A multiparentalidade e seu reconhecimento pelo sistema jurídico brasileiro

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13 de Fevereiro de 2014

Por Anelise Muniz

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A família brasileira tem passado por transformações em sua estrutura, admitindo novas formas de constituição, que não foram previstas pelos legisladores, e que agora motivam a atualização e adaptação de dispositivos legais que reconheçam esses novos núcleos familiares.

A adoção de um critério único (biológico ou afetivo) para a determinação da paternidade não mais se adequa à realidade, tampouco aborda o pluralismo familiar da sociedade brasileira. A filiação é, atualmente, reconhecida como uma relação que contempla diversas perspectivas e não mais o núcleo estático formado pelo pai, pela mãe e pelo(s) filho(s). Nesse sentido, Dias (2009, p. 326) estabelece três critérios para o estabelecimento do vínculo parental: jurídico, biológico e socioafetivo.

A dupla filiação (biológica e afetiva), denominada multiparentalidade, é uma possibilidade que tem agregado defensores, os quais buscam alterações na Lei nº 6.015/73 para que o registro de nascimento possa conter mais de um pai ou uma mãe para a mesma pessoa.  Ou seja, a multiparentalidade seria a forma pela qual diversos tipos de filiação possam coexistir de maneira a produzir efeitos positivos aos indivíduos. Póvoas (2012, p. 86) assim explica:

“A evolução natural das relações interpessoais fez aparecer várias formas de núcleos familiares na sociedade, impossibilitando o reconhecimento como entidade familiar apenas aquilo que o legislador assim o estabelece, porque a família ultrapassa os limites da norma burocrática escrita por homens frequentemente influenciados por ideias pessoais e influencias religiosas”.

O caminho para essa mudança seria o mesmo da adoção por casais homoafetivos e da cumulação de patronímicos, mediante a ação declaratória, nos termos do art. 97 da Lei nº 6.015/73, bem como a averbação disposta no art. 10, II do Código Civil de 2002. Ressalte-se que esse mesmo Código, em seu artigo 1.593, recepciona a diversidade de filiação ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A jurisprudência brasileira, inclusive, já trata do assunto, proferindo decisões favoráveis à multiparentalidade, ao reconhecer que pais biológicos e afetivos podem exercer a função parental de forma complementar, conforme expõe o seguinte julgado:

“[…] No ato do reconhecimento, duas “verdades”, biológica e sócioafetiva, antagonizavam e o de cujus optou por reconhecer a recorrente como se fosse sua filha, muito embora não fosse seu genitor. Tem aqui um pai que quis reconhecer a filha como se sua fosse e uma filha que aceitou tal filiação. Não houve dissenso entre pai e filha que conviveram, juntamente com a mãe até o falecimento. Ao contrário, a longa relação de criação se consolidou no reconhecimento de paternidade ora questionado em juízo. Assim, como ocorreu na hipótese sub judice, a paternidade sócio-afetiva pode estar, hoje, presente em milhares de lares brasileiros. O julgador não pode fechar os olhos a esta realidade que se impõe e o direito não deve deixar de lhe atribuir efeitos.

(Recurso Especial n. 878.941-DF)”

Dentre as consequências jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade destacam-se:

a)    Ampliação da linha de parentesco e seus respectivos efeitos pessoais e patrimoniais;

b)    Inclusão do sobrenome de todos os genitores registrados;

c)    Possibilidade de prestação alimentícia pelos pais afetivos e/ou biológicos; ampliação do direito de guarda e visita de menores e

d)    Alterações nas linhas sucessórias.

Todos esses efeitos convergem em uma mesma direção, que é a proteção jurídica dos princípios da dignidade humana e do melhor interesse do indivíduo.

A multiparentalidade é um fenômeno social e cultural que existe na sociedade brasileira, independente de reconhecimento. Contudo, sua proteção jurídica faz-se indispensável para que os indivíduos possam ser contemplados por todas as consequências positivas que uma instituição familiar possa proporcionar.

A jurisprudência pátria já caminha nesse sentido, conforme pode ser observado nas seguintes decisões:

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (BRASIL, TJSP, 2012)

[…] a pretendida declaração de inexistência do vínculo parental entre a autora e o pai registro afetivo fatalmente prejudicará seu interesse, que diga-se, tem prioridade absoluta, e assim também afronta a dignidade da pessoa humana. Não há motivo para ignorar o liame socioafetivo estabelecido durante anos na vida de uma criança, que cresceu e manteve o estado de filha com outra pessoa que não o seu pai biológico, sem se atentar para a evolução do conceito jurídico de filiação, como muito bem ponderou a representante do Ministério Público em seu laborioso estudo (BRASIL, TJRO, 2012).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 878.941-DF. Recorrente: A.C.M.B. Recorrido: O. de S. B. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Brasília, 21 de agosto de 2007. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8880940/recurso-especial-resp-878941-df-2006-0086284-0/inteiro-teor-13987921>. Acesso em 19 jan. 2014.

PÓVOAS, Maurício Cavallazzi. Multiparentalidade: A possibilidade de múltipla filiação registral e seus efeitos. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.

RONDÔNIA. Tribunal de Justiça do Estado. Processo n0012530-95.2010.8.22.0002. Juíza de Direito: Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz. Decisão: 13 Mar. 2012. Disponível em: <http://www.tjro.jus.br/appg/servlet/docAssinado?seqProcessoaDigital=137355&cdComarca=2&nrMov=39>. Acesso em 19 jan. 2014.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação n0006422-26.2011.8.26.0286. Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012. Disponível em: <http://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22130032/apelacao-apl-64222620118260286-sp-0006422-2620118260286-tjsp>. Acesso em 19 jan. 2014.

Professora Anelise Muniz. Advogada e Professora atuante nas áreas de Direito Civil e Processo Civil, Sócia do Escritório Costa & Muniz, Consultoria Jurídica e Advocacia, Graduada em Direito pelo UDF-Centro Uiverstário do Distrito Federal, Pós-Graduada em Direito Civil e Processual Civil, bem como em Docência do Ensino Superior, ambos pelo ICAT/UDF e, Mestranda em Educação pela UCB/DF. Ex-Chefe de Gabinete do Desembargador Souza Prudente, no TRF da 1a Região, atulamente, Professora Universitária no UDF e em Cursos Preparatórios para Concursos e para OAB, 1a e 2a fases, nas áreas de Direito Civil e Processo Civil e Professora Orientadora do Núcleo de Práticas Jurídicas/NPJ, na Justiça Federal de Brasília, na área de Direito Previdenciário.

 

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13 de Fevereiro de 2014

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