Vamos tratar de um tema extremamente importante e que era bastante aguardado por parcela significativa da doutrina. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4911, ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), concluindo pela inconstitucionalidade do art. 17-D da Lei de Lavagem de Capitais.
De acordo com o referido dispositivo, “em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno“.
Apesar do registro do entendimento sem sentido contrário dos vencidos Ministros Edson Fachin[1] e Carmen Lucia, a maioria dos Ministros da Corte refutaram a constitucionalidade da norma, revelando-se em descompasso com a presunção de inocência a ideia de mero indiciamento nos crimes de lavagem acarretarem afastamento AUTOMÁTICO de servidor público.
Segundo a compreensão majoritária, a determinação do afastamento automático do servidor investigado, por consequência única e direta do indiciamento pela autoridade policial, não se coaduna com o texto constitucional, uma vez que o afastamento do servidor, em caso de necessidade para a investigação ou instrução processual, somente se justifica quando demonstrado nos autos o risco da continuidade do desempenho de suas funções e a medida ser eficaz e proporcional à tutela da investigação e da própria administração pública, circunstâncias a serem apreciadas pelo Poder Judiciário.
Reputou-se violado o princípio da proporcionalidade quando não se observar a necessidade concreta da norma para tutelar o bem jurídico a que se destina, já que o afastamento do servidor pode ocorrer a partir de representação da autoridade policial ou do Ministério Público, na forma de medida cautelar diversa da prisão, conforme os arts. 282, § 2º, e 319, VI, ambos do CPP.
De acordo com Min. Alexandre de Moraes, “a presunção de inocência exige que a imposição de medidas coercitivas ou constritivas aos direitos dos acusados, no decorrer de inquérito ou processo penal, seja amparada em requisitos concretos que sustentam a fundamentação da decisão judicial impositiva, não se admitindo efeitos cautelares automáticos ou desprovidos de fundamentação idônea“.
O Ministro ainda afirma que o art. 17-D da Lei 9.613/1998, objeto da presente ação, determina o afastamento do servidor público como consequência necessária e automática do indiciamento realizado pela autoridade policial, independentemente de qualquer motivação específica relacionada ao sujeito indiciado, às circunstâncias do crime investigado ou, ainda, vinculadas a medidas de caráter essencialmente cautelar destinadas à tutela de coletividade. Trata-se, assim, de medida restritiva de direitos materiais do investigado determinada sem que haja pedido por qualquer legitimado ou apreciação concreta de sua necessidade e eficácia, fundada tão somente numa consequência legal do ato de indiciamento da autoridade policial, o que não tem aderência ao texto constitucional e ao sistema acusatório.
Ademais, a Corte anotou que o indiciamento é ato dispensável para o ajuizamento de ação penal, razão pela qual a norma que determina o afastamento automático de servidores públicos, por força da opinio delicti da autoridade policial, quebraria a isonomia entre acusados indiciados e não indiciados, ainda que denunciados nas mesmas circunstâncias, além da possibilidade de arquivamento da investigação mesmo que haja indiciamento prévio.
Vale registrar que o ato de indiciamento não gera e não pode gerar efeitos materiais em relação ao indiciado, já que se trata de mero ato de imputação de autoria de natureza preliminar, provisória e não vinculante ao titular da ação penal. Sendo conclusão havida pela autoridade policial a partir das investigações, tem natureza meramente descritiva e, conforme pacífica doutrina, produz apenas efeitos sociais de indicação do indiciado como possível autor da infração penal.
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente.
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] De acordo com o Ministro, que julgou pela improcedência da ADI e, portanto, pela constitucionalidade da norma, a atribuição pelo legislador de poder cautelar à autoridade policial coaduna-se com as funções que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional, na linha da jurisprudência desta Corte que reconhece a necessidade de instrumentos para o exercício de um dever constitucional a órgãos que não exercem natureza estritamente jurisdicional. O art. 17-D, da Lei 9.613/1998 não afasta, na visão do Ministro, o princípio constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, mas apenas prevê hipótese de jurisdicionalidade diferida, garantindo simultaneamente os direitos fundamentais do indiciado, bem como o respeito às competências constitucionais do Poder Judiciário e do Ministério Público. O indiciamento é ato privativo de Delegado de Polícia e necessariamente fundamentado, não se confundindo com ato arbitrário ou mesmo discricionário da autoridade policial.
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