Personalidade jurídica das Organizações Internacionais e o caso Folke Bernadotte

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15 de fevereiro5 min. de leitura

Como o próprio nome indica, as coletividades interestatais são entidades que nascem a partir da conjugação de vontades de dois ou mais Estados e são conhecidas como Organizações internacionais ou intergovernamentais, a seguir estudadas. As organizações internacionais são entidades criadas por acordos constitutivos multilaterais entre Estados para consecução de determinados fins e com personalidade jurídica e vontade próprias, distintas das dos seus membros.

Definição mais completa é dada por Valério Mazzuoli para quem se pode conceituar organização internacional como a “associação voluntária de sujeitos do Direito Internacional, criada mediante tratado internacional (nominado de convênio constitutivo) e com finalidades predeterminadas, regida pelas normas do Direito Internacional, dotada de personalidade jurídica distinta da dos seus membros, que se realiza em um organismo próprio e estável, dotado de autonomia e especificidade, possuindo ordenamento jurídico interno e órgãos auxiliares, por meio dos quais realiza os propósitos comuns dos seus membros, mediante os poderes próprios que lhes são atribuídos por estes”.[1]

Historicamente, passaram a ocupar papel de destaque principalmente no período subsequente à Segunda Guerra Mundial, notadamente com o surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945. É indene de dúvidas a personalidade jurídica internacional das organizações internacionais. São elas sujeitos derivados ou secundários de direito internacional público, na medida em que os Estados cedem parcela de sua soberania para a criação de uma organização com vontade própria, autônoma em relação a de seus Estados-membros criadores.

Embora tendo personalidade jurídica própria – o que não se confunde com soberania, a qual elas não possuem –, tais entidades são instrumentais, ou seja, criadas para o cumprimento de determinadas e específicas finalidades objetivadas pelos Estados, razão pela qual suas competências limitam-se ao fim para a qual foram criadas (princípio da especialidade).

Partindo-se da ideia acima, pode-se afirmar, como já feito alhures, que somente os Estados possuem soberania e personalidade plena. As organizações internacionais estão a serviço daqueles e não o contrário, embora possam impor obrigações aos seus Estados-partes, que devem respeitá-las, justamente porque cedem parte de suas competências funcionais a elas.

Com a sua criação, ipso facto, ela adquire personalidade jurídica internacional, sem que isso precise estar dito expressamente no seu ato constitutivo, ou seja, serão dotadas de personalidade jurídica internacional, mesmo que isso não esteja expressamente previsto em seu tratado constitutivo.

A título exemplificativo pode-se mencionar a própria ONU. Na Carta da ONU não há nenhum dispositivo expressamente lhe atribuindo personalidade jurídica internacional, mas, mesmo assim, a própria Corte Internacional de Justiça admitiu, em seu Parecer de 1949 no caso Folke Bernadotte, que os Estados-membros da ONU a criaram como sendo dotada não apenas de personalidade reconhecida tão somente por eles, mas de personalidade internacional objetiva, tendo por base também a teoria dos poderes implícitos.

Sobre o caso, leciona Antônio Augusto Cançado Trindade que a Corte Internacional de Justiça, com base na teoria dos poderes implícitos, reconheceu a personalidade jurídica internacional da ONU e sua capacidade de apresentar reclamações internacionais contra um Estado responsável, com vistas a obter reparação de danos causados a seus agentes no exercício de suas funções. Afirmou que “os direitos e deveres de uma entidade como a Organização devem depender de seus propósito e funções, especificados ou implícitos em seus documentos constitutivos e desenvolvidos na prática”. Acrescentou a Corte que “de acordo com o direito internacional, deve-se considerar a Organização como possuidora de poderes que, embora não expressamente constantes da Carta, são-lhe atribuídos pela necessária implicação de que são essenciais ao desempenho de suas tarefas”.[2] (gn)

Vale asseverar que no caso Folke Bernadotte a Corte Internacional de Justiça atuou no exercício de sua função ou competência consultiva e não contenciosa, até mesmo porque somente os Estados podem submeter uma controvérsia à Corte Internacional de Justiça (CIJ). As organizações internacionais, como a ONU, não poderão postular perante esse órgão, a não ser quando se tratar da função ou competência consultiva (e não jurisdicional) da Corte, como se deu no caso Bernadotte.

Mas, em regra, dentre as capacidades reconhecidas às Organizações Intergovernamentais, estão a de celebrar tratados necessários para o cumprimento de seus objetivos, a de enviar e receber representantes diplomáticos e a de postular em contenciosos perante Tribunais Internacionais.

Portanto, embora dotadas de personalidade jurídica internacional e de poderem demandar Estados perante órgãos jurisdicionais internacionais, não poderá fazê-lo na Corte Internacional de Justiça, pois o Estatuto da Corte Internacional de Justiça estabelece em seu artigo 34 que “só os Estados poderão ser partes em questões perante a Corte”, de modo que resta vedada a demanda por organizações internacionais perante a CIJ.

Não obstante, no exercício de função consultivaa Corte poderá dar parecer consultivo sobre qualquer questão jurídica a pedido do órgão que, de acordo com a Carta nas Nações Unidas ou por ela autorizado, estiver em condições de fazer tal pedido” (art. 65 do Estatuto). Mas, é bom frisar, em termos de contencioso resta proibida a demanda por parte das organizações internacionais, pois como órgão jurisdicional, ela tem como função a solução de controvérsias existentes entre Estados.

Como se vê, cuidam-se de realidades eminentemente jurídicas, pois sua existência surge com tratado constitutivo, que lhe dá vida. Nesse ponto diferem dos Estados, que podem sobreviver sem estar condicionados à existência de uma Constituição, por ser um aglomerado humano a viver em certa base territorial.[3] Portanto, justamente por não poderem ter existência sem a materialização da vontade dos Estados em conjunto, são considerados sujeitos derivados, mediatos ou secundários.

Contudo, para que possuam personalidade jurídica própria não é preciso que seu tratado constitutivo diga isso expressamente, pois a sua própria criação é suficiente. Logo, as associações intergovernamentais serão dotadas de personalidade jurídica internacional, ainda que tal qualidade não esteja expressamente prevista em seu tratado constitutivo.

A existência em si da Organização surge com a entrada em vigor de seu tratado constitutivo, momento a partir do qual ela poderá decidir autônoma e livremente sem se vincular à vontade de seus Estados-membros, ou seja, a personalidade é aferida na prática. Assim, as organizações adquirem personalidade jurídica de direito internacional no momento em que efetivamente começa a funcionar de forma autônoma.

Mas, a capacidade de uma organização internacional para concluir tratados (jus tractuum) é regida pelas regras de cada organização (art. 6º, da Convenção de Viena de 1986, sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais) (não ratificada pelo Brasil, mas aplicável entre nós por força do costume), ou seja, a capacidade de celebrar tratados não deriva da sua mera existência, pois deve estar expressa em seu ato constitutivo.

Embora a personalidade jurídica da organização internacional decorra do seu mero funcionamento e ainda que a capacidade de celebrar tratados deva estar expressa em seu ato constitutivo, entende-se que sem a capacidade de firmar tratados não há que se falar em personalidade internacional das organizações internacionais, pois o “treaty-making power (capacidade de celebrar tratados) das organizações internacionais é o fator indicativo mais expressivo de sua personalidade internacional”.[4]

Nota-se que ao se um paralelo entre os Estados e as Organizações Internacionais, pode-se afirmar que o estado possui uma realidade física evidenciada pela conjugação de dois fatores: i) territorial e ii) pessoal. Evidencia-se, assim, por um espaço territorial sobre o qual vive uma comunidade de seres humanos. Por outro lado, a Organização Internacional carece dessa dupla dimensão material (territorial e pessoal), pois ela é produto exclusivo de uma elaboração ou realidade jurídica resultante da vontade conjugada de certo número de Estados, que lhes dão vida por meio de um tratado constitutivo.

Por isso está correta a doutrina ao afirmar que o tratado constitutivo de toda organização internacional tem, para ela, importância superior à da Constituição para o Estado, pois a existência desse último não parece condicionada à existência de um diploma básico, que não passa de um cânon jurídico dessa ordem. A organização internacional, de seu lado, é apenas uma realidade jurídica: sua existência não encontra apoio senão no tratado constitutivo, cuja principal virtude não consiste, assim, em lhe disciplinar o funcionamento, mas em haver-lhe dado vida, sem que nenhum elemento material preexistisse ao ato jurídico criador.[5]

Referências

[1] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional do trabalho, p. 535.

[2] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 6. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2014, p. 15.

[3] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. cit., p. 354.

[4] Idem, p. 542.

[5] REZEK, José Francisco. Op. cit., p. 145-146.

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