preponderância de nosso país) e dois sócios menores e de vocação quase integralmente agrícola. Ocorre que o parque industrial brasileiro reagiu melhor à abertura comercial que se processava também com o mundo exterior, ao passo que, na Argentina, o processo de desindustrialização se estabeleceu antes e de forma mais profunda. Resultado: ao longo dos anos 90, o que se observou foram seguidas tentativas por parte da Argentina de condicionar a plena vigência do livre mercado com a adoção de medidas de defesa comercial, na essência, incompatíveis com o espírito de uma união aduaneira. Não se quer sustentar, com isso, que qualquer país-membro do bloco devesse abdicar de medidas legítimas como as de antidumping (ou seja, de proteção contra a concorrência desleal do produtor estrangeiro que venha a lançar mão de preços artificialmente reduzidos para arruinar a concorrência). Mas, ao menos na retórica brasileira dos anos 90, o compromisso com o projeto implicaria, sim, abandonar o recurso às salvaguardas (i.e., às medidas que visam a conter um súbito aumento de importações de determinado produto, em circunstâncias tais que pudessem causar danos consideráveis à indústria nacional, ainda que o exportador não tenha incorrido em nenhuma prática desleal). Quem acompanhou o noticiário da época há de recordar-se, por exemplo, das queixas vocais dos produtores de calçados argentinos, cuja produção não podia fazer frente à do setor concorrente brasileiro.

As queixas argentinas tornaram-se mais estridentes quando o Brasil desvalorizou o real, no início de 1999 — ou, por outra, abandonou o regime de “bandas cambiais” e adotou o câmbio flutuante. Com a medida, o Brasil pôde evitar tornar-se a vítima preferencial das crises cambiais que, desde 1994, vinham afetando os países emergentes (México, 1994; leste asiático, 1997; Rússia, 1998). No entanto, estabeleceu-se com isso uma divergência marcada entre as políticas monetárias dos dois principais membros do Mercosul: enquanto, no Brasil, o câmbio flutuava, teoricamente, ao alvedrio do mercado, na Argentina permanecia vigente a paridade entre dólar e peso, estabelecida em lei, e que acabou tornando-se verdadeira camisa de força para toda a economia argentina. O que importa, para os propósitos de nosso artigo, é que data de então a divergência de fundo que impedirá, nos anos subsequentes, o aprofundamento da integração econômica: para os argentinos, a desvalorização do real mudava substancialmente as regras do jogo, e um esquema de plena liberalização comercial já não atendia aos interesses de nossos vizinhos.

O Brasil resistiu enquanto pôde (e quis) às postulações do vizinho, sobretudo porque, com o câmbio flutuante, o país logrou descolar-se da Argentina na percepção dos investidores internacionais, cada vez mais descrentes da capacidade do Banco Central argentino de manter, à força de dilapidar suas reservas, a paridade artificial entre o peso e o dólar. O país tornou-se dependente dos seguidos pacotes de ajuda do FMI, ao passo que a desconfiança na sustentabilidade do regime cambial se alastrava perante a população, que tratava de sacar em dólares os depósitos que realizara em uma década de conversibilidade. Em meio a temores de uma corrida bancária, a crise econômica chegou ao paroxismo, em dezembro de 2001, quando o governo de Fernando De la Rúa decidiu congelar os depósitos bancários da população (à semelhança do que se deu, entre nós, com o Plano Collor), o que ocasionou protestos multitudinários que levaram à renúncia do presidente. Exigido pelo setor industrial, mas a ele resistindo poupadores e consumidores, o fim da conversibilidade acabou sendo adotado no princípio de 2002, mas de maneira desordenada, em meio à gravíssima crise social, à moratória da dívida externa e à pior recessão econômica da história.

Foi nesse contexto que, da simples defesa de maior flexibilidade na implementação dos compromissos de liberalização, a retórica argentina passa a exigir o apoio dos parceiros à reconstrução econômica do país. Iniciado na presidência de Eduardo Duhalde (janeiro de 2002 a maio de 2003), o discurso haveria de tornar-se o fundamento básico da política exterior de Néstor Kirchner (2003-2008) e sua esposa, Cristina Fernández de Kirchner (2008-2015). Em resposta a esse clamor, o governo brasileiro vê-se, então, forçado a abandonar a postura de princípio que mantivera até então e, sob o argumento da “paciência estratégica” com o vizinho e parceiro, aceita a proliferação de medidas heterodoxas que, pouco a pouco, foram comprometendo a união aduaneira.

Começam, então, a multiplicar-se exceções à TEC (ou “perfurações”, no jargão diplomático brasileiro, que, ao menos no terreno sintático, ainda registrava nossos reparos à tendência). Tais exceções atingiam sobretudo aqueles bens de capital que, embora produzidos pelo Brasil, eram de suma necessidade para o processo de reindustrialização argentina. Somadas a elas, vieram cada vez mais medidas de defesa comercial, quotas por produto e, notadamente, “licenciamentos não automáticos” de importação, que sujeitavam o ingresso de produtos brasileiros a trâmites burocráticos lentos, dispendiosos e caprichosos (a ilustração mais célebre do processo foram as travas às exportações brasileiras de produtos de “linha branca”, isto é, de geladeiras e máquinas de lavar).

Esse foi  passo inicial da profunda reformulação por que passou o Mercosul na última década, o qual explica em boa medida a constatação que fizemos no princípio deste artigo, ao analisar o conteúdo do recente comunicado conjunto. Entre 2002 e 2015, esse processo haverá de afastar o Mercosul de seu espírito livre-cambista original e buscará compensar a falta de avanços no campo econômico com a proliferação de iniciativas nas mais distintas áreas de cooperação (notadamente no que se convencionou chamar o “Mercosul social”).

No próximo artigo, analisaremos como esse processo assentou-se em importante convergência ideológica e como, desde 2016, os governos do Brasil e da Argentina buscam recuperar algo daquele espírito original.

[1]Uma narrativa, por assim dizer, canônica desse processo pode encontrar-se em AMADO LUIZ CERVO; CLODOALDO BUENO. História da Política Exterior do Brasil. Brasília, UnB, 2015 (5ª ed.).

[2]Para conhecer em detalhe o argumento, ver CARLOS PIO. A construção política da economia de mercado no Brasil (1985-95). Tese de Doutorado. IUPERJ, Rio de Janeiro, 2001.

Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.


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