O MP pode apelar contra decisão do júri calcada no quesito genérico de absolvição? E se tiver contrária às provas dos autos?

- Importantíssima e polêmica decisão da 1ª Turma do STF.

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13 de outubro3 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo?

Hoje vamos falar de um dos julgados recentes mais polêmicos no âmbito do processo penal. Refiro-me à ordem de habeas corpus 178.177, julgada no último dia 29 de setembro de 2020, por apertada maioria na 1ª Turma da Corte (3×2).

A conclusão emanada pelo colegiado foi no sentido de não ser possível ao Ministério Público recorrer de decisão absolutória do Tribunal do Júri calcada no quesito absolutório genérico. Ou seja, vamos imaginar que os jurados reconheçam a materialidade e autoria delitivas, mas, na hora do quesito genérico, tenham optado por absolver o acusado. Percebam que, independentemente de qualquer coisa, mesmo tendo feito o juízo positivo da materialidade e autoria do crime, a legislação vigente impõe a formulação do quesito genérico (para alguns, chamado de quesito de clemência), conforme se extrai do teor do artigo 483, III e respectivo §2º do CPP. Esse quesito veio a potencializar no procedimento especial do júri o valor constitucional a ele inerente da plenitude de defesa, já que o decreto absolutório pode ser agasalhado pelos juízes leigos do Conselho de Sentença por qualquer fundamento, seja ele jurídico ou extrajurídico. É esse ponto que diferencia a plenitude de defesa – inerente ao Júri – e a ampla defesa, típica do processo penal.

Nesses casos, o MP pode recorrer afirmando que se trata de decisão contrária à prova dos autos?

De acordo com o art. 593, § 3º do CPP, se o Tribunal reconhecer essa situação, deverá determinar NOVO julgamento, não podendo se imiscuir no mérito para exarar nova decisão. Esse recurso seria compatível com a SOBERANIA DOS VEREDICTOS?

De acordo com a manifestação exarada em outro julgado, em agosto de 2019, o Ministro Celso de Mello

O Ministro Celso de Mello entendeu, em agosto de 2019, que NÃO. Em decisão monocrática no HC 117.076/PR, afirmou que a absolvição calcada no quesito genérico (após a materialidade e autoria) reflete a íntima convicção dos jurados, destacando-se que no procedimento do júri prevalece a plenitude de defesa, ou seja, é possível a decisão com base em teses e argumentos extrajurídicos. Para o Ministro, esse impedimento valoriza o livre convencimento, em que o membro do Conselho de Sentença possui inteira discrição, protegido, constitucionalmente, pelo sigilo da votação (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), para absolver o acusado por razões, até mesmo, de clemência, tal como tem sido decidido por alguns Tribunais judiciários”.

Voltando ao mais recente HC 178.177, o Ministro Relator Marco Aurélio anotou em seu voto (vencedor) que a “partir da soberania dos veredictos, tem-se no artigo 483, parágrafo 2º, que respondendo os jurados aos dois primeiros quesitos (materialidade e autoria) de forma positiva, deve o corpo de jurados ser indagado se absolve ou não o acusado. Se absolve, tem-se o encerramento da quesitação. Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue”.

Na mesma linha, o Ministro Dias Toffoli asseverou que “com a toga que me tem aos ombros eu alertei que essa é uma instituição disfuncional. Era melhor que os crimes dolosos contra a vida fossem julgados por juízes togados, e que não tivéssemos os custos e burocracias do Tribunal do Júri. Veja agora, com a pandemia, a dificuldade que é realizar o Tribunal do Júri. Os relatos são repugnantes, mas há a soberania do Júri e temos que respeitar, seja para condenar, ou para absolver”.

Como bem registra parcela da doutrina, temos uma “faculdade exclusiva da defesa a apelação arrimada na argumentação de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos. Primeiramente, por força do quesito obrigatório da absolvição genérica. Ademais, a soberania dos veredictos é garantia instituída em favor da plenitude defensiva e da presunção de inocência do acusado. Não cabe, pois, a um tribunal técnico desconstituir o mérito do decreto absolutório proferido pelos jurados. Noutro norte, se o réu for condenado, tal decisum não admite dissentimento às provas do feito ou às prescrições legais, pois representaria grave ofensa ao direito fundamental de presunção de inocência e ao devido processo legal. A condenação deve estar vinculada ao standard probatório de culpabilidade do réu, razão pela qual inexiste “um quesito genérico da condenação”[1].

O tema longe está de ser pacificado, advirta-se. No entanto, avizinha-se o momento em que essa celeuma será superada (ao menos provisoriamente), uma vez que a possibilidade ou não de realização de novo júri posteriormente a absolvição pelo Conselho de Sentença em recurso do Ministério Público, por contrariedade das provas dos autos, já teve repercussão geral reconhecida, no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.225.185, estando pendente de definição.

Vale anotar de que o entendimento da possibilidade, em casos tais, de recurso do MP ainda prevalece na 2ª Turma do STF, bem como é agasalhado no Superior Tribunal de Justiça. Aliás, em julgado realizado em 22/09/2020, a 5ª Turma entendeu que a absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição. Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico previsto no art. 483, III, do CPP. A 3ª Seção do STJ consolidou o entendimento de que ” não ofende a soberania dos veredictos a anulação de decisão do Tribunal do Júri que se mostre manifestamente contrária a prova dos autos, ainda que os jurados tenham respondido positivamente ao terceiro quesito formulado nos termos do art. 483, § 2º, do CPP (AgRg no AREsp n. 1.116.885/RS, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro)[2].

Ou seja, apesar da recente decisão da 1ª Turma do STF, ainda não temos uma definição. Isso obrigará os candidatos a acompanharem o debate e, claro, até ulterior definição, ficar atento para a existência de duas relevantes correntes de entendimento sobre essa temática.

Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!

Vamos em frente.

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 

 

[1] https://www.conjur.com.br/2020-out-04/gomes-muniz-decisao-absolutoria-juri-soberana

[2] AgRg no AREsp 1567450/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020.

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