Noções elementares de política comercial brasileira – Parte I

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25 de agosto6 min. de leitura

O propósito deste artigo é dar ao candidato algumas noções elementares de política comercial brasileira. Manda, no entanto, a honestidade que estas linhas se iniciem com a advertência: o grifo, aqui, tem necessariamente de estar no “elementares”, uma vez que o autor jamais, em sua carreira, passou pela área econômica do Itamaraty. Ainda assim, espera-se que estes conceitos básicos ajudem o candidato a defrontar-se com qualquer questão mais técnica que a esse respeito possa surgir no concurso de ingresso.

Feita a ressalva, comecemos do princípio. Há, na política comercial brasileira, dois compromisss basilares, que informam e condicionam toda a atuação do país neste âmbito. O primeiro é o fato de o Brasil ser membro da Organização Mundial do Comércio (OMC) desde a sua criação, em 1º de janeiro de 1995 — aliás, desde a assinatura do acordo sobre o qual ela se baseia, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), assinado em 1947 e vigente desde 1948. O segundo, naturalmente, é o fato de o Brasil ser membro do Mercosul desde a sua fundação, em 1991.

O candidato que tenha prestado a atenção devida ao tema terá bem presente que o debate político a respeito, no Brasil, gira em torno de duas questões fundamentais: (1) em que medida o Mercosul, tal como idealizado, continua a atender aos interesses nacionais; e (2) em que medida o governo brasileiro errou ou acertou, ao longo dos últimos 15 anos, ao dedicar prioridade absoluta às negociações multilaterais na OMC, em detrimento de acordos potenciais de livre comércio com economias avançadas.

Há algumas semanas, este mesmo autor produziu dois artigos extensos sobre o Mercosul, e aqui se partirá da premissa de que os conceitos ali expostos terão sido bem assimilados pelo candidato. Isto posto, é provável que alguma contextualização adicional se faça necessária, na medida em que as noções básicas de política comercial não serão intuitivas para todos. O propósito deste artigo é expô-las de maneira esquemática e resumida, sempre com o sentido prático de orientar o candidato no concurso de ingresso.

O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), assinado em Genebra a 30 de outubro de 1947, foi parte do esforço de reordenação da ordem global conduzido pelas potências ocidentais ao término da Segunda Guerra Mundial. Por “potências ocidentais” deve entender-se sobretudo os Estados Unidos, é óbvio, mas tampouco será o caso de ignorar o papel que aí tiveram o Reino Unido e as maiorzinhas dentre as suas antigas dependências (notadamente o Canadá e a Austrália). Aos EUA, como potência hegemônica, interessava, naturalmente, abrir mercados para onde pudesse escoar sua produção, e com isso manter tão operacional quanto possível o parque industrial antes dedicado ao esforço de guerra. A Londres e aos antigos domínios interessava, de alguma maneira, criar regras que substituíssem todo o arcabouço normativo que regulou o livre intercâmbio de bens dentro do Império Britânico, que se vinha desconstituindo gradualmente desde a Declaração de Balfour de 1926 e desde o Estatuto de Westminster de 1931.

A essas considerações de natureza comercial há que agregar duas adicionais, uma de natureza financeira, outra de ordem estratégica. Quanto à primeira, era interesse de americanos e canadenses garantir a livre-conversibilidade da libra britânica, tendo em vista sobretudo as imensas dívidas contraídas por Londres junto a seus aliados, durante a guerra. Nesse sentido, o GATT não pode interpretar-se isoladamente dos acordos de Bretton Woods (1944), que instituíram o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, na medida em que garantir a abertura do mercado britânico era um instrumento a mais para assegurar a proximidade entre as economias dos principais aliados.[1] Quanto ao aspecto estratégico, é recordar que a abertura de mercados era parte integral do projeto americano de uma prosperidade compartilhada na Europa, em face da ameaça soviética.

Pois muito bem: o GATT foi o principal pilar do sistema livre-cambista que se começou a instituir então, e a pedra de toque de todo o sistema é a regra da “nação mais favorecida”, consagrada já no artigo 1º do tratado. Mesmo o candidato com formação diversa das ciências econômicas (ou das relações internacionais) já terá ouvido a expressão, mas talvez não se dê conta de que, de maneira perfeitamente contra-intuitiva, ela quer dizer o oposto do que diz. Citemos textualmente o acordo:

Com respeito aos direitos alfandegários e gravames de qualquer espécie que incidam sobre a importação e a exportação, ou com elas guardem relação, ou que gravem as transferências internacionais de fundos realizadas a título de pagamento por importações ou exportações; com respeito ao modo de auferir tais direitos e gravames; com respeito a todos os regulamentos e formalidades relativos às exportações e às importações; e com respeito a todas as questões a que se referem os parágrafos 2 e 4 do artigo III [tratamento nacional em matéria de tributação e regulamentações domésticas], qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedidos por uma parte contratante a um produto originário de outro país, ou a ele destinado, será concedido imediata e incondicionalmente a todo produto similar originário dos territórios de todas as demais partes contratantes, ou a elas destinados.

Noutras palavras, qualquer vantagem concedida a um estado membro, em matéria de importação e exportação de bens, será automaticamente estendida a todos os demais estados membros. Daí decorre que os países membros do GATT (e posteriormente da OMC) até poderão praticar tarifas de importação diversas daquelas adotadas por outros países membros, mas não poderão, no momento de aplicação das tarifas, discriminar entre produtos idênticos, com base na origem da mercadoria. Em suma: “nação mais favorecida” quer dizer, em essência, que nenhuma nação é mais favorecida.

O GATT consagra algumas exceções importantes a essa regra geral. Há as “exceções relativas à segurança” previstas no artigo XXI, segundo as quais “nenhum dispositivo do presente acordo deve interpretar-se em sentido que […] impeça a adoção de todas as medidas que estime necessárias para a proteção de seus interesses essenciais em matéria de segurança” (é a regra que fundamenta, por exemplo, o embargo americano a Cuba, a despeito de Cuba ser parte contratante desde 1948). E, mais importante para os nossos propósitos, há a exceção relacionada às áreas de livre comércio e às uniões aduaneiras, previstas no artigo XXIV, incisos 4 e 5:

  1. As partes contratantes reconhecem a conveniência de aumentar a liberdade de comércio pelo desenvolvimento, por meio de acordos voluntários, de uma integração mais próxima entre as economias dos países membros de tais acordos. Também reconhecem que o propósito de uma união aduaneira ou de uma área de livre comércio deve ser a facilitação do comércio entre os territórios integrantes, e não o levantamento de barreiras ao comércio de outros países contratantes com tais territórios.
  2. Por conseguinte, as disposições deste acordo não impedirão a constituição, entre os territórios das partes contratantes, de união aduaneira ou área de livre comércio, nem a adoção de acordos provisórios necessários à constituição de união aduaneira ou área de livre comércio.

No artigo anterior sobre o Mercosul, já exploramos brevemente a distinção entre uma área de livre comércio e uma união aduaneira, mas a reiteração não será ociosa, se o objetivo for o de bem assentar os conceitos.

Nos termos do próprio GATT (art. XXIV. 8), uma área de livre comércio é “um grupo de dois ou mais [países] onde as tarifas e demais medidas restritivas ao comércio […] forem eliminadas com respeito a, substancialmente, todo o comércio [‘substantially all the trade’], entre os [países em questão], de produtos [deles] originários”.

Já uma união aduaneira representa um passo além: é “a constituição de um único território aduaneiro, a partir de dois ou mais territórios aduaneiros, de maneira que: (a) os direitos de alfândega e as demais medidas restritivas ao comércio […] sejam eliminados com respeito a substancialmente todo o comércio entre os territórios integrantes […]; e (b) […] cada um dos membros da união aplique ao comércio com os [países] que não a integrem direitos de aduana e demais regulamentações comerciais que sejam substancialmente idênticos”.

Noutras palavras, e sob o risco de simplificar o assunto de maneira excessivamente grosseira[2], a zona de livre comércio é a simples eliminação de tarifas entre os países integrantes do bloco; a união aduaneira é a eliminação de tarifas mais a instituição de uma tarifa externa comum, ou seja, de uma tarifa que todos os membros do bloco se comprometem a aplicar às importações originárias de terceiros países.

Foram esses os dispositivos que permitiram a construção, a partir de 1957, da Comunidade Econômica Europeia (e de seu desdobramento posterior, a União Europeia); foram eles que inspiraram o projeto malogrado de uma Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), de 1960, e seu desdobramento algo menos imaterial, a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), de 1980; e foram eles, finalmente, que permitiram a construção do Mercosul, a partir de 1991.

Continuaremos no tema na semana que vem.

[1] Provavelmente, a melhor obra de referência sobre as instituições de Bretton Woods, em língua portuguesa, é o livro de Carlos Márcio B. Cozendey. Instituições de Bretton Woods. Brasília, FUNAG, 2013. O livro está disponível gratuitamente, em formato PDF, em < http://funag.gov.br/loja/download/1079-instituicoes-de-bretton-woods.pdf >.

[2] A ressalva é importante para recordar que as obrigações daí decorrentes abrangem muito mais do que tarifas de importação, como aliás o próprio texto dos dispositivos deixa claro.

Pablo Duarte Cardoso

Pablo Duarte Cardoso – ingressou na carreira diplomática em 2000 e desde 2013 exerce a função de Conselheiro na Embaixada do Brasil em Ottawa. É formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Itamaraty, trabalhou na Divisão da América Meridional I, ocupando-se das relações com a Argentina, o Chile e o Uruguai (2002-2005), e chefiou as Divisões da Europa II (2011-2012) e da Europa I (2012-2014). No exterior, serviu nas Embaixadas em Buenos Aires (2005-2008), Washington (2008-2011) e Ottawa (2014-). Além do Instituto Rio Branco, cursou um semestre no Instituto del Servicio Exterior de la Nación (Argentina), em 2001.


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