ATENÇÃO! Será que as qualificadoras no homicídio podem ser reconhecidas a partir exclusivamente de “testemunho de ouvir dizer”?

Por
5 min. de leitura

Olá pessoal, tudo certo?

Hoje falaremos de um tema que vem sendo recorrentemente analisado no Superior Tribunal de Justiça e que, mais recentemente, sofreu uma importante guinada em sentido diverso ao que restara anteriormente majoritário na referida Corte.

Refiro-me, claro, à (in)aplicabilidade do art. 155 do Código de Processo Penal[1] às sentenças proferidas pelo Tribunal do Júri. Vale destacar que o STJ, no ano de 2021, pacificou o seu entendimento no sentido de não se admitir a decisão de pronúncia quando pautada exclusivamente em testemunhos indiretos, “de ouvir dizer”. Apesar de a análise aprofundada dos elementos probatórios ser feita somente pelo Tribunal do Júri, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir dizer) como prova idônea, de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal Popular[2].

Em semelhante sentido, o Tribunal da Cidadania já cunhou que “a norma segundo a qual a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas – como o norte-americano – o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). No Brasil, embora não haja impedimento legal a esse tipo de depoimento, “não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica. Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta” (Helio Tornaghi)”. É fato que, em nosso país, não há vedação à testemunha de ouvir dizer, porém ela – isoladamente – não serve de substrato para justificar uma decisão de pronúncia do procedimento do júri.

Entretanto, o que se almeja esclarecer no presente artigo é, essencialmente, se o art. 155 do CPP ― ao proibir que a condenação se fundamente apenas em elementos colhidos durante a fase inquisitorial ― tem aplicação às sentenças proferidas pelo tribunal do júri? Ou seja, podem os jurados condenar o réu tomando por base exclusivamente indícios reunidos no inquérito policial, não confirmados em sede judicial e sob o crivo do contraditório?

Tradicionalmente, consoante o entendimento da 5ª e 6ª Turmas deste STJ, o art. 155 do CPP não se aplica aos vereditos do tribunal do júri. Isso porque, tendo em vista o sistema de convicção íntima que rege seus julgamentos, seria inviável aferir quais provas motivaram a condenação. Segundo os referidos órgãos colegiados, não obstante a jurisprudência da Corte entender que o art. 155 do Código de Processo Penal seja aplicado a todos os procedimentos penais, o Conselho Popular pode condenar o réu até por íntima convicção, não sendo, portanto, possível afirmar quais provas foram valoradas para a condenação do agente. Inviável, portanto, a análise referente à violação ao art. 155 do CPP[3].

Entretanto, consoante verificado, cada vez mais tem se verificado a importância da prova no âmbito do Tribunal do Júri. Além de retromencionada superação de entendimento quanto à possibilidade de pronúncia pautada exclusivamente em testemunho indireto (de ouvir dizer), recentemente o Tribunal decidiu que, quando a apelação defensiva contra a sentença condenatória é interposta com fundamento no art. 593, III, “d”, do CPP, o Tribunal tem o dever de analisar se pelo menos existem provas de cada um dos elementos essenciais do crime, ainda que não concorde com o peso que lhes deu o júri. Caso falte no acórdão recorrido a indicação de prova de algum desses elementos, há duas situações possíveis: (I) ou o aresto é omisso, por deixar de enfrentar prova relevante, incorrendo em negativa de prestação jurisdicional; (II) ou o veredito deve ser cassado, porque nem mesmo a análise percuciente da Corte local identificou a existência de provas daquele específico elemento. No homicídio qualificado pela torpeza (art. 121, § 2º, I, do CP), os motivos são um elemento objetivo-normativo do tipo. A autoria, contudo, com eles não se confunde, por integrar a tipicidade objetivo-descritiva. Consequentemente, a presença de prova do suposto motivo não supre a ausência de prova da autoria. A simples existência de prova testemunhal de uma desavença prévia entre a ré e a vítima, conquanto possa consistir em motivo torpe na visão dos jurados, não basta para provar a autoria delitiva. Não há no acórdão recorrido a indicação de nenhum elemento concreto que sugira ser a ré autora intelectual do delito. Seu desentendimento histórico com a vítima, embora possa torná-la suspeita e impulsionar uma investigação mais detida (que não ocorreu), não autoriza presumir a autoria do homicídio[4].

Mas e a aplicação do art. 155 do CPP em relação às sentenças do Tribunal do Júri?

Percebamos que, tecnicamente, a condenação de alguém calcada apenas em evidências descortinadas pelo inquérito policial permitiria que uma pessoa fosse condenada sem provas. Consoante anotam Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, “material produzido na fase de investigação não pode ser considerado prova. Ao menos, em princípio.
A fase de investigação, como se sabe, é destinada à formação do convencimento do órgão da acusação e não do magistrado. Na aludida fase, não há preocupação com o contraditório, até mesmo porque sequer se exerce a defesa do acusado. Não há ali, à evidência, ampla defesa. A partir de uma notitia criminis, avança-se para uma apuração sumária de seus elementos comprobatórios, sempre voltada para o convencimento do órgão responsável pelo juízo acusatório. Esse, o juízo acusatório, pode ser positivo, em que há o oferecimento da denúncia ou queixa, ou negativo, hipótese em que se requer o arquivamento da investigação, quaisquer que sejam os seus fundamentos. Apenas o material produzido em Juízo é que, a rigor, constituiria prova, abrindo-se necessariamente ao contraditório e à ampla defesa, com efetiva participação da defesa. Em princípio, portanto, apenas a prova se prestaria ao convencimento judicial, não cumprindo essa missão os chamados elementos informativos da fase investigatória”[5].

Destarte, recusar a incidência do referido dispositivo aos vereditos condenatórios equivaleria, na prática, a exigir um standard probatório mais rígido para a admissão da acusação do que aquele aplicável a uma condenação definitiva. Consoante o entendimento firmado no julgamento do AREsp 1.803.562/CE (já mencionado), embora os jurados não precisem motivar suas decisões, os Tribunais locais – quando confrontados com apelações defensivas – precisam fazê-lo, indicando se existem provas capazes de demonstrar cada elemento essencial do crime.

Se o Tribunal não identificar nenhuma prova judicializada sobre determinado elemento essencial do crime, mas somente indícios oriundos do inquérito policial, há duas situações possíveis: ou o aresto é omisso, por deixar de analisar uma prova relevante, ou tal prova realmente não existe, o que viola o art. 155 do CPP.

No caso concreto, ora analisado, o recorrente foi condenado por homicídio qualificado pela paga e pelo recurso que dificultou a defesa da vítima (art. 121, § 2º, I e IV, do CPP). A insurgência defensiva voltou-se, exclusivamente, contra as qualificadoras, por entender o réu que apenas um depoimento prestado na esfera policial deu suporte à narrativa acusatória nesse ponto. Entretanto, conforme verificado pela 5ª Turma, o único elemento de convencimento que se tinha em relação às qualificadoras era, justamente, uma depoimento indireto (de ouvir dizer), extrajudicialmente.

Ora, quando o testemunho é indireto, também conhecido como testemunho de “ouvir dizer” ou hearsay testimony, na expressão de língua inglesa, ele sequer serve para lastrear isoladamente uma pronúncia, razão pela qual – com mais rigor – deve-se refutar a possibilidade de sustentar uma condenação, ainda que emanada pelo Tribunal do Júri, orientado pelo sistema da íntima convicção. Considerando que, mesmo não havendo impugnação quanto à autoria delitiva, não se revela possível decotar as qualificadoras, sob penal de usurpação de competência pelo Tribunal, deve-se instaurar um novo júri[6].

Trata-se de uma tendência, porém será necessário aguardar e acompanhar a evolução do tema a fim de verificar se prevalecerá, inclusive na 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça!

Anotem mais essa e vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 


[1] Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.

[2] STJ, 5ª Turma, HC 673.138-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 14/09/2021 e 6ª Turma. REsp 1649663/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/09/2021.

[3] AgRg no HC n. 454.895/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 18/09/2018 e AgRg no HC 489.737/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 05/08/2019.

[4] AREsp 1803562/CE, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021

[5] Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 473

[6] (…) Uma vez reconhecido pelo Tribunal, em recurso de apelação, que a qualificadora do meio cruel foi indevidamente reconhecida pelo Tribunal do Júri, competia-lhe determinar a realização de novo julgamento, pois não lhe é franqueado decotar da condenação a referida qualificadora, em respeito à soberania dos veredictos (Precedentes). 3. Agravo regimental desprovido” (AgRg no REsp 1657757/MT, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 14/05/2019).

 

Por
5 min. de leitura