Território nacional, Código Penal Militar, o filme “Dunkirk” e confeitos

Avatar


24 de maio6 min. de leitura

O Código Penal Militar trabalha com os princípios da territorialidade e da extraterritorialidade na aplicação da lei penal militar, conforme o disposto no art. 7º:

Art. 7º Aplica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte no território nacional, ou fora dele, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira.

Complementa-se a previsão com a concepção de território nacional por extensão, no § 1º do artigo, que assim dispõe:

1º Para os efeitos da lei penal militar consideram-se como extensão do território nacional as aeronaves e os navios brasileiros, onde quer que se encontrem, sob comando militar ou militarmente utilizados ou ocupados por ordem legal de autoridade competente, ainda que de propriedade privada

Para o efetivo estudo desta regra, impõe-se conhecer o conceito de território nacional, mas antes, gostaria de evidenciar minha compreensão sobre a aplicação deste dispositivo.

Claro, a primeira “utilidade” do dispositivo seria definir o espaço em que a lei penal militar brasileira é aplicável – não se está tratando de processo penal militar, com regras similares para sua aplicação no art. 4º do CPPM –, mas essa “utilidade” é falsa – por isso se disse “seria” – tornando a previsão indiferente para este fim, embora o legislador não tenha percebido isso.

Explica-se: diferentemente do Código Penal comum, o CPM adotou como regra, também – como se viu –, o princípio da extraterritorialidade, de maneira que definir o espaço de cometimento do crime militar, para esse fim, é desnecessário, pois a um fato cometido no Brasil (territorialidade) será possível a aplicação da lei penal militar tanto quanto a um fato ocorrido na Espanha, na Antártica, em uma base espacial, na Lua etc. (extraterritorialidade), ressalvadas previsões em tratados e convenções das quais o Brasil seja signatário.

Mas o artigo, após alguma reflexão, possui uma real utilidade no Direito Penal Militar – repita-se, não se está a tratar de processo penal militar. Alguns crimes militares possuem como elementos típicos o território nacional ou o território estrangeiro. Os clássicos exemplos são os arts. 138 e 139 do Código Penal Militar.

No art. 138 (“Ato de jurisdição indevida”), criminaliza-se a conduta de praticar “o militar, indevidamente, no território nacional, ato de jurisdição de país estrangeiro, ou favorecer a prática de ato dessa natureza”.

O art. 139, por sua vez, criminaliza a conduta de “Violação de território estrangeiro”, tornando crime o ato de violar “o militar território estrangeiro, com o fim de praticar ato de jurisdição em nome do Brasil”.

Para a compreensão desses tipos penais, ao menos o disposto no § 1º do art. 7º, torna-se dispositivo de interpretação autêntica contextual para preencher ou excluir elemento típico. Em outras palavras, ao definir o território por extensão, o dispositivo está a auxiliar a compreensão dos elementos típicos “território nacional” e “território estrangeiro”.

Exemplificativamente, o militar que pratique, indevidamente, em um navio brasileiro, com comando militar, em águas internacionais, ato de jurisdição de país estrangeiro, ao menos em tese, terá praticado o delito do art. 138 do CPM.

Resta, então, verificar o conceito de território nacional e, fazendo jus ao título deste artigo, verificar o que o filme “Dunkirk” tem com a reflexão em curso.

Território nacional, como quer o art. 7º do CPM, certamente, refere-se a uma concepção física, mas também jurídica, por extensão. Comentando o art. 5º do CP, Rogério Sanches Cunha (2020, p. 154) dispõe que entende-se “por território nacional a soma do espaço físico (ou geográfico) com o espaço jurídico (espaço físico por ficção, por equiparação, por extensão ou território flutuante)”.

A concepção de um território físico no território nacional pode ser inaugurada com Fragoso (2004: p. 134):

[…] tal conceito é dado pelo direito público e pelo direito internacional. Não se trata de conceito geográfico, mas de conceito jurídico: território é todo espaço onde se exerce a soberania do Estado. Compreende, em primeiro lugar, o espaço territorial delimitado pelas fronteiras do país, sem solução de continuidade, inclusive rios, lagos e mares interiores, bem como as ilhas e outras porções de terra separadas do solo principal.

Assim, em primeiro aporte, o território nacional abrangido pelo caput do art. 7º do CPM compreende o espaço geográfico delimitado pelas fronteiras do País, na porção de terra contínua, mas também incluindo rios, lagos e mares interiores, ilhas e outras porções de terra separadas do solo principal.

Não há grandes problemas na definição do espaço terrestre do território nacional, porquanto as fronteiras, sejam elas naturais, artificiais ou esboçadas, estão bem demarcadas, sendo fácil o reconhecimento do território nacional, neste aspecto.

Adicione-se que, concernente ao subsolo, é possível afirmar que o território de um país alcançará o ponto que sua tecnologia possa atingir. Com efeito, nota-se uma ausência de conflitos nessa acepção do território, pois não é possível um Estado, pela exploração do seu subsolo, ameaçar a soberania de seu antípoda.

Mas não é só isso que compõe a acepção física do território nacional. Devem ser somados nessa acepção o mar territorial e o espaço aéreo.

A definição do mar territorial, na atualidade, está no art. 1º da Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, compreendendo-se como “uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil”. Uma informação adicional é a de que 12 milhas marítimas equivalem a pouco mais de 22 quilômetros (22, 224 Km).

A referida lei ainda define “zona contígua” (“compreende uma faixa que se estende das doze às vinte e quatro milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial”) e “zona econômica exclusiva” (“compreende uma faixa que se estende das doze às duzentas milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial”).

A rigor, o território nacional coincide com o mar territorial.

A respeito do espaço aéreo, o Brasil, de acordo com o art. 11 do CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei n. 7.565, de 19-12-1986), adotou a teoria da soberania sobre a coluna atmosférica, já que o limite do território coincide com a faixa de ar sobre o espaço terrestre e sobre o mar territorial.

Ainda sobre o espaço aéreo, é vedada, pelo Tratado sobre Exploração do Uso do Espaço Cósmico, a possibilidade de um Estado “se apossar, no todo ou em parte, do espaço ultraterrestre, inclusive da Lua ou de qualquer outro satélite ou planeta”. Com efeito, o artigo II do referido Tratado, promulgado pelo Decreto n. 64.362/1969, dispõe que o “espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.

Entretanto, como destacado, o território nacional também possui uma compreensão ficta, por extensão ou por equiparação.

Pelo Código Penal comum, são extensões do território nacional, nos termos de seu do art. 5º, as “embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar” (§ 1º).

Em simples comparação com o Código Penal Militar notaremos uma sensível diferença. O art. 7º do Código Castrense traz o conceito de território nacional por extensão, repita-se: “para os efeitos da lei penal militar consideram-se como extensão do território nacional as aeronaves e os navios brasileiros, onde quer que se encontrem, sob comando militar ou militarmente utilizados ou ocupados por ordem legal de autoridade competente, ainda que de propriedade privada” (§ 1º).

Nitidamente, percebe-se que há uma definição mais abrangente no Código Penal comum em relação ao Código Penal Militar, donde surge uma questão muito importante: considerando que o fim útil da definição de território nacional pela lei penal militar substantiva é possibilitar a subsunção de condutas no que se refere a elementos espaciais de tipos penais – a exemplo do mencionado crime de “ato de jurisdição indevida”, do art. 138 do CPM –, o conceito “território nacional” deve ser o que postula o Código Penal comum ou o Código Penal Militar?

Para responder a essa questão, devemos seguir em uma interpretação restritiva do sistema penal militar. Note-se que os parágrafos do art. 7º do CPM restringem a interpretação para a “aplicação da lei penal militar”, o que deve capitanear a conclusão no sentido de que a extensão dada pelo Código Penal comum é por demais abrangente, não podendo ser aplicada para a definição de território nacional na busca da tipicidade de delitos militares. O próprio sistema penal militar, norma especial pela tutela específica de certos bens jurídicos, cuidou de limitar o entendimento do intérprete, não sendo correto estender a interpretação, mormente para buscar uma ampliação do tipo penal.

Não estará em prática do delito do art. 138 do CPM, v. g., o militar que, embarcado em um navio mercante não comandado por autoridade militar, nem militarmente utilizado ou ocupado por ordem legal de autoridade competente, em alto-mar, colabore com a apreensão de um bem em cumprimento a ordem judicial de autoridade judiciária estrangeira, uma vez que, embora abrangida a situação pela ficção criada pelo § 1º do art. 5º do CP comum, está ela fora das situações definidoras do território brasileiro por extensão, trazidas pelo § 1º do art. 7º do CPM.

Mas e o título do artigo? E o filme “Dunkirk”? E os confeitos?

Vamos lá!

O filme “Dunkirk”, escrito, coproduzido e dirigido por  Christopher Nolan, distribuído pela Warner Bros, é ambientado na II Guerra Mundial e se refere à “Operação Dínamo” (“Milagre de Dunquerque”). Essa Operação revela um dos episódios da Guerra em que foi necessária a evacuação de militares aliados de Dunquerque, cidade portuária no norte da França, para a cidade de Dover, no litoral inglês, entre 26 de maio e 4 de junho de 1940. Em uma das ações, mostradas no filme, pequenos navios da cidade de Ramsgate, na Inglaterra – cerca de 700 a 850 embarcações –, de propriedade particular, foram empregados na operação militar de evacuação. Como saldo da operação – não só dos navios particulares – cerca de 340 mil militares foram salvos.

Pois bem, se um episódio semelhante envolver o Brasil como parte, por exemplo, requisitando e empregando navios particulares em um resgate, teríamos embarcações militarmente utilizadas, que seriam consideradas extensão do território brasileiro, pelo § 1º do art. 7º do CPM. A bordo desse navio, por exemplo, seria possível praticar o delito do art. 138 do CPM.

Mas, em verdade, o filme “Dunkirk” foi citado aqui apenas para aguçar sua curiosidade e fazer com que, em época de reclusão por conta da Pandemia, você saia um pouco do livro e, no momento de folga, assista a um excelente filme.

“Mas e os Confeitos?”, você me pergunta.

Os confeitos apareceram aqui para acompanhar o filme, já que eu odeio pipoca.

Bom filme!

Referências:

 

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. Salvador: Jus Podivm, 2020.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. São Paulo: Forense, 2004.

Avatar


24 de maio6 min. de leitura