Testemunha “de Ouvir Dizer” (hearsay testimony) e a pronúncia nos crimes dolosos contra a vida: atenção ao STJ!

Avatar


16 de abril3 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo com vocês?

Vamos tratar de um tema “com cara de prova” e que muita gente não domina no âmbito do processo penal. E se você quer se antecipar a questões de concurso, redobra as atenções porque desse assunto podemos vislumbrar vários enunciados a serem criados pelo seu examinador, tanto no tópico “provas em espécie”, como também (especialmente) nas assertivas relacionadas ao procedimento do Tribunal do Júri.

Antes de analisar um entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade (ou não) de pronúncia calcada exclusivamente em “testemunha de ouvir dizer”, temos que saber o que danado essa expressão significa, não é mesmo?

Testemunha de ouvir dizer ou “HEARSAY TESTIMONY se verifica quando determinada pessoa vem, no curso da instrução processual, prestar depoimento acerca de fatos direta ou indiretamente relacionados à prática delitiva, sem, contudo, ter visto ou presenciado qualquer situação relacionada ao caso concreto, sem contato direto com os fatos, mas a fim de retratar e/ou “explicar” o que tomou conhecimento “através de terceiros”.

Pedro, isso é possível no sistema processual penal brasileiro?

SIM! Particularmente, não tenho a menor simpatia por esse instrumento, mas por dever de ofício tenho obrigação de consignar que prevalece o entendimento quanto à admissibilidade. No entanto, em uma prova de Defensoria Pública (ATENÇÃO), se você quiser questionar a legitimidade dessa prova, o melhor argumento para tanto é a violação concreta ao contraditório via exame cruzado das provas testemunhais (art. 212 CPP), já que restará inviabilizado o pleno confrontamento dos fatos, já que aquela testemunha “nada sabe, apenas ouviu dizer”, certo?

Anote-se, ademais, que normativamente a testemunha deveria prestar depoimento acerca do que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius, fato esse que impede, em alguns sistemas – como o norte-americano – o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). Já vimos, acima, que não é o caso do Brasil, em que se admite (ao menos excepcionalmente) tal modalidade de prova. Ainda assim, vale registrar a pertinente crítica de Hélio Tornaghi, que assevera que esse tipo de depoimento “não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica .Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta[1].

No Recurso Especial 1.373.356[2]/BA, o STJ se deparou com interessantíssima situação envolvendo a “testemunha de ouvir dizer”. Tratava-se de caso em que, em procedimento do Júri, houve decisão de pronúncia exclusivamente calcada em uma “testemunha de ouvir dizer”, cuja oitiva se dera exclusivamente na fase inquisitorial das investigações preliminares!

E o que decidiu o STJ?

Nesse caso concreto, fora cunhada a conclusão de que não se pode admitir a pronúncia do réu, dada a sua carga decisória, sem qualquer lastro probatório colhido em juízo, fundamentada exclusivamente em prova colhida na fase inquisitorial, mormente quando essa prova se encontra isolada nos autos.

Segundo bem anotou o Relator (Ministro Rogério Schietti Cruz), no caso ora analisado pode-se inferir que, além de a pronúncia não ter supedâneo em qualquer “prova judicializada” (apenas em testemunha de ouvir dizer ouvida na investigação), há o agravante de que os únicos testemunhos judiciais produzidos não apontam os recorrentes como autores do delito. Na verdade, o Tribunal estadual destaca que mesmo os depoimentos produzidos na fase inquisitorial são “relatos baseados em testemunho por ouvir dizer, […] que não amparam a autoria para efeito de pronunciar os denunciados“.

Segundo o STJ, nesse julgamento, a decisão de pronúncia é um mero juízo de admissibilidade da acusação, não sendo exigido, neste momento processual, prova incontroversa da autoria do delito; bastam a existência de indícios suficientes de que o réu seja seu autor e a certeza quanto à materialidade do crime. Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia sem qualquer lastro probatório, mormente quando os testemunhos colhidos na fase inquisitorial são, nas palavras do Tribunal a quo, “relatos baseados em testemunho por ouvir dizer, (…)que não amparam a autoria para efeito de pronunciar os denunciados”.

Atenção! Não se refutou a possibilidade da testemunha de ouvir dizer no processo penal pátrio – antes o contrário. Ela é admitida. Entretanto, quando um testemunho dessa estirpe for o único e isolado indicativo de autoria delitiva, tal não será suficientemente apto a sustentar uma decisão de pronúncia.

Espero que tenham gostado! Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

[1] TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.461.

[2] REsp 1373356/BA, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2017.

Avatar


16 de abril3 min. de leitura