O habeas data é uma ação constitucional, de natureza civil, prevista no inciso LXXII do art. 5º, destinado a assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público (alínea “a”) e para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo (alínea “b”). A Constituição Cidadã foi a primeira a prever o instituto.
Pela Lei n. 9.507, de 12 de novembro de 1997 há uma terceira hipótese de cabimento, a saber, para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável (inciso III do art. 7º).
Tem-se aceito como sua origem o Freedom of Information Act, de 1974, na legislação norte-americana que teve o objetivo de proteger o direito à intimidade e a abusiva manipulação de informações. Em 1986, o Congresso norte-americano aprovou o Freedom of Information Reform Act com o fito de possibilitar que particulares pudessem acessar informações constantes de registros públicos ou particulares (MARTINS, p. 900).
Fácil perceber que sua aplicabilidade é extremamente restrita, não abarcando casos de impugnação de atos processuais, nem mesmo sendo interessante sua menção no estudo do processo penal militar, ficando a cargo do Direito Constitucional e do Direito Administrativo tecer comentários mais detidos.
Entretanto, uma situação peculiar surgiu no âmbito da Justiça Militar da União que faz o remédio digno de nota, ainda que breve. Trata-se da inclusão do julgamento de habeas data na competência monocrática do juiz federal da Justiça Militar, pela Lei n. 13.774/18, que trouxe o inciso I-C ao art. 30 da Lei n. 8.457/92.
Pela redação, compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente “julgar os habeas corpus, habeas data e mandados de segurança contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar, exceto o praticado por oficial-general”.
A título primeiro de comparação, embora a alteração legislativa não as afete, nas Justiças Militares Estaduais e do Distrito Federal, ainda que com dificuldade, é possível idealizar a hipótese de cabimento de habeas data em primeira instância, dada a competência cível dessas justiças especializadas, a abranger, após a Emenda Constitucional n. 45/08, o processamento e julgamento de ações judiciais contra atos disciplinares (art. 125, § 4º, CF).
Eventualmente, é possível que a administração militar de uma Força Auxiliar, grafe em assentamento individual do militar uma informação específica que está incorreta ou que não deveria ali constar.
Um caso bem interessante, seria o lançamento de uma repreensão escrita em assentamentos individuais de militar punido em boletim reservado, quando a norma disciplinar diz que essa transcrição somente pode ocorrer quando a nota de punição constar expressamente essa medida (“…devendo esta punição constar de assentamento individual…”), como disciplinava o antigo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Decreto-lei n. 13.657, de 9 de novembro de 1943.
Esse antigo Regulamento, hoje já substituído pela Lei Complementar n. 893/2001, dispunha em seu art. 19, § 2º que “A repreensão em boletim reservado só será averbada em assentamentos, se do mesmo boletim constar expressamente esta circunstância, devendo-se, entretanto, no caso de não averbação, proceder de conformidade com o parágrafo anterior”.
Pois bem, retomando o exemplo, caso um oficial ou sargento, punido em boletim reservado, tenha a transcrição em assentamentos, poderia pedir à administração militar a correção desse lançamento e, diante da negativa, caberia habeas data na Justiça Militar, em primeiro grau, vez que se trata de uma ação contra um ato disciplinar – entenda-se, disciplinado por Regulamento Disciplinar –, um efeito da punição que pode, por exemplo, induzir à reincidência disciplinar, que, compreende-se, poderia ser tomado como um ato disciplinar, digno de impugnação na moldura genérica do art. 125, § 5º, da Constituição Federal (“ Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares”).
Entretanto, nem mesmo nas Justiças Militares Estaduais a questão é pacífica, havendo previsão do remédio em Regimento Interno dos Tribunais de Justiça Militar do Rio Grande do Sul (ex.: art. 6º, VII, “b”) e de Minas Gerais (ex.: art. 12, I, “h” e arts. 177 a 179), nitidamente apenas em segundo grau, enquanto que o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo sequer menciona o remédio.
Neste último Regimento, na versão de 2017, não há previsão do habeas data, mas apenas do habeas corpus (arts. 92 a 96) e do mandado de segurança (arts. 97 e 98), evidenciando que, para aquela Corte não há a possibilidade, ao menos em primeira análise, de seu cabimento na Justiça Castrense. A compreensão se confirma quando se analisa o Provimento n. 003/06 que traz orientação normativa para a primeira instância apenas nos casos de habeas corpus e de mandado de segurança, não mencionando o habeas data.
Voltando os olhos, novamente, à Justiça Militar da União, a possibilidade de habeas data é ainda mais remota em segunda instância e inexistente em primeira instância, vez que sua competência está delimitada no art. 124 da Constituição Federal, notadamente uma competência criminal militar. Nas diminutas possibilidades de impetração no Superior Tribunal Militar conseguiu-se encontrar, em pesquisa no sítio eletrônico, o seguinte julgado:
HABEAS DATA. CONHECIMENTO PARCIAL. GARANTIA CONSTITUCIONAL. INFORMAÇÕES FORNECIDAS PELO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. – Assegura o Habeas Data o direito ao conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, conforme estatui o art. 5º, inciso LXXII, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988. – Pedido de Habeas Data contra atos da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN e do Juízo da Auditoria da 7º CJM. Não conhecido quanto ao ato praticado por Órgão do Poder Executivo. Competência da Justiça Federal. – As informações fornecidas pela Auditoria Militar demonstram que o referido Juízo não detém o arquivo dos processos anteriores ao ano de 1980. – Em observância ao princípio da economia processual e por ser sabido que as informações encontram-se disponíveis no Superior Tribunal Militar, determina-se o atendimento da solicitação do impetrante, pela Secretaria Judiciária. HABEAS DATA CONHECIDO PARCIALMENTE. ORDEM CONCEDIDA. DECISÃO UNÂNIME (STM, Habeas Data n. 2008.01.000016-9, Rel. Min. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, j. 09/09/2008).
Importante destacar que o julgado acima conheceu o habeas data apenas no que concerne ao ato do juiz federal, na época juiz-auditor, mas não em relação ao ato da autoridade administrativa, em função de sua incompetência. Firme-se, então, que, na época, foi assentada a incompetência da Justiça Militar da União para conhecer de habeas data diante de ato de autoridade administrativa, sendo competente a Justiça Federal.
Exatamente aqui surge a impropriedade da alteração legislativa apontada no início. Como dito, em 2018, a Lei n. 13.774/18, inaugurou competência monocrática de primeiro grau para julgar habeas data contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar (art. 30, I-C, da Lei n. 8.457/92, com a redação da Lei n. 13.774/18), exceto o praticado por oficial general, ou seja, negou a premissa anteriormente fixada segundo a qual a Justiça Militar da União não possui competência para apreciar ato de autoridade administrativa em sede de habeas data.
Ora, se nem o STM possui essa competência, por que a possuiria o juízo de primeiro grau?
Assim, entende-se inaplicável a nova disposição trazida pela Lei n. 13.774/18, ainda mais diante da expressão “em razão da ocorrência de crime militar”, constante do texto legal.
Referências:
MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2019.
Cícero Robson Coimbra Neves
Promotor de Justiça Militar na Procuradoria de Justiça Militar de Santa Maria/RS. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Membro colaborador da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenador de Ensino do Ministério Público Militar junto à Escola Superior do Ministério Público da União. Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA).
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