Importante decisão sobre competência criminal e auxílio emergencial durante a COVID-19!

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Olá pessoal, tudo certo?

Sempre brinco nas minhas aulas – falando sério – de que a vida imita a arte, a arte imita a vida e o seu examinador imita os fatos relevantes do mundo real. Ou seja, tudo, absolutamente tudo que acontece na nossa realidade deve ser analisado e estudado sob a perspectiva jurídica, pois há uma grande probabilidade de vir a ser cobrado em provas de concurso.

Nesse sentido, obviamente, em várias áreas do direito, uma série de situações complexas e polêmicas vivenciadas ao longo da pandemia da COVID-19 terão repercussões importantes em certames públicos vindouros.

Na última semana de outubro, tivemos um caso desses, apreciado pela 3ª Seção do STJ, cuja conclusão foi no sentido de que não compete à Justiça Federal processar e julgar o desvio de valores do auxílio emergencial pagos durante a pandemia da covid-19, por meio de violação do sistema de segurança de instituição privada, sem que haja fraude direcionada à instituição financeira federal[1].

Antes de tecer considerações, vamos colacionar uma síntese do ocorrido no caso concreto. Vejamos:

“O presente inquérito policial foi instaurado para a apurar estelionato consistente em fraude na obtenção de auxílio emergencial concedido pelo Governo Federal em decorrência da pandemia de Covid-19, ocorrido em dois de julho de 2020, neste município e comarca. Há oitiva a fls.17. Segundo consta do inquérito, Bruna dos Santos Carneiro da Silva declarou que realizou depósito em sua conta do Mercado Pago, no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) e depois percebeu que aquela quantia foi transferida para Erick de Oliveira, sendo que não foi Bruna quem realizou a operação financeira e nem a autorizou. Erick assinalou que a aludida quantia foi realmente transferida para sua conta no Mercado Pago, e foi declarada como pagamento de conserto de motocicleta, para enganar os órgãos competentes e conseguir a antecipação do auxilio emergencial. Disse que foi Alexandre Vieira, proprietário de uma loja de manutenção de telefones celulares, quem lhe propôs a prática de tais condutas, mas disse que seria um procedimento legal e ainda ofereceu R$50,00 para cada antecipação passada em sua máquina do Mercado Pago, sendo que Erick praticou a conduta quatro vezes. Disse que o dinheiro entrava em sua conta no Mercado Pago e era transferido
para a conta de Alexandre. Tratando-se de crime referente à Caixa Econômica Federal e referente a interesse da União a competência para conhecer da matéria é da Justiça Federal, para onde requeiro a remessa do inquérito”.

Vale ressaltar que, de acordo com o depoimento constante do Inquérito Policial, para apurar notitia criminis no sentido de que ERICK DE OLIVEIRA SANTOS teria sacado indevidamente os valores do auxílio emergencial de BRUNA DOS SANTOS CARNEIRO DA SILVA, constata-se, pelo depoimento da vítima, que foi ela quem, voluntariamente, em
2/7/2020, fez um depósito de R$ 600,00 (seiscentos) reais para sua própria conta no
Mercado Pago e que apenas após referida operação legal houve indevida transferência
do numerário para o suposto agente delituoso.

Ou seja, no caso concreto não se identificou ofensa direta à Caixa Econômica Federal – CEF ou à União, uma vez que não houve qualquer notícia de que a beneficiária tenha empregado fraude. Em outras palavras, houve ingresso lícito no programa referente ao auxílio emergencial e transferência lícita da conta da Caixa Econômica Federal para a conta do Mercado Pago, ambas de titularidade da beneficiária do auxílio. Ocorre que aparentemente, no caso em tela, houve transferência fraudulenta de valores entre contas do Mercado Pago de titularidade da vítima e do agente delituoso, ou seja, a vítima não foi induzida a erro e tampouco entregou espontaneamente o numerário, de tal forma que o atual estágio das investigações indica suposta prática de furto mediante fraude. Nesse sentido, vejamos:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. CONTRATAÇÃO DE EMPRÉSTIMO BANCÁRIO E TRANSFERÊNCIA DE VALORES. FRAUDE ELETRÔNICA. AUSÊNCIA DE ENTREGA VOLUNTÁRIA DO BEM PELA VÍTIMA. ESTELIONATO. NÃO CONFIGURAÇÃO. TIPIFICAÇÃO ADEQUADA. FURTO QUALIFICADO. MEDIANTE FRAUDE ELETRÔNICA. COMPETÊNCIA. LUGAR DA CONSUMAÇÃO. INGRESSO DOS VALORES NAS CONTAS DESTINATÁRIAS DAS TRANSFERÊNCIAS. LOCALIDADES DISTINTAS. PREVENÇÃO. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITANTE. 1. Para que se configure o delito de estelionato (art. 171 do Código Penal), é necessário que o Agente, induza ou mantenha a Vítima em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, de maneira que esta lhe entregue voluntariamente o bem ou a vantagem. Se não houve voluntariedade na entrega, o delito praticado é o de furto mediante fraude eletrônica (art. 155, § 4.º-B, do mesmo Estatuto). 2. No caso concreto, não houve entrega voluntária dos valores pela Vítima, mas, sim, ocorreu a contratação de empréstimos vinculados à sua conta corrente em agência bancária na cidade de Santa Helena/MA, bem como a transferência dos valores a contas situadas no Estado de São Paulo, por meio de fraude eletrônica. 3. Em se tratando de furto, a consumação do delito ocorre quando o autor do delito obtém a posse do bem. Na situação dos autos, a consumação delitiva ocorreu quando os valores ingressaram nas contas destinatárias dos valores, todas em agências localizadas no Estado de São Paulo, nas comarcas de Campinas, Itaim Paulista e São Paulo capital. 4. Sendo igualmente competentes os mencionados Juízos paulistas, a competência é firmada pela prevenção, nos termos dos art. 71 e 83 do Código de Processo Penal que, no presente feito, é do Juízo campineiro, porque o único dos referidos Juízos do Estado de São Paulo que nele proferiu decisão. 5. Conflito conhecido para declarar competente o JUÍZO DE DIREITO DA 5.ª VARA CRIMINAL DE CAMPINAS – SP, o Suscitante (CC 181.538/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/08/2021, DJe 01/09/2021).

Ora, considerando que o agente delituoso ao transferir para si os valores pertencentes à vítima não fraudou eletronicamente o sistema de segurança da Caixa Econômica Federal, mas apenas o sistema de segurança de instituição privada para a qual o numerário foi transferido por livre vontade da vítima[2].

Portanto, é inarredável a conclusão de que, sem fraude ao sistema de segurança da instituição financeira federal, não há de se falar em competência da Justiça Federal.

Espero que tenham gostado e, sobretudo, entendido!

 

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 

 


[1] CC 182.940-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 27/10/2021, DJe 03/11/2021.

[2] Interessante pontuar que, em trecho extraído do voto do Relator do CC ora apreciado, houve menção ainda à decisão monocrática proferida pelo ilustre Ministro Felix Fisher no julgamento do CC 177.398/RS (DJe 12/2/2021) no qual, em situação análoga ao caso concreto, firmou-se a competência da Justiça Estadual ao fundamento de que a vítima do delito patrimonial havia transferido valores provenientes de auxílio emergencial, por livre opção, ao sistema de pagamento virtual conhecido
como PICPAY para somente depois sofrer o prejuízo advindo do crime. Em resumo, também no caso ora em análise, em que houve violação ao sistema de segurança de instituição privada, qual seja, o Mercado Pago, sem qualquer fraude ou violação de segurança direcionada à CEF, o prejuízo ficou adstrito a instituição privada e particulares, não se identificando situação prevista no art. 109, inciso IV, da CF.

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