I – INTRODUÇÃO.
Prescreve a nossa Carta Constitucional, no art. 194, que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Imediatamente mais adiante a mesma Constituição assinala, em contrapeso, que a seguridade social será financiada por toda a sociedade de forma direta e indireta, por meio de contribuições sociais e por meio dos orçamentos da União, dos Estados, DF e Municípios.
É o que prescreve a Constituição Federal de 1988 em seu art. 195, caput. É evidente o sistema de freio e contrapeso no comparativo entre aqueles dispositivos. A nítida relação de proximidade normativa na leitura de tais mandamentos constitucionais revela uma equação a ser enfrentada. Essa equação deveria ser solucionada dentro da matemática aplicada às ciências atuariais, isto é, deveria, em tese, ser apurada de acordo com os critérios racionais de análise das ciências exatas. Mas, na medida em que se trata de um sistema jurídico, a questão não se resume à observação estática e invariável do olhar matemático.
O Direito é uma ciência e o campo das normas previdenciárias não poderia estar fora dessa mesma constatação. E por ser uma ciência inexata, está sujeita às vicissitudes humanas na sua aferição e no seu balanceamento axiológico. Aqui, diante dessa visão, começamos a perceber um horizonte de variações hermenêuticas que inevitavelmente colocam em xeque aquele sistema de freio e contrapeso. Na visão da atuária, prevalece o equilíbrio da própria atuária. Na visão da ciência jurídica, prevalece a incógnita. Existe uma equação não resolvida entre o fator custeio e o fator humanidade. É certo que a não solução definitiva dessa equação também se percebe na execução da política pública de seguridade social pela Administração Pública.
Mas, o impasse da variabilidade ganha contornos incalculáveis do ponto de vista matemático e atuarial quando é objeto de resolução pelo Poder Judiciário. É no judiciário que o racional da questão atuária da previdência sucede ao subjetivismo da decisão dos juízes quando julgam processos previdenciários. O decisionismo judicial é um fator a ser considerado, assim, na pedra angular do sistema público de previdência brasileiro, qual seja a solidariedade. O fiel da balança constitucional é a solidariedade, princípio vetor da seguridade social e que na previdência social tem um efeito pendular entre o custeio do regime geral de previdência social e, de outro lado, a máxima efetividade da cobertura desse sistema.
É na interpretação da solidariedade que se encontra a concretude de aplicação prática e harmoniosa (ou que deveria ser “harmoniosa”) dos dois extremos axiológicos fixados pela Constituição ao dar as bases da seguridade social nos artigos 194 e 195.
É a sociedade quem banca a seguridade social e a previsão da origem dos recursos e o modo de seu recolhimento estão previstos no Capítulo II (“Da Seguridade Social”), do Título VIII (“Da Ordem Social”), de nossa Carta de 1988. E, especificamente, a norma que trata dessa estrutura de custeio e financiamento pela sociedade restou inserida na Constituição Federal de 1988 por meio do art. 195, caput, quando assinala que a “seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais”.
Como se vê, os recursos financeiros são originados da União, Estados, DF, Municípios, eis que derivam das receitas primárias de natureza tributária obtidas por esses entes federativos. Mas, em caso de eventual insuficiência financeira, a garantidora desses recursos financeiros, conforme previsto na Lei n. 8.212/91, é a União. Essa é a dicção legal do art. 16, da citada Lei de Custeio.
Mas veja que o mais relevante desse tópico é saber que a Constituição Federal de 1988 é clara e expressa ao dizer que é a sociedade a financiadora total da seguridade social. É pela sociedade, na base de tudo, que se constroem os alicerces do financiamento da seguridade social, seja de modo direto por meio do recolhimento das contribuições sociais para a seguridade social, seja de modo indireto pelas demais verbas e recursos públicos vertidos por aqueles entes da Federação à manutenção da seguridade social.
A pedra angular da sustentação de receitas da seguridade social é o princípio da prévia fonte de custeio, pilar constitucional do art. 195, §5º, da Constituição Federal que evita a criação, extensão ou majoração de qualquer benefício previdenciário ou assistencial, ou serviços de saúde, que não encontre uma prévia fonte de receita orçamentária. Assim, deve haver contribuição social bastante para que haja expansão da seguridade social, assim como deve haver prévia indicação de dotação orçamentária para tanto.
Já o princípio da universalidade da cobertura e do atendimento possui uma acepção objetiva e uma acepção subjetiva. Isso quer dizer que o sistema de seguridade social nacional deve ser o mais amplo possível, a fim de que abarque, quanto ao objeto, todas as hipóteses de contingências sociais possíveis, bem como, no aspecto subjetivo, alcance a proteção do máximo de pessoas possível.
Assim, a universalidade de cobertura, na medida em que se objetiva ser a mais ampla possível, é capaz de reduzir – também no máximo possível dos recursos e das políticas públicas de um Estado – as desigualdades sociais e entraves socioeconômicos que se formam ao longo da vida de uma pessoa, sobretudo nas classes mais baixas e desfavorecidas da sociedade. E, ao lado disso, a universalização do atendimento é medida de valor inolvidável que se impõe para o sucesso de uma política pública de seguridade social, notadamente porque não há distinção de raça, cor, sexo, crença e posição social para que se tenha direito ao recebimento da tutela protetiva oferecida pelo Estado por meio de seu sistema de seguridade social. Note-se, contudo, que no quanto referente à previdência social, a universalidade de atendimento deve ser vista sempre sob o aspecto da contributividade ao sistema, de maneira que somente aqueles que cumpram os requisitos legais é que farão jus à contemplação de benefícios que os protejam dos riscos sociais inerentes à condução de suas vidas.
O vértice da percepção em relação à universalidade da cobertura e do atendimento reside na identificação das contingencias sociais que foram eleitas pelo Constituinte Originário ao desenhar o quadro de proteções da seguridade social. Nesse tocante, é evidente que o princípio da universalidade da cobertura e do atendimento ganha um determinado limitador na engrenagem de que sistemática a extensão qualitativa da cobertura sociais que serão objeto de proteção estatal. Refiro-me ao princípio da seletividade, o qual igualmente restou inserto na relação de objetivos-princípios do art. 194, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988. O princípio da universalidade da cobertura e de atendimento visa à expansão da proteção da seguridade social ao máximo de sua capacidade, sempre, claro, com a conjugação dos esforços estatais e da sociedade como um todo. Todavia, filtrada essa meta principiológica sob o aspecto do direito econômico, também sabermos que a implementação dessa expansividade de cobertura é gradativa, na medida das possibilidades orçamentarias de cada Estado.
A seletividade também se refere ao aspecto pessoal dos segurados, já que, quando criado pela lei um determinado benefício, a lei seleciona aqueles que farão jus à sua concessão, exigindo o cumprimento de requisitos próprios para a percepção das prestações previdenciárias correspondentes. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o benefício de amparo assistencial ao idoso, que exige renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo (metade do salário mínimo na visão do Supremo Tribunal Federal, que se sacramentou no julgamento do RE 567.985). Além desse exemplo, podemos citar também que benefícios de incapacidade somente são concedidos a quem efetivamente estiver incapaz, extraindo-se disso, igualmente, a noção de seletividade no pagamento dos benefícios, tudo a fim de se manter o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.
Já a distributividade é princípio que orienta a manutenção de um quadro normativo da seguridade social brasileira que promova efetivamente a distribuição de renda, de riquezas e, bem assim, do bem estar social de seu povo.
Em desfecho, a universalidade da cobertura e do atendimento encontra um prévio limitador no princípio da prévia fonte de custeio e, além disso, no próprio princípio da seletividade, que tem função semelhante àquele. A expansão qualitativa é vedada, portanto, a não ser que haja nova seleção do Constituinte e, bem assim, nova indicação de fonte de custeio. Já a expansão quantitativa é livre, como vimos, da contrapartida financeira porque já se escora em prévia seleção feita no corpo da Constituição, que permite que haja cobertura aos eventos de idade avançada, morte, desemprego, etc.
Na previdência social, além dos princípios da compulsoriedade da filiação e da contributividade ínsita na relação jurídico-previdenciária, há que se frisar também o princípio da solidariedade quando falamos em custeio e financiamento do sistema previdenciário público.
Assim, os conceitos de equilíbrio financeiro e atuarial da previdência social, contributividade e solidariedade são entrelaçados e a relação entre eles que traduz o limite de cobertura da seguridade social e, especialmente, da previdência social. Na dinâmica de seus axiomas, por vezes prevalece o peso da prévia fonte de custeio e da interpretação restritiva da seletividade, de modo a prestigiar o argumento do equilíbrio financeiro e atuarial de todo o sistema público de previdência social. Nesse exato contexto, alguém, por exemplo, pode contribuir a vida toda, mas que, por algum motivo tenha deixado de contribuir no final da vida e, embora ainda na atividade, terá perdido sua qualidade de segurado no óbito e, por isso, não gerará pensão por morte aos seus dependentes. Suas contribuições serão todas dispersas pelo sistema e não corresponderão a nenhum benefício da previdência social.
Há situações, de outro lado, nas quais se enaltece a universalidade, canalizada pela solidariedade, permitindo concessões ou vantagens previdenciárias sem que haja uma correspondência exata com o custeio. Importante trabalho em relação ao princípio da solidariedade pode ser encontrado no artigo de Maria Celina Bodin de Moraes[1], que assim retrata o tema de nosso estudo:
Nessa medida, a solidariedade social, na jurisdicizada sociedade contemporânea, deixou de poder considerar-se como resultante de ações erráticas e eventuais, éticas ou caritativas, para se tornar um princípio geral do ordenamento jurídico, com máxima fonte normativa, capaz de tutelar o respeito a cada um, cabendo exclusivamente à norma jurídica distinguir, no que for essencial, a (peculiar) singularidade individual.
Também se pode citar a visão evolutiva do princípio da solidariedade (MESA-LAGO, 2004)[2], a qual salientou o método de resdistribuição de renda operado pelo princípio da solidariedade, senão vejamos:
Na concepção de Beveridge, toda a população deve estar fi liada ao sistema de seguridade social e deve contribuir com seu financiamento para garantir a sua sustentabilidade; também deve haver solidariedade entre as gerações; ou seja, os trabalhadores ativos devem contribuir para financiar as prestações dos inativos; tudo isso terá um efeito redistributivo progressivo. Segundo ele, para elevar o nível de vida e eliminar a pobreza, não basta apenas o aumento da produção, também é necessária uma adequada redistribuição do produto. A seguridade social contribui com isso, por um lado, por meio do financiamento tripartite (contribuições de trabalhadores e empregadores — o trabalhador por conta própria paga apenas a sua própria contribuição — e o Estado aporta um subsídio, baseado nos impostos gerais); por outro lado, as prestações universais ajudam os grupos de baixa renda, e a assistência social (totalmente financiada pelo Estado) se encarrega dos pobres. (…) “O plano da seguridade social é, antes e acima de tudo, um método de redistribuição de renda, de maneira a antepor as primeiras e mais urgentes necessidades e fazer o melhor uso possível de quaisquer recursos de que se possa abrir mão” (Beveridge, 1942: 210, 214).
A solidariedade funcionará como um elemento regulador e ponderador. Em verdade, o princípio da solidariedade que inspira a base contributiva dos regimes previdenciários previstos nos artigos 40 e 201 da CF/88 é de essência distributiva, e não comutativa. Na solidariedade distributiva, há uma repartição assimétrica, de sorte que aquele que tem mais capacidade contributiva contribuirá de modo mais significativo, mas nem por isso obterá um retorno de prestações previdenciárias na mesma conformidade financeira. Diferente, pois, é a natureza da solidariedade comutativa, por meio da qual uma determinada contribuição a um sistema coletivo de seguro encontra simetria entre o dar e o receber.
Vejamos, agora, a casuística de modulação da solidariedade no âmbito previdenciário pelo Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2019, reafirmou sua jurisprudência no sentido de que o aposentado que retorna ao trabalho deve contribuir para o RGPS, em razão do princípio da solidariedade do sistema previdenciário adotado. Transcrevo a emenda do respectivo julgado:
EMENTA Recurso extraordinário com agravo. Direito Previdenciário. Aposentado. Retorno ou permanência no trabalho. Cobrança de contribuição previdenciária. Possibilidade. Princípio da solidariedade. Existência de repercussão geral. Reafirmação da jurisprudência da Corte sobre o tema.
(ARE 1224327 RG, Relator(a): Min. MINISTRO PRESIDENTE, julgado em 26/09/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-238 DIVULG 30-10-2019 PUBLIC 04-11-2019 )
O julgado acima, na origem, decorreu do pedido de um aposentado feito no âmbito do Juizado Especial Federal da Seção Judiciária do Espírito Santo/ES. Por meio desse pedido, o aposentado pretendia a restituição das contribuições que ele havia vertido após o seu retorno ao trabalho, contribuições essas que foram recolhidas, portanto, mesmo após a concessão de aposentadoria em seu nome. O argumento apresentado para obter a restituição daqueles recolhimentos era o de que não há benefícios previstos na lei previdenciária para o aposentado que retorna ao trabalho. Desse modo, não haveria contraprestação previdenciária a justificar o desconto da contribuição exigida para recolhimento aos cofres do INSS.
De fato, conforme o art. 18, §2º, da Lei n. 8.213/91, o “aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado”. Assim, pela lei referida, o aposentado que voltar a trabalhar não terá nenhuma outra cobertura do INSS, salvo salário-família e reabilitação profissional. Em sendo assim, não haveria correspondência alguma entre os valores recolhidos e os benefícios e serviços oferecidos em contraprestação pela autarquia previdenciária.
O pedido foi considerado válido? NÃO. A sentença de primeiro grau julgou improcedente o pedido. E o Supremo Tribunal Federal, escorando-se no conceito dado pelo princípio da solidariedade, essencial ao regime previdenciário público instituído pelo INSS, manteve a obrigação de pagamento da contribuição previdenciária. Não há dúvidas de que decisões como essa, embora possuam lastro, sob certo ângulo, jurídico-argumentativo, baseiam-se mais em pilares político-argumentativos, notadamente para manter a salvo as contas públicas da previdência social. Pesou, sem sombra de dúvidas, na ponderação de normas constitucionais de igual valor, o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial.
Tratou-se de reafirmação da jurisprudência da Corte Suprema, que desde os Recursos Extraordinários n. 827.833 e 661.256 já vinha decidindo pela constitucionalidade do art. 18, §2º, da Lei n. 8.213/91.
Outro exemplo se refere ao parâmetro da solidariedade no contexto da vedação à “desaposentação” e à “reaposentação” pelo STF. Sobre a desaposentação (renúncia à aposentadoria para obter nova aposentadoria com base em novas contribuições) e a reaposentação (recálculo da aposentadoria em curso com base em novas contribuições), o STF decidiu, aliás em embargos de declaração opostos em face dos julgados acima, que não cabe falar em restituição dos valores pagos àquele título por conta de decisões judiciais transitadas em julgado. Se alguém se beneficiou, portanto, de decisão judicial transitada em julgado, no sentido de obter a desaposentação ou a reaposentação, não deverá devolver os valores recebidos após o julgamento da Corte Suprema quanto à invalidade dessas vantagens. A tese de repercussão geral firmada, após o julgamento dos embargos é a seguinte:
“No âmbito do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à ‘desaposentação’ ou ‘reaposentação’, sendo constitucional a regra do artigo 18, parágrafo 2º, da Lei 8.213/1991”.
Outra passagem nos tribunais que revela o peso do custeio e a visão a aplicação dos parâmetros de uma solidariedade distributiva se referiu à checagem pelo Supremo Tribunal Federal da validade da contribuição dos inativos e pensionistas criada pela Lei 9.783/99 e, de maneira definitiva, posteriormente pela Emenda 41/03.
O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei n. 9.783/99 no quanto relativo à imposição de contribuição previdenciária aos inativos e pensionistas dos regimes próprios previdenciários. A Lei n. 9.783/99 – que dispunha “sobre a contribuição para o custeio da previdência social dos servidores públicos, ativos e inativos, e dos pensionistas dos três Poderes da União” – foi editada logo após a EC 20, mas ela foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 2010/DF (precedente que, depois, serviu de paradigma para o STF declarar a inconstitucionalidade de “contribuições” semelhantes instituídas pelos Estados-membros sobre seus servidores aposentados, e sobre seus pensionistas).
A discussão acerca da impossibilidade de exigência de contribuição previdenciária em face dos servidores inativos e pensionistas, na vigência da EC 20/98 (enquanto não aprovada a EC 41/03), foi sacramentada pelo apontamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2010 MC, em 12/04/2002 e, posteriormente, como se verá no julgamento da ADI 3105. Isso porque, na visão do Supremo a “Lei nº 9.783/99, ao dispor sobre a contribuição de seguridade social relativamente a pensionistas e a servidores inativos da União, regulou, indevidamente, matéria não autorizada pelo texto da Carta Política, eis que, não obstante as substanciais modificações introduzidas pela EC nº 20/98 no regime de previdência dos servidores públicos, o Congresso Nacional absteve-se, conscientemente, no contexto da reforma do modelo previdenciário, de fixar a necessária matriz constitucional, cuja instituição se revelava indispensável para legitimar, em bases válidas, a criação e a incidência dessa exação tributária sobre o valor das aposentadorias e das pensões”. (ADI 2010 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/1999, DJ 12-04-2002 PP-00051 EMENT VOL-02064-01 PP-00086)
Já a ADI 3105 reconheceu a constitucionalidade das regras constitucionais advindas com a Emenda Constitucional n. 41/03, a qual autorizou expressamente, e diretamente no texto da Constituição, a cobrança de contribuições previdenciárias de inativos e pensionistas nos regimes próprios de previdência. Posteriormente, em regime de repercussão geral, decidiu, inclusive, a Corte Suprema que é possível a devolução das contribuições previdenciárias recolhidas por inativos e pensionistas com base na Lei n. 9.783/99. Fixou, assim, o STF, a seguinte tese quanto ao julgamento do Tema 343:
“É devida a devolução aos pensionistas e inativos, perante o Juízo competente para a execução, da contribuição previdenciária indevidamente recolhida no período entre a EC 20/ 1998 e a EC 41/ 2003, sob pena de enriquecimento ilícito do ente estatal.” (Leading Case: RE 580.871, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 10.12.2010).
Portanto, em relação à cobrança de contribuições previdenciárias de inativos e pensionistas nos regimes próprios, temos que somente a partir da Emenda Constitucional n. 41/03 é que isso foi possível, na medida em que a EC 20/98 foi omissa quanto a isso e nada acrescentou de modo expresso no texto constitucional a esse respeito. Então, a cobrança de contribuição previdenciária aos inativos e pensionistas dos regimes próprios existe – e existe até hoje – mas somente foi realmente alcançada em nosso ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional n. 41/03. Assinalou o Supremo no julgamento da ADI 3105 que “não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento”.
Fundamentou, ainda, a Corte Suprema que deve haver obediência “aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento”. No Superior Tribunal de Justiça, os julgados em matéria previdenciária têm se inclinado para o lado da solidariedade expansiva, desprestigiando as exigências da contrapartida. Como exemplo, pode-se citar o TEMA 982 de seus recursos repetitivos, oportunidade na qual o Superior Tribunal de Justiça fixou a tese de que, se comprovadas “a invalidez e a necessidade de assistência permanente de terceiro, é devido o acréscimo de 25% (vinte e cinco por cento), previsto no art. 45 da Lei n. 8.213/91, a todos os aposentados pelo RGPS, independentemente da modalidade de aposentadoria”.
Contudo, após a interposição de recurso extraordinário pelo INSS, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal no bojo do TEMA 1095 de sua repercussão geral, quando houve alteração do entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça para não permitir a extensão do adicional referido. Salientou a Corte Suprema que a “necessidade de fonte de custeio própria e a seletividade na prestação dos benefícios previdenciários visam à manutenção do sistema securitário, ao considerar a realidade atuarial e as limitações orçamentárias”.
Como exemplo de manifestação voltada a assegurar o viés da solidariedade retributiva no RGPS, no TEMA 1102, referente à apreciação da chamada “revisão da vida toda”, o voto do Min. Alexandre de Moraes pode ser tido como um exemplo de modulação do princípio da solidariedade como um vetor favorável à universalização da cobertura e do atendimento. Isso porque, o entendimento do Ministro foi no sentido de que deve haver uma necessária repercussão entre as contribuições previdenciárias recolhidas antes de julho/1994 e o cálculo final da aposentadoria do segurado, não podem a lei excluir definitivamente essa consideração, que deve ficar a cargo da escolha do requerente. Nesse sentido, calha transcrever trecho do voto:
O sistema de previdência social rege-se pelo princípio contributivo pelo qual, não só a percepção do benefício pressupõe a contribuição do segurado, como também deve haver correlação entre o benefício concedido e a contribuição previdenciária recolhida, não se admitindo que eventuais parcelas vertidas ao sistema pelo beneficiário sejam desconsideradas de plano.
Essa premissa inclusive foi adotada no Tema 163 a repercussão geral (RE 593.068, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Dje de 22/3/2019), no qual se assentou que a base de cálculo da contribuição previdenciária somente deve incluir os ganhos habituais que tenham repercussão em benefícios, estando excluídas as verbas que não se incorporam à aposentadoria.
(…)
Ao votar, o Ilustre Min. ROBERTO BARROSO, citando passagem do voto do Ministro CELSO DE MELLO na ADC 8, reafirmou que a referibilidade entre a contribuição e o benefício é exigência nos dois regimes – regime geral de previdência social e regime próprio.
(…)
Efetivamente, os segurados que reuniram os requisitos para obtenção do benefício na vigência do art. 29 da Lei 8.213/1991, com a redação da Lei 9.876/1999, podem ter a sua aposentadoria calculada tomando em consideração todo o período contributivo, ou seja, abarcando as contribuições desde o seu início, as quais podem ter sido muito maiores do que aquelas vertidas após 1994, em decorrência da redução salarial com a consequente diminuição do valor recolhido à Previdência.
CONCLUSÃO
O breve recorte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal mostra que o viés da solidariedade distributiva, escorada no princípio da prévia fonte de custeio e da seletividade das contingências sociais já eleitas pelo Constituinte Originário revela uma postura recente de autocontenção da Corte Suprema em matéria previdenciária.
De fato, a solidariedade distributiva deve ser sempre sopesada no confronto entre os princípios da contrapartida e da universalidade da cobertura e do atendimento no âmbito da seguridade social e, mais especialmente, no campo dos regimes previdenciários públicos, os quais são de inolvidável base contributiva. Entretanto, a solidariedade, por si só, como norma constitucional com natureza de princípio previdenciário, não basta para a imposição de gravame tributário em face do sujeito passivo. É de todo evidente que, tratando-se a contribuição previdenciária de espécie tributária, é exigível que se tenha a anterioridade e taxatividade da norma tributária, especificando os sujeitos e os fatos geradores do tributo. Assim, ao lado da solidariedade que inspira a distributividade do sistema de repartição previdenciária, também há que se considerar o peso normativo de outras normas constitucionais, em especial às limitadoras ao poder de tributar, que se apresentam no texto constitucional como verdadeiras garantias fundamentais, embora não explícitas no rol do art. 5º, da CF/88.
A modulação da solidariedade com pedra angular do aparente choque de princípios afetos ao custeio da seguridade social e, de outro lado, valores que inspiram a sua expansão, deve ser objeto de constante elucubração dos juízes e tribunais, a fim de se manter a conformidade do sistema de seguridade social criado pela Constituição Federal de 1988, sem que maiores elastecimentos de sua cobertura possa causar um efeito inverso, rompendo o próprio sistema.
FREDERICO PEREIRA MARTINS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MESA-LAGO, Carmelo. As reformas de Previdência na América Latina e seus Impactos nos Princípios da Seguridade Social. Disponível em: <http://sa.previdencia.gov.br/site/arquivos/office/3_081014-111405-101.pdf , p. 13-16.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. A Previdência Social no estado contemporâneo Fundamentos, financiamento e regulação. 2011. 328 f. Tese (Doutorado em Direito Civil Constitucional; Direito da Cidade; Direito Internacional e Integração Econômica; Direi) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
BARCELLOS, Ana Luiza Berg. Direito Sociais e Políticas Públicas: Algumas Aproximações. Revista do Direito Público, Londrina, v.11, n.2, p.109-138, Ago.2016.
ALEXY, Robert. Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, apud ZAMBITTE, Fábio Ibrahim, op. cit.
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Leitão, André Studart. O lado oculto da judicialização da previdência social. Edição do Kindle.
[1] MORAES, Maria Celina Bodin, in “O Princípio da Solidariedade”, artigo publicado no volume comemorativo do 60º Aniversário do Departamento de Direito da PUC-Rio, pg. 16-17.
[2] MESA-LAGO, Carmelo. As reformas de Previdência na América Latina e seus Impactos nos Princípios da Seguridade Social. Disponível em: <http://sa.previdencia.gov.br/site/arquivos/office/3_081014-111405-101.pdf , pg. 28, citando Sir William Beveridge no seu famoso documento Relatório sobre o Seguro Social e Serviços Afins, publicado em 1942.
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