A nova Lei de Abuso de Autoridade e a revogação tácita da majorante do crime militar de violação de domicílio do § 2º do art. 226 do CPM!

É importante conhecer a Lei 13869/2019, também conhecida como a nova lei de abuso de autoridade, suas principais disposições e a relação com o art. 226 do CPM. Confira abaixo!

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23 de agosto4 min. de leitura

Em outra ocasião, também confrontando a nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13869/2019) com o delito de violação de domicílio, firmou-se que a novel legislação não inovou o conceito de dia ou de noite, para o fim de condicionar o ingresso no domicílio, texto que recomendamos ao leitor que acesse neste Blog.

Pois bem, agora a discussão é diferente, pois se trata de avaliar se essa mesma Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 226 do Código Penal Militar, verbis:

Violação de domicílio

Art. 226. Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena – detenção, até três meses.

[…].

Agravação de pena

§ 2º. Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por militar em serviço ou por funcionário público civil, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades prescritas em lei, ou com abuso de poder.

Com redação muito próxima, estava o § 2º do art. 150 do Código Penal, nos seguintes termos:

Violação de domicílio

Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.

[…].

§ 2º – Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.

Ocorre que o crime do art. 22 do da Lei de Abuso de Autoridade, já contém por elementos constitutivos do tipo, ainda que por extensão, a condição de funcionário público – condição sem a qual o crime de abuso de autoridade não ocorre, nos termos dos arts. 1º e 2º da mesma Lei –, assim como a conduta violadora fora das condições estabelecidas em lei ou sem autorização judicial, o que leva à análise se haveria a revogação da majorante.

Aliás, discute-se até mesmo se o crime de violação de domicílio não teria sido revogado pela nova Lei de Abuso de Autoridade.

Em relação do Código Penal comum, tem-se que não houve revogação do art. 150, uma vez que o art. 22 da nova Lei de Abuso de Autoridade é específico para agentes públicos (crime próprio), ao passo que o artigo 150 do CP é crime comum, passível de ser cometido por qualquer pessoa que viole domicílio alheio (um vizinho que invada o domicílio do outro, por exemplo).

Nessa linha, dispõe Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 361), ao comentar o art. 44 da Lei de Abuso de Autoridade:

b) causa de aumento de pena do § 2º do art. 150 do Código Penal: consoante previsto no referido dispositivo, a pena do crime de violação de domicílio previsto no art. 150 do Código Penal, seja em sua forma simples (caput), seja em suas figuras qualificadas (§ 1º) seria aumentada se o fato fosse cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso de poder. Ante a redação do art. 22 da Lei n. 13.869/19 (“Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei”), parece não haver qualquer dúvida no sentido de que o novo tipo penal incriminador passou a regular integralmente a mesma conduta delituosa. Salutar, portanto, até mesmo para evitar quaisquer controvérsias, a revogação da majorante do § 2º do art. 150 do Código Penal pelo art. 44 da Lei n. 13.869/19;

O que a Lei de Abuso de Autoridade fez, assim, em seu art. 44, foi revogar expressamente o § 2º do artigo 150 do CP, que instituía a transcrita majorante, na ordem de 1/3, se o crime fosse cometido por funcionário público, mas, infelizmente – e “para variar” – o legislador não teve o mesmo zelo com o Código Penal Militar.

Assim, a tranquilidade que se tem no art. 150 do CP não repousa no art. 226 do CPM.

Partamos do ponto de vista de Renee do Ó Souza (2020, p. 161):

Conflito de normas com o art. 226 do Código Penal Militar: Tendo em vista a redação atual do art. 9º, II, do Código Penal, dada pela Lei 13.491/2017, os crimes praticados por militares previstos nesta Lei 13.869/2019 serão considerados crimes militares por extensão. Assim sendo, o crime do art. 226 do Código Penal Militar, que prevê violação de domicílio, deve ser considerado revogado pela nova figura do art. 22 da Lei 13.869/2019, ante a aplicação do critério cronológico.

Embora tenha o mérito de ser um dos primeiros a pensar sobre o assunto, como todas as vênias, discordo do autor e amigo.

Assim como não houve revogação do art. 150 do CP, não houve do art. 226 do CPM, senão pela figura trazida pelo seu § 2º, que possuía uma causa especial de aumento de pena, esta sim revogada, dando lugar ao crime de abuso de autoridade do art. 22 da Lei de Abuso de Autoridade, que, lembre-se, pode ser crime militar extravagante.

A figura do caput, entretanto, sobreviveu nos dois Códigos, no caso do Código Castrense, por exemplo, para alcançar fatos que não sejam praticados por militar em serviço, atuando em seu mister constitucional.

Trabalhemos os exemplos para tornar mais clara nossa corrente.

Todas as vezes que o militar estiver em serviço, estará ele atuando como agente público, portanto, perfeitamente passível de ser alcançado pela Lei de Abuso de Autoridade. Nestes casos, a conduta de violação de domicílio será subsumida pelo art. 22, em todas as suas possibilidades, da Lei de Abuso de Autoridade, concluindo-se por tácita revogação – infelizmente ela ainda remanesce no descuido do legislador – do § 2º do art. 226 do CPM. Este delito de abuso de autoridade será, notadamente, crime militar extravagante, pois, estando no desempenho de função, o militar operará contra a ordem administrativa militar, caracterizando-se o delito castrense pela alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar. Alguns preferirão a subsunção na alínea “c” do mesmo inciso, do que aqui se diverge, por entender que o objeto de tutela dos crimes de abuso de autoridade, de maneira imediata, é a dignidade do exercício da função pública, o que diz respeito à própria instituição militar.

Por outro lado, perfeitamente possível haver a violação de domicílio, como crime militar, sem que se esteja no exercício da função (em serviço) no caso do militar da ativa que, de folga, viole domicílio de outro militar da ativa, fato que será subsumido pelo art. 226 cc a alínea “a” do inciso II do art. 9º, ambos do Código Penal Militar.

Bem verdade que a visão do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça – este com maior oscilação – tem conduzido à interpretação de que a alínea “a” do inciso II do art. 9º não basta para a configuração do crime militar, mas esta não é a visão dos tribunais militares, de maneira que, ao menos em tese e até que haja decisão vinculante – e esta, entende-se, a melhor visão para as provas de concurso específicos de Direito Militar, como o concurso para provimento do cargo de Promotor de Justiça Militar –, o art. 226, com exceção de seu § 2º, sobreviveu à Lei de Abuso de Autoridade.

Referências:

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova lei de abuso de autoridade. Salvador: Jus Podivm, 2020.

SOUZA, Renee do Ó. Comentários à nova lei de abuso de autoridade. Salvador: Jus Podivm, 2020.

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