A matéria veiculada noticia que o grande professor Nelson Nery, ao participar do Congresso Processo Civil e Fazenda Pública, promovido pela Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, teria afirmado que “não existe isso de pré-questionamento, pois os artigos 102, III (RE), e 105, III (REsp), da Constituição não estabelecem esse requisito para a interposição de tais recursos. O que os dispositivos exigem é que a matéria tenha sido decidida em única ou última instância (…)”.
Ainda que não se mostre equivocada tal afirmação, me parece, com todas as vênias e respeito do aluno que se dirige ao professor, que ela desconsidera a definição de pré-questionamento historicamente concebida e que explica que pode tal fenômeno ser encarado não só como sinônimo de “causa decidida”, mas também como questionamento prévio das partes.
É que a Constituição de 1891 foi o primeiro diploma a cuidar do recurso extraordinário. No seu artigo 59, III, parágrafo 1º, alínea “a”, previa como condição do cabimento de recurso ao Supremo Tribunal Federal que “quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais se a decisão do tribunal dos Estados for contra ela”. A mesma Carta, no inciso II, utilizava também a expressão “questões resolvidas” para delimitar o que competia ao Supremo Tribunal Federal julgar em grau de recurso.
Conforme interpretação literal do dispositivo constitucional, para que fosse cabível o recurso extraordinário, era necessário a) que a questão tivesse sido resolvida; b) que houvesse questionamento sobre a validade de tratado ou lei federal; e c) que a decisão recorrida fosse contrária à validade de tratado ou lei federal. Esse entendimento atrelava o conhecimento do recurso excepcional, no caso o recurso extraordinário, ao anterior questionamento da matéria pelas partes perante o órgão inferior.
A Constituição Federal posterior, promulgada em 1934, manteve o pré-requisito de que houvesse questionamento sobre a validade de tratado ou lei federal, mas substituiu a expressão “questões resolvidas” por “causa decidida”.
Ambas foram mantidas nas Constituições que se seguiram até a entrada em vigor da Constituição de 1946, que não trazia mais a expressão “questionamento”. Já o termo “causas decididas” foi adotado por todas as Constituições desde 1946, inclusive pela de 1988, que vinculou a expressão tanto ao recurso extraordinário como ao recurso especial.
De fato, a retirada definitiva da expressão “questionamento” dos textos constitucionais desde 1967 parece revelar que o legislador constituinte da época pretendia afastar definitivamente a exigência do pré-questionamento, já que a cláusula “causa decidida” era a exigência que de fato deveria condicionar o conhecimento do recurso extraordinário. A história confirma o acerto dessa afirmação, na medida em que o que sempre foi exigido é que a decisão recorrida tratasse do tema objeto do recurso extraordinário, mesmo no writ of error do Direito inglês e do Direito norte-americano, em que sempre se pressupõe a existência de “erro” que aparecesse no record (registro) da decisão recorrida.
Contudo, a ausência da referida cláusula não impediu o Supremo Tribunal Federal de manter historicamente, na sua jurisprudência, a orientação de exigir dos recorrentes a demonstração do pré-questionamento como uma condição para o conhecimento do recurso extraordinário, ante o entendimento de que a exigência estaria implícita no texto constitucional.
Nesse cenário, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (e depois pelo Superior Tribunal de Justiça) passaram a fazer referência ao pré-questionamento não só como o prévio questionamento das partes, mas também como a manifestação pelo órgão a quo da questão constitucional ou infraconstitucional. Assim, ao longo do tempo, a expressão pré-questionamento passou a referir-se também à necessidade de que constasse na decisão impugnada a questão federal ou constitucional suscitada no recurso excepcional.
Logo, o entendimento acerca do conceito de pré-questionamento passou a englobar o sentido de que a decisão recorrida tivesse adotado entendimento explícito sobre o tema de direito federal. O pré-questionamento deixou de ser encarado como uma decorrência da postulação anterior (questionamento) das partes na instância inferior, mas como decorrência de constar na decisão recorrida a matéria objeto do recurso extraordinário (causa decidida).
Dessa evolução conceitual retiramos as diversas concepções acerca do que se tem entendido por pré-questionamento: (1) o pré-questionamento ocorre com a manifestação expressa do tribunal de segundo grau acerca de determinado tema; (2) o pré-questionamento configura-se com o debate anterior à decisão recorrida acerca do tema de direito federal ou constitucional, hipótese em que é, muitas vezes, considerado um ônus atribuído à parte; e (3) a soma dos dois entendimentos, considerando, então, pré-questionamento como o prévio debate acerca do tema de direito federal ou constitucional, seguido de manifestação expressa do tribunal a respeito do tema.
Assim, a afirmação de que o pré-questionamento não é requisito para RE ou REsp, uma vez que o que consta na Constituição Federal é a exigência de matéria tenha sido decidida, parece não levar em conta nem a concepção que historicamente foi atribuída a esse fenômeno, que fez com que viesse a ser encarado também como sinônimo de “causa decidida”, nem uma das outras modalidades de configuração do “pré-questionamento” que está diretamente ligadas a prévia manifestação das partes e desvinculadas do que consta efetivamente na decisão recorrida: o denominado “pré-questionamento ficto”, que, além de ser majoritariamente aceito pelo STF, foi recentemente positivado pelo CPC/2015 no seu artigo 1.025.
Desse modo, ainda que concorde com o grande professor Nelson Nery, diante das explicações históricas desse fenômeno, sou obrigado a afirmar que o pré-questionamento, seja ele sinônimo de “causa decidida”, seja ele na modalidade ficta, é e sempre foi requisito para RE ou REsp.
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